03/11/2021

Book Review #5 - A Vida de Jesus Examinada Criticamente (David Friedrich Strauss)

A Vida de Jesus Examinada Criticamente, de David Friedrich Strauss, é um daqueles livros que quase ninguém conhece, mas que impactou o ocidente de maneira irreversível. Certa vez, um comentarista afirmou que este foi "o livro mais pestilento já vomitado pelas mandíbulas do inferno". Após Strauss, os milagres como fatos históricos foram retirados de vez da Busca.

Strauss foi o primeiro autor a trazer a ideia do mito para explicar os Evangelhos. Em resposta aos racionalistas (os quais afirmavam que os episódios da vida de Jesus poderiam ser explicados sem recorrer aos milagres) e aos sobrenaturalistas (que acreditavam na literalidade dos acontecimentos narrados pelos evangelistas), o autor afirmou que, mais do que fatos reais ou coisas que podem ser entendidas de maneira racional se a capa sobrenatural for retirada, os episódios milagrosos foram mitos criados pela mentalidade antiga e aplicados à vida de Jesus. Para Strauss, os primeiros cristãos desenvolveram essas histórias milagrosas como uma apologia a sua visão do que o messias deveria ser idealmente. Dessa forma, por exemplo, o autor do Evangelho Segundo Mateus cunhou a sua narrativa do nascimento de Jesus tomando como base as histórias de Moisés e Israel que aparecem no Antigo Testamento: assim como Moisés foi perseguido ainda quando criança por faraó, Jesus também foi perseguido por Herodes; assim como o povo de Israel teve seu êxodo do Egito, Jesus também saiu daquela nação, etc.

O livro de Strauss causou indignação e alvoroço na Europa de 1835. Por causa dele, o autor foi impedido de conseguir emprego como professor e recebeu duras críticas do mundo acadêmico da época. Ainda assim, Das Leben Jesu (no original em alemão) iniciou uma nova época nos estudos críticos sobre a vida de Jesus. Como afirmou James Dunn ao comentar este livro, aqueles que estão do lado da fé no debate da busca pelo Jesus histórico deveriam ler Strauss para experimentar um pouco do choque que esse texto causou quando foi publicado pela primeira vez.

01/11/2021

As narrativas sobre o nascimento de Jesus: verdades históricas ou deliberações teológicas posteriores?

Dois dos quatro Evangelhos do Novo Testamento, Mateus e Lucas, apresentam uma narrativa do nascimento de Jesus de Nazaré. Apesar de serem muito diferentes entre si -- por exemplo, enquanto Lucas pressupõe que a cidade natal da família de Jesus é Nazaré, Mateus afirma que eles se mudaram para lá por medo de serem descobertos pelo governante da Judéia; embora Mateus narre uma perseguição por Herodes, Lucas nada sabe a respeito desse detalhe importante; conquanto Lucas não saiba nada sobre uma estrela guiando magos até o local do nascimento de Jesus, Mateus também não parece fazer ideia de que uma corte celestial tenha celebrado o nascimento da criança, etc. --, no imaginário popular, por influências variadas, não menos devido ao cinema e teatro, e especialmente à apologética evangélica da atualidade, essas histórias formam um todo completo e harmonizado. Entretanto, o que mais me chama a atenção não é o fato de esses dois Evangelhos possuírem um relato sobre o nascimento do Messias, mas que os outros dois, Marcos e João, omitem as histórias completamente. 

Seja lá o que o autor de Marcos esteja tentando falar sobre Jesus de Nazaré, uma coisa é muito clara: para aquele autor, Jesus foi uma pessoa especial: ele curou doentes, expulsou espíritos malignos, andou sobre as águas, controlou tempestades, multiplicou comida, previu sua própria morte e voltou dos mortos. Eu não sei quanto a você, leitor, mas, se estivesse escrevendo uma história sobre a vida de alguém assim, eu jamais deixaria de fora um relato sobre o nascimento dele por meio de uma virgem! Acredito que um relato dessa natureza, além de ser um acréscimo fantástico para a minha narrativa, seria uma abertura perfeita para o meu livro sobre a vida de alguém como Jesus.

Em se tratando de João, talvez esse não teria sido o ato ideal para abrir a sua narrativa sobre quem era Jesus de Nazaré, afinal, esse evangelista começa a sua história com o tempo antes do tempo: para ele, Jesus é a expressão da mente e das ações de Deus no mundo tornada em uma pessoa de carne e osso; a Sabedoria de Deus encarnada, aquela que estava presente com Deus na criação; o Logos divino. Nada mais justo, portanto, do que começar a sua história da vida de Jesus com essa assombrosa afirmação. Contudo, se eu fosse esse autor, que fala da preexistência de Jesus e de sua clara divindade, não deixaria faltar esse pequeno detalhe do nascimento virginal e as circunstâncias especiais nas quais a anunciação da gravidez e o parto aconteceram.

A esta altura, o leitor já deve ter percebido qual é o meu ponto com os parágrafos anteriores: se alguém fosse escrever sobre a vida de uma pessoa que fez milagres, foi morto, mas ressuscitou, e soubesse que ele havia, também, nascido de uma virgem, acharia importante relatar essa informação para o seu público. Veja bem, eu não estou dizendo que tudo o que Jesus teria feito em sua vida necessariamente teria sido escrito. Não o foi. Isso é inegável. Estou dizendo que o nascimento se destaca como algo ainda mais relevante do que um milagre de cura, por exemplo, porque ratificaria a importância daquela pessoa desde o seu nascimento, ou mesmo antes dele, quando ainda estava no ventre de sua mãe.

