06/11/2017

A Arquitetura da Igreja Antiga

Artigo retirado do Dictionary of Late New Testament & Its Developments, InterVarsity Press, Editores: Ralph P. Martin e Peter H. Davids, pp. 91-95.

Tradução: Renan Rovaris

Arquitetura, Igreja Antiga

Evidências literais e não literais apontam para a residência doméstica como sendo a via para as reuniões cristãs primitivas. Esse padrão é afirmado no Livro de Atos dos Apóstolos, onde lemos que os primeiros crentes se reuniam em casas privadas, e nas cartas de Paulo, onde vemos que as novas comunidades estabelecidas pelo apóstolo eram centradas em casas. As reuniões de cristãos em casas privadas continuaram a ser a norma até as primeiras décadas do século IV, quando Constantino (Imperador Romano) começou a erguer as primeiras basílicas cristãs. Durante quase trezentos anos, os crentes se reuniram em casas, não em sinagogas ou edifícios construídos com o único propósito de reuniões religiosas.

  1. A Necessidade e Desenvolvimento de Casas-Igrejas
  2. A Casa-Igreja, 50-150
  3. Domus Ecclesiae, 150-250
  4.  Aula Ecclesiae, 250-313

1.  A Necessidade e o Desenvolvimento das Casas-Igrejas

A reunião de cristãos em Casas-Igrejas não ocorreu por acaso. Quatro razões se destacam para a escolha da casa como um local de encontro. Primeiro, os “aposentos superiores” (At 1:13) e residências domésticas estavam disponíveis imediatamente. Segundo, a estrutura doméstica oferecia um local de encontro relativamente discreto. Embora o ambiente doméstico não fosse uma garantia contra a perseguição, (veja At 8:3), nos primeiros anos, quando a perseguição era uma ameaça, os cristãos eram discretos ao fazer suas escolhas para locais de reunião. Terceiro, os judeus na Palestina e na Diáspora se reuniam em Casas-Sinagogas. Visto que muitos dos crentes primitivos eram judeus e prosélitos (gentios convertidos ao judaísmo), não é difícil imaginar as comunidades cristãs adotando padrões judaicos, principalmente se levarmos em conta a similaridade que havia entre as atividades da Casa-Igreja e da Casa-Sinagoga. Quarto, a “casa” fornecia tudo o que era necessário para uma reunião cristã e, o mais importante, também oferecia as instalações necessárias para preparar, servir e tomar a Ceia do Senhor.

O período cristão primitivo de 50-313 pode ser dividido aproximadamente em três estágios de desenvolvimento. Durante o primeiro estágio (c. 50-150), os cristãos se reuniam em casas privadas que pertenciam a membros individuais, ou benfeitores, da comunidade. O nome “Casa-Igreja” é mais apropriadamente aplicado a este período. A Casa-Igreja, por definição, é uma casa, uma residência doméstica, que não teve sua arquitetura alterada para a reunião cristã e era usada pelo menos ocasionalmente pela comunidade cristã local ou por parte dela.

Durante o segundo estágio (c. 150-250), residências domésticas privadas foram renovadas para o uso exclusivo de reuniões das comunidades cristãs. Em alguns casos, essas casas reformadas haviam sido usadas anteriormente como um local de reunião pelos crentes durante períodos mais antigos. Essas alterações arquitetônicas e mudança de função são duas características da assim chamada domus ecclesiae, apropriadamente traduzido ao português por “centro da comunidade” ou “casa de reunião”.

Durante o terceiro e último período (c. 250-313), construções maiores e salões, privados e públicos, foram usados. Esses edifícios maiores precederam a arquitetura das basílicas da era de Constantino, e algumas delas podem ter funcionado como domus ecclesiae anteriormente. Tais construções tinham um formato retangular e não apresentavam nenhuma característica formal da arquitetura das basílicas posteriores.

Descobertas arqueológicas recentes permitiram a reconstrução da história da arquitetura cristã. A discussão que se segue aqui oferece os desenvolvimentos mais abrangentes da arquitetura das igrejas anteriores à era de Constantino, juntamente com alguns exemplos ilustrativos.

