28/10/2020

Liberal(ismo): de movimento histórico-teológico a uma palavra "lacradora" - Por Giovane Vargas

Artigo escrito por Giovane Vargas.


O fenômeno do liberalismo teológico perdurou da metade final do século XVIII até as primeiras décadas do século XX e teve nomes altamente conhecidos no cenário da teologia cristã, como Friedrich Schleiermacher, Albrecht Ritschl, Albert Schweitzer, Ernst Troeltsch, Julius Wellhausen, Adolf von Harnack e tantos outros que, de alguma forma, contribuíram com o protestantismo de sua época na luta apologética para trazer respostas cristãs ao homem moderno, herdeiro do racionalismo, deísmo e iluminismo, que havia abandonado a linguagem metafísica, o transcendentalismo e se voltado a questões sociais, biológicas e tecnológicas como prioridade.

Já o movimento fundamentalista cristão teve sua origem entre Estados Unidos e Grã-Bretanha na transição dos séculos XIX e XX de maneira reativa ao liberalismo e àquilo que era considerado um grave rompimento com questões que desvirtuariam o protestantismo até que ele deixasse de existir. Esse movimento traz algumas marcas em sua teologia, mas uma delas se sobrepõe, a saber, a relação com o texto bíblico como sendo a própria divindade (infalível, inerrante) manifestada nas letras em diálogo direto com o cristão. Com isso, o fundamentalismo reassume e amplia a visão de Lutero e Calvino, abrindo mão do método histórico-crítico no exame das escrituras (o qual havia sido adotado pelos teólogos liberais) para aplicar (ou reaplicar) uma forma de análise que levava em consideração a impossibilidade de erro na “revelação especial de Deus”, assim denominada pelo fundamentalismo e sua dogmática.

Após essa pequena exposição do curso histórico da teologia protestante e do surgimento desses dois fenômenos, passemos a analisar exclusivamente o uso do termo "liberal" no cenário evangélico brasileiro fundamentalista:

1) Liberal = roupas da moda. Esse primeiro uso do termo é oriundo do meio pentecostal clássico ou missionário, que é fruto do fundamentalismo da primeira década do século XX e que trazia consigo a herança da vestimenta dos pais peregrinos que povoaram os Estados Unidos e dos nobres britânicos do século XIX. Esse termo começou a ser usado para se referir aos adeptos das novas vestimentas que a indústria produzia e que a televisão passara a divulgar. Posteriormente, o termo viria a ser aplicado em várias outras situações, como para pessoas que frequentavam praias e usavam trajes de banho ou até para se referir a métodos de outras denominações do mesmo movimento fundamentalista.

2) Liberal = colocar em dúvida o dogma da inerrância e/ou infalibilidade da escritura. Essa taxação, tão visível nas redes sociais do protestantismo confessional ou pentecostal que, até hoje, se baseiam no fundamentalismo, tornou a palavra como algo "lacrador" por ser usada única e exclusivamente para atacar pessoas de posicionamento considerados "heterodoxos" em relação ao movimento considerado correto, “ortodoxo”, e a infalível escritura; para denegrir seres humanos que pensam de forma distinta sem um debate de percepções de mundo para o real progresso da fé cristã, buscando o ferimento da imagem de pessoas consideradas “teologicamente erradas”.  Em contrapartida, o tão “errôneo” movimento que foi denominado liberalismo teológico surgiu com a ideia da necessidade de preservar a fé cristã em tempos modernos.

O movimento fundamentalista que tem cooperado para a preservação de valores cristãos que formaram a civilização brasileira também tem servido de palanque para resgatar uma espécie de "inquisição" contra todas as pessoas que se afirmam como cristãs, mas que não compactuam com os dogmas do fundamentalismo. Por certo, a democracia, que está em risco nas mãos dos progressistas, também estará em risco nas mãos de algum fundamentalista que criou seus termos lacradores.