28/01/2021

Jesus e o Sábado (Gerd Thessein)

Nota: trecho retirado do livro "A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo" (p. 54), de Gerd Thessein, publicado no Brasil por Paulinas.

No que diz respeito aos conflitos sabáticos, no judaísmo de então ha­via uma vivida discussão a respeito do que era e do que não era permitido no sábado. Destarte, desde as guerras macabeias era permitido defender-se em dia de sábado — depois de, certa vez, mil judeus terem sido dizimados num sábado porque haviam renunciado à resistência (cf 1 Mc 1,29-38). Em determinadas situações excepcionais, em caso de legítima defesa, portanto, era permitido matar. Quando Jesus, em Mc 3:4, desafiadoramente, pergunta: “É permitido, no sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou matar?”, provavelmente ele está aludindo à permissão de matar em tempo de guerra, e deduz o maior a partir do menor: se é, pois, permitido fazer o mal, quanto mais fazer o bem! Em resumo: Jesus apenas expande os casos conhecidos de salvação da vida em dia de sábado aos casos de promoção ativa da vida. Com isso ele permanece na moldura da discussão judaica a respeito do sábado.

25/01/2021

A palavra implantada (em vós?): Tiago 1:21 e as visões divergentes no cristianismo primitivo

Em alguns textos anteriores, eu tratei sobre a diversidade de pensamento no cristianismo primitivo, ainda na época dos apóstolos e dos primeiros discípulos de Jesus. Um dos grandes exemplos dessa divergência é a disputa entre um judaísmo mais tradicional, seguido por Pedro e Tiago na comunidade judaico-cristã de Jerusalém, e um judaísmo que estava mais aberto a uma redefinição de alguns papéis da Torá (Lei) em relação à sua aplicação a gentios que aderiram à seita dos nazarenos, a comunidade messiânica judaica que tinha Jesus de Nazaré como o seu messias.

A Carta de Tiago, que provavelmente é um compilado das tradições sobre o ensino do líder da comunidade de Jerusalém feita por seus discípulos posteriormente, possui um exemplo claro dessa divergência de opiniões quanto ao papel da Torá em relação aos gentios que queriam se tornar adeptos da nova seita judaica. Contudo, esse exemplo fica mascarado nas traduções em língua portuguesa da epístola em questão, pois o(s) tradutor(es), lendo o documento sob uma ótica cristã moderna e com o pressuposto de que não haveria diferenças entre a opinião dos apóstolos sobre qualquer tema, inseriu duas palavras que não existem no texto original:

“Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma.” Tiago 1:21 (grifo meu).

As palavras “em vós” não fazem parte do texto grego e não se encontram em nenhum manuscrito antigo, isto é, não se trata de uma variante textual que foi seguida pelo tradutor. As palavras simplesmente não existem. O acréscimo ficou por conta dos tradutores, que achavam que “palavra implantada” só poderia significar “evangelho” ou “mensagem recebida pelos cristãos”.

Veja, por exemplo, como a versão inglesa New Revised Standard Version traduz o versículo: “Therefore rid yourselves of all sordidness and rank growth of wickedness, and welcome with meekness the implanted word that has the power to save your souls.” (“Portanto, livrem-se de toda sordidez e acúmulo de maldade e recebam com mansidão a palavra implantada que tem o poder de salvar suas almas.”)

Essa tradução está mais próxima do original grego, que traz as palavras ἔμφυτον λόγον (emphyton logon – palavra implantada) e nada mais. E também não há motivos gramaticais para acrescentar “em vós” na frase.

Por que o tradutor resolveu acrescentar essas palavras em seu texto? Provavelmente, porque ele traduziu como cristão e interpretou os termos “palavra implantada” como “mensagem do evangelho que é colocada no coração de quem creu nessa mensagem”. Por isso, para ele, “palavra implantada” só pode ser implantada “em vós”, porque ele parte do pressuposto cristão de que logos é a palavra de Deus que é recebida pelo coração de quem crê. Nesse caso, o tradutor é um apologeta cristão: ele não traduziu, mas interpretou o texto.