2. A Casa-Igreja

O Livro de Atos dos Apóstolos nos apresenta uma imagem de crentes primitivos se reunindo regularmente em casas e “aposentos superiores” (At 2:46; 5:42; cf. At 1:13, 15-16; 20:7-8). Duas possibilidades se apresentam: a comunidade primitiva alugava um aposento que era parte de uma residência doméstica (cf. P.Oxy 1129, 1036, 1038, 2190 e P. Mich. Inventory 319) ou um benfeitor cristão e proprietário de uma casa separava um aposento, ou um andar inteiro de aposentos, para o uso da comunidade primitiva.  Existem evidências do Farisaismo do Segundo Templo confirmando que salões de segundo andar e salas de jantar (triclinium) eram usados como um local de estudo e haburoth, ou reuniões da “irmandade” (e.g., M. Sabb. 1:4).

Em Atos 12:12, Pedro, tendo escapado da prisão, vai até a casa de Maria, mãe de João Marcos, onde muitos dos crentes estavam reunidos orando. Presumivelmente, essa era uma casa disponibilizada regularmente para a comunidade. Os detalhes incidentais sugerem que essa casa não fazia parte de uma insulae, ou complexo de “apartamentos”, mas era uma casa grande com um acesso ou portal que servia de separação entre a rua e o pátio interior e os cômodos.

Lucas não nunca mostrou toda a comunidade pós-pentecostes reunida em um local. Se nós temos que entender o número três mil como uma contagem acurada desses crentes em algum sentido, (At 2:41; cf. At 4:4; 5:14; 6-7), eles obviamente não poderiam ter se reunido debaixo de um único telhado. A própria instrução de Pedro para o grupo reunido na casa de Maria sugere a realidade de múltiplos lugares de reunião: eles deveriam comunicar a sua libertação do cárcere para Tiago e “os irmãos” (At 12:17), que estavam presumivelmente se reunindo em outro lugar.

O problema da comunidade cristã primitiva em garantir um número suficiente de casas para as suas reuniões pode encontrar a sua solução no judaísmo do mesmo período. A maioria das sinagogas eram cômodos únicos de casas. A maioria dos crentes primitivos que residiam em Jerusalém eram judeus, e o seu número incluía indivíduos que possuíam meios financeiros. É plausível que alguns desses judeus cristãos houvessem aberto suas casas anteriormente (ou parte delas) para a comunidade da sinagoga. Teria sido natural para esses patronos, tendo agora se tornado seguidores de Jesus, usar as mesmas instalações como um lugar de reunião para a comunidade cristã.

Arqueólogos descobriram ruínas de residências domésticas em Jerusalém que nos permitem ter um relance das condições sob as quais esses cristãos primitivos podem ter se reunido. Escavações em uma área a oeste da cidade (Cidade Alta) revelaram um distrito residencial que incluía algumas casas bastante grandes. As unidades de habitação individuais eram extensas, com pátios interiores, característica de vilas luxuosas construídas no estilo do período helenístico-romano. Esse era o local onde viviam as famílias nobres de Jerusalém.

A assim chamada Mansão Palacial é um exemplo de residência ostentosa que poderia facilmente ter acomodado os tipos de atividades descritas em Atos. A casa media mais de 600 m² e incluía um andar superior para habitação e um porão para instalações de água (piscinas, banhos e cisternas). A estrutura provavelmente incluía um segundo andar, um nível formado por quartos, mas a destruição de Jerusalém no ano 70 tornou a reconstrução desse andar impossível.

Os numerosos cômodos dessa espaçosa mansão eram agrupados ao redor de um pátio. Os afrescos ornamentados encontrados em muitos cômodos testificam a forte influência helenista, como também pode ser observado em Pompéia. Duas características proeminentes são dignas de nota: primeiro, o grande salão de recepção medindo 6,5 metros de largura e 11 metros de comprimento (71,5 m²). O acesso vindo do pátio era através de uma sala de separação por meio da qual outras áreas também podiam ser acessadas. Nossa estimativa é de que esse salão de recepção poderia ter acomodado setenta e cinco pessoas. O acesso para outros três cômodos menores era feito somente através desse salão. Os afrescos ornamentados (colunas Jônicas contendo um friso Dórico esquematizado) nesses cômodos sugerem um caráter público. Tomando como um todo, o salão e os cômodos adjacentes teriam acomodado muito confortavelmente cerca de cem pessoas.

A segunda característica são as instalações de água no andar inferior. Juntamente com um pequeno e lindo banheiro decorado, havia dois banheiros maiores para a realização de rituais, cada um com uma entrada dupla. N. Avigad sugere que a ênfase na purificação ritualística nesse domicílio beira um “culto de imersão.”

