19/10/2021

Book Review #4 - The Historical Jesus, John Dominic Crossan

Minha relação com este livro é de amor e ódio: amor porque acho o autor brilhante em suas colocações, análises e clareza metodológica; ódio porque, apesar de tudo isso, não consigo aceitar suas conclusões.

Partindo de três camadas interdisciplinares (antropologia intercultural, história romana e judaica e arqueologia), Crossan busca separar textos de contextos para reconstruir (uma palavra-chave para o autor), não buscar, o Jesus da história.

Após o uso das três camadas (antropologia, fontes históricas da época e arqueologia) de forma cruzada, o Jesus de Crossan surge reconstruído como um Camponês Cínico Judeu, alguém que, em suas atitudes e estilo de vida, fazia oposição às elites da época: "O Jesus histórico era, então, um camponês cínico judeu. Sua aldeia camponesa ficava perto o suficiente de uma cidade greco-romana como Séforis, de modo que a visão e o conhecimento do cinismo não são inexplicáveis ​​nem improváveis. Mas seu trabalho estava entre as fazendas e aldeias da Baixa Galiléia. Sua estratégia, implícita para si mesmo e explicita para seus seguidores, era a combinação de cura gratuita e as refeições compartilhadas, um igualitarismo religioso e econômico que negava por igual e ao mesmo tempo as normalidades hierárquicas e patronais da religião judaica e do poder romano."

O Jesus reconstruído por Crossan, dessa forma, está longe de ser um profeta apocaliptico judaico como João Batista; ele não está dentro do movimento apocaliptico, esperando a intervenção imediata de Deus que traria o reino escatológico do fim dos tempos, como os primeiros cristãos e Paulo;  o Jesus de Crossan está mais próximo de um hippie antigo que pregava a paz, o igualitarianismo e a relação direta com Deus, fazendo crítica aos poderosos.

Por alguns motivos, eu não consigo concordar com Crossan (embora ache sua reconstrução digna de todo respeito): primeiro, porque, mesmo sendo próxima de cidades aparentemente gregas, Nazaré, como qualquer vila do interior hoje em dia, não seria culturalmente influenciada por um movimento estritamente estrangeiro apenas pela proximidade: o fator cultural judaico certamente falaria muito mais alto na matrix (para usar uma palavra preferida de Crossan) de Jesus de Nazaré -- não me parece fazer muito sentido, usando a analogia natural, pensar que Jesus estaria tão longe do imaginário de seus correligionários; depois, porque reconstruir o que Jesus pretendia através da veracidade histórica de algumas de suas falas pode ser perigoso: você corre o risco de favorecer apenas os logions que lhe parecem coniventes com aquilo que já pressupõe a respeito de Jesus -- esse, a meu ver, é um equívoco primordial do Jesus Seminar.

Apesar de ser uma reconstrução brilhante, o Jesus Histórico de Crossan me parece muito mais com o mestre ideal desse ex-padre católico que recebeu o nome Dominic no monastério do que com um judeu que realisticamente teria vivido há dois mil anos atrás no interior da Galiléia e que foi crucificado com a acusação de pretenso rei dos judeus.

11/10/2021

Book Review #3 - A Religião do Bolsonarismo, Yago Martins

O último livreto de Yago Martins, A Religião do Bolsonarismo, não é uma análise sociológica do fenômeno Bolsonaro no Brasil; não se trata de uma pesquisa acadêmica sobre o que está acontecendo na mentalidade brasileira; não é uma avaliação de um cientista sobre a dinâmica das ideias políticas em nosso país. Trata-se, apenas, da opinião de um pastor evangélico sobre algo que ele não entende.