Entretanto, é válido perguntar se o significado de “palavra implantada” muda alguma coisa com o acréscimo. Para responder a isso, devemos levar em conta o que um judeu do século primeiro da Era Comum que viveu antes da queda de Jerusalém e da destruição do segundo templo em 70 E.C. (ou seus representantes que compilaram seus ensinamentos nessa carta) e que tinha Jesus de Nazaré como messias queria dizer com “palavra implantada”. Será que “palavra implantada” significava o mesmo para ele que “palavra que está no seu coração” significa para um evangélico (ou cristão de modo geral) de hoje em dia?

Tiago não era cristão nos termos atuais. Falar de cristianismo e judaísmo como duas religiões separadas no período em que essa carta foi redigida é um anacronismo monstruoso. Ele era um judeu messiânico que estava em conflito com outros judeus que não achavam correto que os gentios se tornassem prosélitos, isto é, aderissem ao modo de viver judaico derivado da Lei. Ele queria mostrar a validade da Lei de Moisés para outros judeus que achavam que a Lei, segundo interpretada por Tiago e possivelmente pela comunidade de Jerusalém, não valia para os gentios que estavam adentrando na sua nova seita judaica. Para isso, ele usa um conceito comum da literatura da época, o termo “implantado”, que fazia referência à ideia de razão humana inata ou lei natural, de onde os seres humanos derivam as noções de bem e mal. Para o judeu da carta, essa “palavra implantada” é expressada verbalmente na Torá. Para ele, seguir a Torá é ser guiado pelo que é correto. Assim, ele busca responder aqueles outros judeus messiânicos que acreditavam que a Torá, conforme interpretada por ele, não tinha muita serventia para quem não era judeu.

Para explicar isso melhor, traduzi abaixo uma parte da conclusão do livro Logos and Law in the Letter of James, de Matt A. Jackson-McCabe. O trecho se encontra nas páginas 242-3:

A análise dessa (“implantada”) e outras palavras revela que o termo “implantado” é normalmente usado na literatura antiga para descrever a razão humana ou uma lei natural que a razão humana abrange. A terminologia tem as suas raízes na teoria estoica de que a razão humana — a qual, na sua forma perfeita como “razão correta”, representa a lei natural — se desenvolve a partir de "preconcepções implantadas": a tendencia humana inata de conceitualizar distinções morais como “bom” e “mal”, frequentemente descritas como “sementes” de conhecimento ou virtude. Foi precisamente à luz dessa teoria que Dionísio Bar Salibi descreveu a “palavra implantada” de Tiago como “lei natural”, e que ele e um outro exegeta — cuja interpretação de Tg 1:21 está preservada em Pecumenius e Theophylactus — identificaram essas palavras como algo inato em toda a humanidade, algo associado particularmente com a habilidade de distinguir opostos morais.

Se a discussão do logos em Tiago difere em alguns aspectos das discussões dos estoicos sobre a razão humana, não é porque apenas Tiago, entre essas obras antigas, formulou a citação de “o logos implantado” com a lei perfeita inteiramente à parte da influência estoica. Ao contrário: tais divisões são encontradas onde quer que a compreensão estoica da lei seja incorporada a visões de mundo estranhas ao estoicismo.

Em Tiago, o criador do mundo é o deus das escrituras judaicas, e o logos que ele implantou na humanidade encontra expressão escrita na Torá, a “lei perfeita” que ele deu aos descendentes de Abraão. O desejo humano, por outro lado, é associado com o Tentador mitológico das tradições judaica e cristã: o diabo. A oposição entre logos e desejo e o problema da tentação, além disso, são vistos a partir de um horizonte escatológico iminente, quando esse deus executará um julgamento de acordo com a sua lei: “os ricos” serão punidos pelo seu hedonismo arrogante e opressivo, enquanto os pobres humildes que resistiram ao desejo e amarem a Deus herdarão o reino que ele prometeu.

