30/06/2021

Apocalipse Sinótico: a demora da parousia e a apologética cristã

Um dos episódios mais notáveis dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) é o chamado Apocalipse Sinótico (Mateus 24, Marcos 13 e Lucas 21), o discurso de Jesus a respeito da destruição do templo e a final intervenção de Deus sobre a história, inaugurando o reino. A cena levanta alguns sérios questionamentos por parte de quem lê a Bíblia como um livro que ainda precisa fazer sentido, mesmo não atualizado ou adaptado, para a sua vida pessoal nos dias de hoje. Isso se deve pelo fato de que o discurso de Jesus nessas passagens parece fazer referência a um fato histórico que aconteceu no ano 70 da era comum: a destruição de Jerusalém pelos romanos e a derrubada do templo. Ora, se Jesus predisse que a destruição do templo acarretaria na vinda imediata do reino ("não passará esta geração sem que tudo isso aconteça"), por que ainda estamos esperando, depois de mais de dois mil anos, a volta de Jesus e a vinda do reino de Deus?

Muitas vertentes teológicas produziram respostas a essa pergunta óbvia para quem, dentro de uma confessionalidade cristã fundamentalista, procura entender esse texto dentro da seguinte racionalização: a Bíblia não pode conter erros. Portanto, precisamos encontrar o real significado das palavras de Jesus no Apocalipse Sinótico, pois ele não teria se enganado a respeito do tempo da vinda do reino. As respostas para essas indagações são variadas. Alguns falam em uma vinda simbólica do reino após a destruição do templo no ano 70; outros disseram que a geração a que Jesus se refere não é a dele, mas a geração que veio depois do reestabelecimento da nação de Israel em 1948, após o término da Segunda Guerra Mundial; outros, ainda, tentam guardar as duas pontas do espectro, afirmando que Jesus se referia ao ano 70, mas que havia algo a mais em suas palavras: o significado do texto é a guerra dos judeus com os romanos, mas o significante do texto está no futuro, isto é, o texto é uma prévia do que acontecerá muitos séculos depois.

Apesar de as respostas serem diferentes, elas estão unidas em um objetivo único, mesmo que implícito: demonstrar que Jesus (ou melhor, os autores que colocaram essas palavras na boca dele) estava(m) falando de um tempo futuro, uma época distante, provavelmente a nossa. Certamente, uma leitura teológica, que faz com que o texto ainda tenha sentido para os leitores atuais, é válida. Todavia, a meu ver, essa não é a forma mais segura de abordar esses textos se o seu objetivo for entender o que os autores queriam dizer em seu contexto original e aquilo que eles esperavam que os seus leitores originais entendessem. O fato de a Bíblia ser considerada, por quase todos os cristãos, como um livro divino, os faz aproximarem-se dela de uma forma que não fariam com qualquer outro texto antigo cujo significado estejam procurando. Em outras palavras, o pressuposto da inspiração divina da Bíblia impede que o leitor entenda exatamente o que os autores estavam querendo dizer.

A menos que isso seja implicitamente óbvio ou explicitamente negado pelo autor, ele estará, invariavelmente, falando com seus leitores imediatos. Para se entender o que ele queria dizer quando escreveu, portanto, é preciso levar em conta o seu contexto e os seus primeiros leitores; é preciso entender o meio histórico em que o autor estava inserido. Sendo assim, me parece mais seguro partirmos do pressuposto de que um autor do século primeiro estivesse falando para pessoas da sua época e dificilmente estaria pensando em dois mil anos à frente. Quando escreveram (ou copiaram e editaram) o Apocalipse Sinótico, os evangelistas (autores dos evangelhos) não estavam pensando em nossa geração, mas nas comunidades cristãs das quais faziam parte; em um momento histórico onde, após alguns anos da morte de Jesus, eles ainda aguardavam ansiosos pela vinda do reino que ele mesmo havia prometido. Para eles, o reino viria a qualquer momento.

Tendo isso em vista, meu ponto é que os autores achavam que Jesus voltaria no tempo deles, e interpretar o Apocalipse Sinótico como um texto escrito para o futuro no sentido de algo que aconteceria somente depois de muitos anos não é exegese, mas uma reinterpretação de profecias que não se cumpriram conforme os seus autores acreditavam. Me parece mais razoável dizer que a ânsia por responder à pergunta "por que Jesus ainda não veio?" deu origem a tais explicações engenhosas sobre as profecias a respeito de sua vinda; faz mais sentido pensar que essa engenhosidade de interpretação não é exegese, mas uma tentativa, ainda que inconsciente, de salvaguardar a inspiração da Bíblia e de provar a verdade do cristianismo baseando-se em profecias que não podem falhar. Nessa ânsia, alguns cristãos reinterpretaram profecias que não tinham nada a ver com o seu momento histórico para fazê-las terem sentido, pois, para eles, é claro que Jesus não poderia ter se enganado sobre a vinda do reino naquela geração. Isso, contudo, não me parece ser exegese, mas apologética cristã.