O que o autor faz em sua nova publicação é imaginar, desde uma perspectiva teológica pronta que ele aprendeu com o fundamentalismo evangélico americano, que os apoiadores mais entusiasmados do presidente trocaram o seu deus (do Yago) por uma figura política. Ao acreditar em sua própria imaginação, o pastor, que tem menos de trinta anos de idade, tece uma apologia à sua religião, dizendo de maneira arrogante, como sempre o faz, que não há outro deus além do seu e acusando de idolatria brasileiros sofridos e indignados com o terrível resultado do trabalho de governos anteriores.

O brasileiro, muito religioso e cristão, mais do que Yago Martins jamais seria, não trocou o seu deus por uma figura política. O que ele fez foi depositar a esperança de uma vida menos difícil no trabalho de alguém que falou o que ele queria ouvir e refletiu seus anseios e desejos em sua proposta política; o que o brasileiro fez foi, no máximo, enxergar em Bolsonaro um representante de deus para o Brasil. E isso, mesmo dentro do sisteminha teológico evangelicalista do Yago, jamais será idolatria. Se o fosse, ele teria que chamar todos os primeiros cristãos de idólatras também. Isso, porém, o pastorzinho jamais faria, pois uma mente presa a ideologias religiosas como a do autor dessa cartilha apologética nunca será capaz de entender que o cristianismo primitivo não tem nada a ver com o que ele imagina ser cristianismo. 

Apologetas como Yago Martins nunca poderão analisar a realidade ao seu redor sem fazer um discurso político-religioso disfarçado de tese acadêmica. A mistura do liberalismo econômico mal compreendido com o fundamentalismo religioso de um jovenzinho que tem os hormônios à flor da pele é desastrosa.

Book Review #2 - Pequenos comentários sobre alguns livros a respeito do Jesus histórico

Jesus and Judaism (E. P. Sanders)

E. P. Sanders está na minha lista top 3 de autores favoritos e eu acredito que ele seja o estudioso do Novo Testamento mais importante do século passado. Nesta obra, após demonstrar os problemas que existem em basear a análise histórica de Jesus nas suas falas, Sanders parte de dois fatos que são os mais seguros de determinar historicamente sobre o Nazareno: o incidente no templo e a morte por crucificação. Verificando que, para Jesus, a ação feita no templo significava um gesto profético que simbolizava a destruição final do local e que ele foi morto por representar uma ameaça à pax romana, o autor conclui que Jesus foi um profeta apocalíptico judeu que esperava uma intervenção final divina no curso normal da história humana.


The Historical Figure of Jesus (E. P. Sanders)

Diferente do seu livro acadêmico sobre Jesus e o Judaísmo, onde parte do incidente no templo para analisar quem era o Nazareno, nesta obra muito mais popular, Sanders oferece sua reconstrução do Jesus histórico para quem não entende nada do assunto. Com todo o plano de fundo contextual necessário, o autor mostra como Jesus foi um judeu que esperava uma intervenção imediata de Deus para mudar o rumo da história e de seu povo. Não é tão bom quanto o primeiro, mas, ainda assim, é um livro de E. P. Sanders e merece ser lido com toda a atenção, principalmente se você não está familiarizado com o tema.


Jesus of Nazareth: King of the Jews (Paula Fredriksen)

O que mais impressiona neste livro é a sagacidade histórica da autora: Paula sabe se portar com respeito e sinceridade diante de suas fontes. Para reconstruir o passado, você precisa se despir de tudo o que sabe em retrospecto e entrar no estado mental de ingenuidade sobre o futuro das pessoas cujas vidas você busca entender e descrever. E a autora faz isso com maestria. As cenas reconstruídas de episódios da vida de Jesus fazem você entrar no mundo dos antigos judeus do segundo templo. Fredriksen explica como o título 'Rei dos Judeus' se relaciona com a morte de Jesus dentro do contexto de domínio romano na Palestina do primeiro século; demonstra por que apenas Jesus foi morto, e não, junto com ele, seus seguidores, e como o seu movimento pôde continuar mesmo após a sua morte. De maneira muito popular, e até quase melhor do que Sanders faz em Historical Figure, a autora fornece todo o contexto histórico necessário para que o leitor entenda o que e como as coisas aconteceram com Jesus de Nazaré. Este livro me lembrou muito Jesus and Judaism, como se ele tivesse sido escrito para o público geral, não para acadêmicos. As conclusões de Fredriksen são praticamente as mesmas de Sanders.