Atos fala sobre um número significativo de sacerdotes que creram na pregação dos apóstolos (At 6:7). Embora Atos não faça uma correlação entre esses sacerdotes e as reuniões domésticas, nós encontramos um padrão consistente de convertidos que poderiam ter sido benfeitores significativos, incluindo a provisão de casas para a comunidade se reunir. Instalações com água como aquelas na Mansão Palacial poderiam ter sido aproveitadas para batismos cristãos.

Vários  textos em Atos (do capítulo 13 ao 18) e nas epístolas paulinas fazem referência a residências privadas que eram usadas como lugares para os cristãos reunirem-se e que eram onde o apóstolo encontrava hospitalidade em suas viagens (veja 1 Co 16:19; Cl 4:15; Fl 2; Rm 16:5).

Na narrativa seletiva que Lucas faz das missões de Paulo e do estabelecimento de igrejas pelo Império Romano, encontramos Paulo convertendo consistentemente proprietários capazes de ser benfeitores, incluindo o oferecimento de uma casa para a reunião dos cristãos (e.g. Lídia, At 16, e Tito, o Justo, At 18). Isso era importante porque o domicílio predominante em áreas urbanas era a insula, ou um complexo de apartamentos: somente 3% da população viviam em um domus, ou casa.  O número desproporcional de insulae é provavelmente uma evidência do alto custo de moradia. Ter uma casa e propriedade era um dos indicadores principais de riqueza e status. Assim, a conversão de uma família ou chefe de família era um meio estratégico de estabelecer um novo culto em um ambiente desconhecido, e a família permaneceria como a base mais forte para as reuniões dos cristãos.  

É razoável assumir que, em Corinto, por exemplo, Áquila e Priscila teriam aberto a sua casa para a comunidade cristã. Quando se mudam para Éfeso com Paulo (At 18:18), eles estão com uma “igreja em sua casa” (1 Co 16:19 e também algumas testemunhas apócrifas), e quando mais tarde restabelecem sua residência em Roma (At 18:1-2), novamente eles têm uma “igreja em sua casa” (Rm 16:3-5).

Visto que as Casas-Igrejas não demandavam alterações arquitetônicas, seus restos arqueológicos são indetectáveis, a menos que elas fossem posteriormente incorporadas a uma domus ecclesiae e/ou uma aula ecclesiae. Em Corinto, as escavações das ruínas da vila romana nas imediações do Portão de Sicião (Sicyonian Gate), a casa nas mediações do Templo E e a suntuosa vila em Anaploga são exemplos de residências nas quais a comunidade primitiva teria se reunido.

3. Domus Ecclesiae, 150-250

A mudança radical na posição social e na composição das comunidades cristãs demandou mudanças nos locais de reunião. Mais precisamente, comunidades mais pobres continuaram a se reunir em residências domésticas, mas em muitas áreas os cristãos começaram a adquirir propriedade, talvez por meio de procurações através de um membro ou do bispo.

3.1. Cafarnaum, Galiléia. As escavações arqueológicas em Cafarnaum sugerem que a antiga casa de Pedro foi transformada posteriormente em uma domus ecclesiae e pode ser a evidência mais antiga do que foi originalmente uma Casa-Igreja. Diferente das ruínas em Dura-Europos, as ruínas em Cafarnaum não permitem uma reconstrução perfeita do edifício original e de sua história de desenvolvimento estrutural porque uma igreja bizantina octogonal do século V foi construída no mesmo local e porque a subsequente invasão persa de 614 resultou no fim do domínio cristão bizantino e na demolição dos locais cristãos. Entretanto, com o renovado interesse na Galiléia e com detalhados relatórios arqueológicos, uma reconstrução satisfatória é possível.

Debaixo da igreja bizantina octogonal estão os restos de duas construções mais antigas. Os restos mais antigos testificam sobre uma insula comum, ou construções acopladas, que eram habitações domésticas próprias da pequena comunidade de pescadores de Cafarnaum. Dentro desse complexo, datando do primeiro século d.C., há um grande salão (7x6.5 m = c. 45.5 m²) que foi venerado por cristãos como sendo a casa de Pedro. Este salão provavelmente foi usado pela comunidade local de cristãos judeus enquanto outros cômodos da insula continuaram a funcionar como parte da residência doméstica.  Essa adaptação parcial da casa, com os cômodos circundantes continuando a fazer parte da vida do dia a dia, continuou até o período romano tardio, quando a comunidade aumentou a antiga casa adicionando ao salão um átrio ao leste e dependências ao norte e fechando toda a pequena insula da casa de Pedro dentro de um recinto sagrado para servir às necessidades da comunidade e dos peregrinos. Subsequentemente, esse complexo inteiro foi suplantado pela igreja octogonal do século V.