Aqui, é necessário apontar a atualização da mensagem de Jesus sobre o reino, feita pelos primeiros cristãos, para a mensagem dos cristãos sobre a volta de Jesus trazendo esse reino: com a morte de Jesus e as experiências com a ressurreição, os cristãos misturaram a pregação inicial de Jesus com a ideia de que ele mesmo traria o reino no seu retorno, colocando-o no centro dessa vinda do reino. A igreja, desde o seu primórdio, crê na volta de Jesus, e essa crença, juntamente com a demora da parousia (a volta de Jesus), fez com que tais engenhosidades hermenêuticas surgissem. Como eu disse acima, era preciso responder à pergunta "por que Jesus não veio ainda?" Visto que Jesus não poderia estar errado sobre a vinda desse reino e ele está (ou estava) demorando para vir, é necessário encontrar um meio de dizer que o autor não disse exatamente aquilo que está escrito.

Um dos exemplos mais claros, ainda no Novo Testamento, dessa necessidade de explicar a demora da volta de Jesus e, consequentemente, da vinda do reino, está na segunda carta atribuída a Pedro:

"Mas há uma coisa, amados, que vocês não devem esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a julguem demorada. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento. Porém, o Dia do Senhor virá como um ladrão. Naquele dia os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se desfarão pelo fogo. Também a terra e as obras que nela existem desaparecerão." (2 Pedro 3:8-10)

Esse autor, diferente dos modernos, tenta resolver o problema da demora com uma resposta simples: para Deus, o tempo não passa como para os seres humanos. Aqui, fica evidente que as primeiras gerações de cristãos já se preocupavam com essa demora. Eles estavam com problemas, e esses problemas, conforme as gerações passavam, deram origem às engenhosidades hermenêuticas apresentadas acima. Quando o autor da carta de Pedro fala em mil anos para o Senhor, deixa transparecer os questionamentos de uma geração que já estava pensando na demora na volta de Jesus — aliás, esse é um dos motivos que levam os estudiosos a concluírem que essa carta não pode ter sido escrita pelo apóstolo de Jesus, pois demonstra as frustrações de uma geração posterior a Pedro, onde o adiamento da vinda do reino estava começando a se tornar um problema nas comunidades.

Ainda dentro do Apocalipse Sinótico, há uma outra indicação de que o autor está tentando explicar por que o reino ainda não veio se Jesus havia prometido algo imediato:

"Estejam de sobreaviso, porque as pessoas os entregarão aos tribunais e às sinagogas. Vocês serão açoitados e, por minha causa, serão levados à presença de governadores e reis, para lhes servir de testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações." (Marcos 13:9-10, ênfase minha).

A inclusão dessa cláusula sobre a pregação para todas as nações demonstra uma preocupação com certa demora da vinda. Jesus afirmou a vinda iminente do reino e morreu. Os cristãos acharam que ele viria trazer o reino logo, mas estavam começando a sentir a demora.

Há, ainda, um outro autor neotestamentário que deixa escapar uma inquietação a respeito da demora da parousia. No Evangelho de Lucas e no Livro dos Atos dos Apóstolos, escritos depois de Marcos, o autor tenta acalmar os seus leitores: “Ouvindo eles estas coisas, Jesus contou uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o Reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente.” (Lucas 19:11); "Então os que estavam reunidos com Jesus lhe perguntaram: Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel? Jesus respondeu: Não cabe a vocês conhecer tempos ou épocas que o Pai fixou pela sua própria autoridade." (Atos 1:6-7). Tenham paciência, diria esse autor, e não se preocupem com isso. As coisas acontecerão no tempo de Deus.

Esses não são os mesmos motivos que fazem os cristãos da atualidade acharem que a vinda é iminente, mas a preocupação é a mesma: Jesus achava que o reino viria em seus dias, mas ele ainda não veio. Por que está levando tanto tempo? Por que Jesus ainda não voltou? Acalmem-se, diriam os autores, ainda nos resta o tempo dos gentios; Jesus voltará depois de pregarmos a todas as nações. Portanto, vamos embora pregar, porque ele mesmo disse que não passaria dessa geração; as coisas acontecerão no tempo de Deus; para o Senhor, mil anos são como um dia; na verdade, Jesus não falava daquela geração, mas da nossa, etc. Essas respostas, porém, por mais que sejam satisfatórias desde uma perspectiva teológica e de apropriação textual -- afinal, um texto antigo pode ser resignificado para o leitor atual, ainda mais em se tratando de um texto religioso --, não servem para quem quer apenas entender o que os autores e Jesus de Nazaré queriam dizer em seu contexto original.