Jesus of Nazareth: Millenarian Prophet (Dale C. Allison)

Allison segue a mesma linha de Sanders: para ele, Jesus foi um judeu apocalíptico que esperava o final dos tempos. O ponto forte desta obra é a maneira com que o autor explica a necessidade de uma fundamentação metodológica correta para se iniciar a análise histórica sobre Jesus de Nazaré. O epílogo deste livro é uma das coisas mais lindas e impactantes que já li sobre o Jesus histórico. Allison recebeu um lugar de direito na minha lista top 5 de autores preferidos sobre o tema.


Jesus (Marcus Borg)

Marcus Borg foi membro do Seminário de Jesus. Como tal, baseia sua análise histórica sobre Jesus primariamente nas falas, isto é, determina quais logions são possivelmente verdadeiros e reconstrói Jesus de Nazaré a partir disso. Eu não gosto dessa abordagem por vários motivos, mas
principalmente porque acho extremamente difícil verificar quais ditos de Jesus são ou não verdadeiros e o nível de alteração que cada um sofreu (a tendência é que os seus
pressupostos acabem pesando muito na escolha daquilo que realmente foi dito por Jesus). Mesmo assim, acho a leitura desta obra muito válida, especialmente pelo mar de informações sobre o tema trazidas pelo autor.


Jesus e as Testemunhas Oculares (Richard Bauckham)

Bauckham foi o primeiro autor não apologeta que li falando a respeito de Jesus. Lembro-me da sensação de estar finalmente entendendo melhor o que eram os evangelhos e de começar a compreender mais claramente quem foi Jesus. Nesta obra (que não me convenceu por completo), o autor defende a ideia de que os quatro evangelhos neotestamentários são baseados em relatos de testemunhas oculares. Minha crítica é a seguinte: é claro que qualquer tradição que exista sobre Jesus veio, em última instância, de uma testemunha ocular (obviamente, ninguém criou Jesus ex nihilo - pode chorar, miticista). Contudo, me parece ingenuidade quase apologética imaginar que tudo o que existe na tradição de Jesus tenha surgido de testemunhas oculares e não (também) de uma visão antiga sobre como o mundo funciona. Strauss precisa ser levado em consideração.

Book Review #1 - "O Jesus Histórico: Critérios e Contextos no Estudo das Origens Cristãs", Darrel L. Bock, J. Ed Komoszweski (Editores)

Finalmente, o livro sobre o Jesus histórico organizado por Darrel Bock foi traduzido ao português, e alguns amigos vieram pedir a minha opinião a respeito da obra. Pois bem, aí vai:

Este livro foi escrito por acadêmicos evangélicos, não estudiosos críticos. Existe um ramo, dentro do mundo acadêmico norte-americano, composto por pessoas que se formaram em universidades confessionais nos EUA. Eles escrevem como acadêmicos e estudaram na academia, mas são confessionalmente evangélicos, e, em sua maioria, vieram de universidades que compartilham de sua fé. Este livro é uma compilação de ensaios desses autores, os quais tentaram usar a linguagem acadêmica para fazer uma crítica aos estudiosos críticos. Assim, a obra é boa para quem está buscando algo que confirme a sua fé, para quem tem uma visão mais conservadora sobre Jesus, mas não para quem está tentando entender verdadeiramente o assunto.

Com excessão, talvez, de Larry Hurtado, que figura como um ponto fora da curva na lista de nomes que aparece na capa, a meu ver, existem dois autores, dentre todos estes, que (eu não diria que se salvam, mas) são menos piores: Scot McKnight e Craig Evans, os quais são evangélicos, mas dão o braço a torcer para algumas coisas. O prefácio é de Tom Wright, mas, num primeiro momento, o tom de Tom não me pareceu muito entusiasmado: ele apenas fala que o conteúdo fomentará o debate, e pede para que os outros acadêmicos prestem atenção ao que foi dito. 