Ao lidar com o trabalho de determinar o que aconteceu no passado, é impossível falar sobre certezas e verdades absolutas. Tudo se trata de probabilidade: o que é mais possível de ter acontecido no passado? Para analisar isso, precisamos pensar da seguinte forma: o que acontece hoje em dia é o que acontecia no passado, aquilo que os historiadores chamam de analogia natural. Raciocinando dessa maneira, e tentando determinar o que aconteceu há dois mil anos, quando os autores dessas histórias da vida de Jesus resolveram escrever sobre ele, devemos nos perguntar qual é o cenário mais plausível de ter ocorrido com os relatos do nascimento: se, hoje, alguém provavelmente não deixaria essas histórias de lado ao escrever sobre uma pessoa especial, é mais provável que, se as conhecesse, um autor, no passado, também as teria escrito. Dessa forma, ficamos com a seguinte questão e suas possíveis respostas: por que Marcos não registrou a(s) história(s) do nascimento? (1) porque não a conhecia; (2) porque não a achava importante; ou (3) porque ele esperava que outro autor, quem sabe inspirado por Deus, escreveria a história no seu lugar, tornando o seu Evangelho obsoleto e incompleto. Eu não sei quanto a você, leitor, mas me parece que a resposta mais plausível seja a primeira. 

Se minhas conclusões estiverem corretas (que Marcos e João não conheciam a história do nascimento virginal e suas circunstâncias especiais), nos deparamos com outro problema:⁩ como é possível eles não conhecerem essa história, se tiveram contato direto com os primeiros discípulos e, possivelmente, a própria Maria? A tradição cristã nos afirma que os autores dos Evangelhos que carregam seus nomes eram realmente tais pessoas: Mateus, o discípulo de Jesus, Marcos e Lucas, os companheiros de Paulo, e João, outro discípulo direto do mestre. Contudo -- e, novamente, racionalizando através da analogia natural, buscando aquilo que seria mais plausível como explicação para nossos questinamentos --, me parece estranho pensar que tais autores seriam realmente quem a tradição nos diz que foram, pois, se o fossem, teriam conhecido os parentes de Jesus e, por consequência, as circunstâncias especiais sobre o seu nascimento. Se os autores são quem os títulos dos Evangelhos dizem que são, e se Marcos e João, de fato, não conheciam essas histórias sobre o nascimento de Jesus, a única alternativa que nos resta é que essas histórias teriam ficado escondidas (com Maria e José?) até que apenas Mateus e Lucas as descobrissem, e isso de maneira bem estranha, pois, como vimos, as narrativas de Mateus e Lucas não são as mesmas. Portanto, me parece mais plausível concluir que os autores dos evangelhos não podem ser quem a tradição diz que eles são. Se o fossem, é mais provável que eles teriam conhecido uma única história advinda diretamente de Maria e dos parentes próximos de Jesus. Eles são provavelmente helenistas judeus (se todos judeus, eu não sei) e prosélitos gregos de uma geração posterior a dos primeiros discípulos.

Novamente, apelo à probabilidade: se todos conhecessem essas histórias como sendo algo vindo de testemunhas oculares (Maria principalmente), é provável que Marcos as tivesse colocado em sua narrativa sobre a vida de Jesus e que todas elas seriam iguais ou pelo menos parecidas. Dessa forma, nos resta a pergunta: de onde as histórias sobre o nascimento de Jesus vieram? Mais um cenário nos é apresentado: se Marcos e João não relataram o nascimento porque não conheciam essas histórias, ou elas vieram a surgir ex post facto (são histórias desenvolvidas posteriormente), ou ficaram ocultas até que Mateus tenha descoberto uma e Lucas a outra.

Levando-se em conta que Marcos e João não conheciam a história e que Mateus e Lucas conheciam duas diferentes, me parece mais provável que elas tenham surgido de um desejo de explicar de onde Jesus veio e como ele era especial. Ou seja, com a experiência da Páscoa, de ter visto Jesus após a morte dele, e com o desenvolvimento da cristologia -- com o passar dos anos, as explicações sobre quem era Jesus e o quanto ele era especial foram crescendo --, histórias sobre o seu nascimento ter sido especial surgiram no meio das comunidades primitivas, mas nem todas elas as conheciam e elas não vieram de Maria: olhando para o Antigo Testamento buscando explicações para a vida de Jesus, os evangelistas se inspiraram nas histórias dos antigos heróis judeus para escrever sobre como teria sido o nascimento dele. Dessa forma, assim como Moisés foi perseguido por faraó, assim também Jesus foi perseguido por Herodes, por exemplo; tendo em vista que Isaías falava de uma virgem dando a luz, Maria, mãe de Jesus, só poderia ter sido uma virgem ao receber o Messias em seu ventre, etc. -- parece-me mais provável que Isaías estivesse falando de algo no seu contexto histórico, não de Jesus, que viria a nascer muitos séculos depois. O mais razoável é imaginar que os discípulos de Jesus interpretaram Isaías com o pressuposto de que o Nazareno era o Messias e, portanto, deveria cumprir as profecias do que o contrário.

Apesar de essas conclusões soarem, às mentes evangélicas atuais -- que costumam misturar história com teologia, e que, inevitavelmente influenciadas pelo pensamento iluminista, buscam provar o cristianismo através de verdades científicas -- como um ataque à fé e à narrativa bíblica, elas exaltam a real intenção dos autores bíblicos e nos trazem à luz a forma com que esses documentos foram produzidos. Como disse o grande Raymond E. Brown, "enquanto as histórias do ministério dependem, pelo menos em parte, das tradições que vieram dos discípulos de Jesus que o acompanharam durante aquele ministério, não temos informações confiáveis sobre a fonte do material da infância. Isso não significa que as narrativas da infância não tenham valor histórico, mas significa que não se pode fazer suposições sobre sua historicidade com base em sua presença nos Evangelhos."