3.2. Dura-Europos, Síria. A evidência de Dura-Europos, uma cidade de guarnição do século III na Síria, provê o testemunho arqueológico mais convincente de uma domus ecclesiae cristã. De forma conservadora, estima-se que a casa privada foi construída em 232/33 e renovada (de uma só vez) em cerca de 240/41. Embora seja um pouco maior do que a maioria das habitações privadas em Dura, a sua aparência exterior não teria sugerido algo além de uma habitação privada.

Os restos foram descobertos em um estado de conservação relativamente bom em 1931, e o edifício cristão foi escavado de 1932 a 1933. A boa qualidade das ruínas se deve ao fato de que Dura foi destruída em 236 pelos Sassânidas e não foi mais repovoada.

Quando a casa foi reformada pelos cristãos, três mudanças maiores foram introduzidas. Primeiro, a parede dividindo o divã e o cômodo adjacente foi removida, criando com isso um grande salão de reunião medindo 12.9 x 5.15 m (c. 66.5 m²). À ponta leste do cômodo, havia uma pequena plataforma, ou estrado (trono), que provavelmente foi usado durante a leitura e o ensino. Um cômodo menor foi transformado em um batistério. Essa parece ser a evidência mais antiga de uma adaptação estrutural com o propósito de construir uma fonte batismal. Uma marquise também foi instalada, e as paredes foram decoradas com afrescos. O pátio central foi coberto com azulejos (mosaicos) e bancos (50 cm de comprimento e 42 cm de altura) foram construídos ao redor das paredes. Todas essas renovações sugerem uma comunidade cristã desenvolvida e organizada. É difícil determinar, porém, se os jantares comunais eram realizados nesta domus ecclesiae em particular.

Dentre as razões para a transição da Casa-Igreja para a domus ecclesiae estão o tamanho da comunidade e a diversidade das atividades. Em meados do ano 250, por exemplo, os crentes em Roma eram cerca de três mil. Tal crescimento tornou necessária a remodelação de estruturas existentes. A necessidade de acomodar atividades diversas deixou sua marca nas características arquitetônicas. Por exemplo, a separação da Eucaristia da Festa do Amor (Jantar Ágape) significava que um local para jantar e para cozinhar não era mais necessário. Ao invés disso, um local formal foi implementado (incluindo um “trono”, Didascalia Apostolorum 12) com a comunidade virada para o estrado, ou trono. Uma distinção foi feita entre os catecúmenos e os membros, e características particulares, como as fontes batismais, foram adicionadas. Deste modo, foi realizada a transição da Casa-Igreja para a domus ecclesiae.

4. Aula Ecclesiae, 250-313

Certas ruínas preservadas debaixo de algumas igrejas em Roma mostram antigas estruturas usadas por comunidades cristãs. Muitas dessas antigas tituli (um termo legal relacionado ao estabelecimento de propriedade, ou título) de Roma se tornaram locais de basílicas, preservando uma tradição de um “local sagrado” (loca sancta). A Basílica S. Crisogono (Titulus Chrysogoni) é um exemplo incontestável de uma aula ecclesiae em Roma. Ela está localizada na antiga Via Aurelia, e a basílica foi construída através da incorporação de um grande salão retangular preexistente (29.5 x 15.25 m). Esse salão em particular data do início do século IV (c. 310).

Essa estrutura pré-Constantiniana foi usada como uma construção da igreja, mas o salão não era reconhecido como tal. Ele era um tipo comum de salão de reuniões romano encontrado em construções administrativas e outras. As únicas indicações que podem ser reconhecidas do seu uso pelos cristãos são o anteparo para o coro e cômodos laterais que poderiam ter sido reservados para os catecúmenos.  

Embora o uso da domus ecclasiae tenha continuado até o século IV, no início desse mesmo século, os cristãos começaram a usar construções públicas como locais de reunião. Essa mudança acompanhou o colapso das perseguições periódicas (e.g., Diocleciano em 303-5) e o reconhecimento do cristianismo por Constantino, o que culminou no Édito de Milão em 313.