Eu não acredito que seja um livro para se começar a estudar o assunto, e não acho que será uma obra que fará alguma diferença na busca pelo Jesus histórico. Ele serve para, dentro do mundo evangélico, oferecer uma resposta aparentemente acadêmica às conclusões críticas sobre o Jesus da história, e fala àquelas pessoas que sentem que o cristianismo estará sendo jogado fora se as conclusões críticas desse campo de estudo forem adotadas. No final das contas, os autores estão fazendo apologética.

Guardadas as devidas proporções, essa obra me lembrou o livro organizado por D. A. Carson para responder a E. P. Sanders: enquanto este último falou sobre nomismo da aliança em Paul and Palestinian Judaism, virando o mundo dos estudos do Novo Testamento de cabeça para baixo, criando um novo e irrefutável paradigma e desmoronando o frágil castelo de cartas da exegese reformada, Carson e Cia. insistiram numa variedade de nomismos em Justification and Variegated Nomism, afirmando que 4 Esdras mostra, no judaísmo do segundo templo, algo parecido com aquilo que Lutero chamaria de legalismo, coisa que Sanders já havia confirmado em seu livro de 1977 e dado como excessão à regra -- os evangélicos não cansam de tentar salvar a sua tradição assassinando a exegese.

Em suma, a obra é escrita por autores acadêmicos evangélicos que escrevem para esse mundo dos artigos cheios de notas de rodapé, mas você dificilmente verá um artigo desses autores em journals de alto gabarito, como The New Testament Studies, The Harvard Theological Review, Journal of Biblical Literature, etc., onde o debate acadêmico serve para o mundo real que compartilha do diálogo aberto sobre o que aconteceu no passado, e não apenas para o ambiente fechado das igrejas mais fundamentalistas. Por fim, tudo se torna uma briga chata entre apologetas que se vestem de acadêmicos para proteger a fé, e historiadores que olham para tudo isso espantados, tentando explicar que não se trata de fé, mas de metodologia.

Alguém me dirá, como já me disseram por incontáveis vezes, que os estudiosos críticos também estão fazendo apologética do ceticismo. Essa afirmação parte da ideia de que todo mundo entra numa investigação acadêmica já com um pressuposto sobre a fé e o cristianismo. A racionalização funciona da seguinte maneira: se eu tenho o pressuposto da fé em Jesus e estou fazendo a minha apologética, então aqueles que estão do outro lado do debate, os quais não acreditam nas mesmas coisas que eu acredito sobre Jesus, também estão fazendo uma apologética, só que ao ateismo. Isso, contudo, simplesmente não é real. É claro que existem pessoas que fazem isso, especialmente os miticistas (aqueles que acreditam que Jesus nunca existiu) -- esses caras, eu preciso admitir, são apologetas do ateismo (graças a Deus, essa chatice ainda não chegou no Brasil, e se concentra na internet de fala inglesa). Existe um outro pessoal (da esquerda americana), aqueles mais radicais do seminário de Jesus, que também parecem fazer um pouco disso, transformando suas conclusões quase num debate político contra a direita evangélica fundamentalista americana (Crossan deve ficar frustrado com certas afirmações desses caras).

Mas nem tudo é assim. Há estudiosos que sabem separar fé de história e acreditam que as fontes precisam ser analisadas sem medo de quais conclusões possam ser alcançadas. Por incrível que possa parecer para um apologeta, existem pessoas que simplesmente estão procurando a verdade; que buscam a verdade sem se importar em mudar de opinião, e essa é a maioria dos estudiosos, basta lê-los para perceber isso (vocês nunca ouviram falar de Dale C. Allison Jr., por exemplo? Leiam meio livro dele para ver o que é a busca sincera pela verdade). Estudiosos como Sanders, Fredriksen, Collins, Dunn, Meier, entre tantos outros, (muitos deles cristãos convictos), não são apologetas nem de um lado e nem de outro; apenas estão tentando entender a realidade. Essas pessoas podem errar, e certamente erram, mas estão sendo sinceras com suas fontes.

Dizer que quem está do lado crítico faz apologética da critica é uma afirmação evasiva de quem acha que todo mundo tenta defender uma causa, quando, na realidade, existe gente sincera que busca entender o que acontece ao seu redor. É certo que o sujeito está envolvido com qualquer análise histórica; o passado explica o presente tanto quanto o presente explica o passado, e é impossível fugir disso. Contudo, já está na hora de os apologetas admitirem que existe uma forma aceitável a todos para se determinar com certo nível de probabilidade o que aconteceu no passado, mesmo que o sujeito que faz a análise esteja envolvido em sua pesquisa e não consiga sair de si mesmo para fazer o seu trabalho. Se isso não for verdade, qualquer côrte de justiça que busca determinar o que aconteceu no passado ao investigar um crime estaria condenando pessoas por vontade própria de quem julga as fontes. Sabemos que isso não é real.

Pelo preço de R$ 40,00, a compra até que vale a pena, mas, se você nunca leu nada sobre o assunto proposto pelo livro, não comece por ele: leia O Jesus Histórico, Um Manual, de Gerd Theissen -- este é o lugar certo para começar. Existem muitos livros já traduzidos e escritos originalmente em português, especialmente das Edições Loyola e da Editora Paulus, que jamais chegam nas mãos do público mais geral das igrejas evangélicas, porque tudo o que se conhece nesse meio, em questão de editoras, é aquele pessoal homologado pelos grandes nomes da apologética neste país. No Brasil, infelizmente, defesa da fé confunde-se com metodologia histórica.

07/10/2021

O surgimento das primeiras cidades e o desenvolvimento da religiosidade mitológica dos povos antigos

Nota: o trecho abaixo foi extraído do livro “A angústia de Abraão”, pp. 57-8, do autor Emílio Gonzales Ferrín.

 

É provável que a primeira tentativa sistemática de explicação do mundo tenha sido a mesopotâmica. O testemunho escrito — histórico — de algumas das distintas civilizações assentadas principalmente nas bacias dos rios Tigres e Eufrates — em torno do atual Iraque, principalmente — remonta até o ano 3000 a.C. Sumérios, acádios, babilônicos, assírios e hititas se sucederam na Mesopotâmia, gerando uma complexa interpretação do mundo e suas origens — cosmogonia — que pôde chegar até nós pela grande contribuição instrumental de tais povos: a escritura cuneiforme; uma forma de registro providencialmente longeva. O conteúdo desses textos varia: desde registros musicais, jurídicos, comerciais ou reflexões pessoais, até a citada cosmogonia mesopotâmica: uma narração proveniente do tempo sumério — 3000 a.C. —, e provavelmente fixada na época babilônica — anos 1000 a.C. —, quando se compila uma visão sobre a criação dos deuses, o mundo e o ser humano.

Um dos poemas que contêm tal cosmogonia é, por exemplo, o Enuma Elish, ou poema babilônico da criação. O nome de Enuma Elish provém das duas primeiras palavras do poema: Quando, lá no alto... um bom começo de um primeiro poema cosmogônico, sem dúvida, e de semelhança nem um pouco dissimulada com o primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, em hebraico. Be-reshit, no princípio..., livro que bebe profusamente das fontes babilônicas. De fato, pode-se dizer que o Enuma Elish recolhe pela primeira vez — até onde sabemos — elementos narrativos paradigmáticos para o restante das cosmogonias: criação, ordem sobre o caos, sequência das coisas criadas, assentamento das águas, dilúvio universal, e um sem-fim de elementos comuns a tantas outras visões sobre a origem do mundo e do ser humano.

Mesopotâmia provém do grego (Μεσοποταμία) — entre rios —, indubitável versão do aramaico bez nahrin ou do persa miyanrudan, que têm exatamente a mesma tradução. Ambos os rios citados e aqui referidos — o Tigre e o Eufrates, Dachla e Furat nas tradições desembocadas no árabe — compartilham um complicado regime de cheias e vazantes no nível das águas, provocando inundações tais que se pode compreender a razão de ser de uma cosmogonia surgida das águas estabelecidas, assim como maldições consistindo de enchentes ou dilúvios. Também se poderá compreender a necessidade de um trabalho comum para tirar proveito de alguns rios, cuja desmesura não permite economias familiares, mas protoestatais: o sistema de represas, canais e muros de contenção que requer o aproveitamento de tais rios se acerca à visão das origens estatais postuladas por Wittfögel em sua obra O despotismo oriental; toda aquela teoria sobre as chamadas dinastias hidráulicas. Não é casual que as origens do estado e da história — tempo resenhado por escrito — possam ser rastreadas em economias semelhantes, baseadas na necessidade de mover massas de trabalhadores: bacia do Nilo, do Ganges, e inclusive do Iangtzé, na China. E é evidente que tudo que agora contemplamos como textos religiosos eram em seu momento — já fizemos alusão a isso — visões de mundo protocientíficas, provavelmente a serviço de ideologias — unidade estatal — ou grupos de poder, tais como castas de escribas, no futuro conhecidas como sacerdotais.

Coincide a aparição da escrita — de novo, em torno do ano 3000 a.C. — com o apogeu da civilização Suméria e suas cidades/estado: Uruk principalmente, mas também Eridu, Kish, Lagash, Ur... É interessante presenciar como a história do Oriente Médio é a de suas cidades... além do mais, esta essencial descentralização territorial corresponde a um absolutismo de poder em cada cidade, na qual governava um rei indefectivelmente autorreconhecido como representante do deus patrono da cidade. Daí o valor de tradição unificadora que ligue com as origens do mundo — a viagem desde meu deus a um deus —; daí o crivo como patrimônio exclusivo de uma casta — o povo era analfabeto —, e daí os ímpetos religiosos de tal casta: não só deve o povo obedecer, mas nisso está a garantia da salvação eterna. Embora, sem dúvida, o processo deva ter sido inverso: Como podemos fazer com que o povo obedeça? Indicando que pode perder a vida eterna...

01/10/2021

Desenvolvimento no cristianismo: história e construção civilizacional

É inegável que tenha existido, desde o princípio do movimento de Jesus, uma evolução e desenvolvimento na liturgia cristã. Acreditar que os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré usavam vestes simbólicas e utensílios de ouro em reuniões que aconteciam de maneira humilde nas suas próprias casas é uma imaginação purista e, acima de tudo, apologética, algo criado por mentes que não conseguem aceitar que suas crenças não são exatamente as mesmas dos primeiros judeus discípulos de Jesus. 

Todo esse desenvolvimento da liturgia, tanto em imagem quanto em forma, acompanhou o desenvolvimento teológico sobre quem foi e o que significava Jesus, enquanto essa atualização teológica também veio acompanhada de influências filosóficas externas e de maneiras de explanar e enxergar o mundo e a realidade. Quando o movimento de Jesus deixou de ser uma seita judaica, permitindo a entrada de vários gregos (não-judeus/gentios), sem a necessidade da circuncisão e da atenção às leis dietéticas e ao calendário sagrado (marcas étnicas de uma cultura exclusivamente judaica), bastou alguns séculos para que o neoplatonismo se tornasse a língua franca para explicar Jesus de Nazaré. Com o passar dos anos, essa nova linguagem filosófica, ainda que sendo instrumentalizada para falar de algo judaico em essência, também deixou suas marcas no culto cristão, na institucionalização e padronização da forma de se fazer uma reunião cristã.

Mais tarde, quando a filosofia aristotélica também foi adicionada a esse caldeirão cultural que formou o jeito cristão de se cultuar a Deus, a forma medieval da Missa estava completa. Quando, no alvorecer da modernidade, Martinho Lutero tentou separar Moisés de Aristóteles, ele havia esquecido (ou nem se deu conta!) de que Platão também estava presente, e manteve a linguagem da filosofia grega para explicar Jesus, firmando-se no Credo de Nicéia. Foi preciso mais três séculos até que um outro alemão pudesse chegar às conclusões lógicas da metodologia crítica e mostrar que a teologia estava equivocada quanto à sua concepção histórica a respeito de Jesus e dos seus discípulos originais — Reimarus foi o reformador derradeiro, mas o seu Jesus jamais servirá como força motivadora que dará base a uma cultura inteira. Esse Jesus serve apenas para a academia, e a busca do Jesus histórico, o profeta apocalíptico dos últimos dias, é um exercício para as mentes inquietas, não para o cidadão comum, que não tem tempo para gastar com livros intermináveis, enquanto luta diariamente para sustentar a sua família. Esse homem precisa de um ponto firme, um imaginário que dê sentido à sua vida, ainda mais se deixarmos de lado o reducionismo materialista e nos abrirmos à possibilidade de que a realidade seja muito mais complexa e estranha do que possamos imaginar.

Com todo esse patente crescimento e evolução naquilo que se tornou o cristianismo, nem católicos estão certos ao acreditarem que o cristianismo dos pais da igreja é o original, nem protestantes ao pensarem ter se livrado da capa católica, mas que mantêm aquilo que jamais passou pela cabeça de Pedro e Paulo quando falavam sobre Jesus. O cristianismo como o conhecemos hoje é fruto do próprio desenvolvimento do pensamento ocidental como um todo, e jamais poderemos chegar a uma forma original dos primeiros discípulos — eles não eram cristãos como entendemos hoje, mas judeus, e, mesmo entre eles, não havia um consenso sobre quem foi Jesus e o que ele significou, vide todas as divergências de opinião a esse respeito presentes ainda nos escritos que formam o Novo Testamento. A seita judaica que posteriormente viria a se tornar a religião cristã sempre foi multifacetada, desde o início. 

A meu ver, não há sentido em querer se livrar de desenvolvimentos naturais que aconteceram ao longo de vinte séculos de história cristã para buscar um cristianismo supostamente apostólico ensinado por Jesus e seus primeiros seguidores. Aquilo que começou de maneira humilde como uma seita apocalíptica dentro do caleidoscópio de opiniões sobre como a religião de Moisés deveria ser seguida e vivida que era o judaísmo do segundo templo acabou por se tornar a religião do império que antes a perseguia. Essa constatação, sozinha, deveria acender o sinal de alerta para quem imagina que o cristianismo se manteve perfeitamente constante durante todo esse tempo. As próprias circunstâncias exigiriam uma evolução em muitos aspectos. Uma delas, é óbvio, esteve ligada à maneira de se reunir para adorar ao seu Deus.

A religião é o motor da sociedade, e o cristianismo como o conhecemos hoje, em suas várias vertentes culturais diferentes, é o que nos move como brasileiros e o que nos formou como nação e povo. Mesmo com os perigos intelectuais que isso possa acarretar, e ainda correndo o risco de ser usado por líderes maldosos, me parece que, para o cidadão comum, por prudência e preservação da tradição ocidental, talvez seja mais seguro seguir o cristianismo com a capa neoplatônica dos pais e o aristotelismo dos tomistas — apesar de sua origem pagã (pelo menos em essência) — do que o apocalipticismo judaico do mestre: o primeiro foi bem construído para durar; o último se desfez logo, pois esperava um fim que jamais veio.