Se a característica central da soteriologia de Tiago não é um “evangelho” pelo qual alguém pode renascer, mas um logos implantado por Deus em toda a humanidade na criação, o qual encontra expressão escrita na Torá, é dificilmente necessário concluir que a carta não foi originalmente uma composição cristã. Tendo em vista a correlação recorrente do interesse nas doze tribos de Israel com o messianismo, particularmente na literatura do período romano inicial, as referências à figura de Jesus Cristo são muito consistentes com o endereçamento da carta "às doze tribos que estão na diáspora", e também com a sua perspectiva escatológica mais geral. A incorporação do entendimento estoico da lei nessa cosmovisão é, ela mesma, na realidade, muito bem compreendida levando-se em conta os debates cristãos iniciais que estavam em andamento a respeito do significado da Torá. De fato, existe forte evidência sugerindo que o tratamento que Tiago tem da “perfeita lei da liberdade” foi cunhado particularmente com um olho na formulação de Paulo sobre o problema da lei.

06/01/2021

Os Muitos Deuses do Monoteísmo Antigo (Paula Fredriksen)

Nota: artigo escrito por Paula Fredriksen e publicado originalmente no blog da Yale University Press.


Como o judeu antigo — e, mais tarde, o cristão antigo — se distingue do seu vizinho contemporâneo, o pagão? As comunidades bíblicas eram monoteístas, muitas pessoas responderão; as comunidades pagãs eram politeístas. Para a cultura majoritária, muitas divindades povoavam os céus. As religiões bíblicas, mais austeras, se apegaram à crença em um único deus.

A crença de que existe apenas um deus funciona bem como uma definição do monoteísmo moderno. Mas o monoteísmo antigo acomodava a existência de muitas outras divindades. Para os antigos judeus e cristãos, Deus não era o único deus, nem mesmo em seu próprio livro.

As escrituras judaicas estão repletas de outras divindades, os "deuses das nações". Às vezes, o deus de Israel combate essas divindades enquanto o seu povo luta contra o povo deles. Durante o Êxodo, o deus de Israel enfrenta os deuses do Egito (Êxodo 12:12). YHWH captura deuses estrangeiros (Jeremias 43:12), pune-os (46:25) ou os envia para o exílio (49:3). O poder celestial existe em um gradiente: o deus de Israel é singularmente poderoso, e esses outros deuses se curvam a ele (Salmo 97:7). Na verdade, eles constituem a sua corte celestial: “Ele julga no meio dos deuses” (Salmo 82:2). Mas a população celestial é múltipla: divindades inferiores ou menores preenchem o céu e a terra.

O monoteísmo judaico antigo, em resumo, não era "monoteísta". Embora as nações pagãs possam ser ridicularizadas por sua adoração de imagens divinas (“ídolos”), os poderes representados por essas imagens eram reais. A lealdade religiosa judaica centrava-se no deus judeu, mas os judeus antigos também reconheciam o poder desses outros deuses inferiores, menores. Induzir esses poderes divinos a cumprirem suas ordens era a principal atividade dos magos judeus. Algumas inscrições em sinagogas judaicas evocam deuses cósmicos e terrestres como testemunhas de procedimentos legais. Outras mencionam visitas em sonhos feitas por divindades pagãs. Outras ainda dedicam fundos para celebrar feriados pagãos e judaicos.

Os deuses pagãos têm um perfil particularmente importante no Novo Testamento, nas cartas do apóstolo Paulo. Paulo consistentemente proíbe seus gentios batizados de adorarem suas antigas divindades, cuja existência ele ridiculariza e reconhece ao mesmo tempo — em certo momento, na mesma passagem! "'Um ídolo não tem existência real' e 'não há deus senão um'; pois embora possa haver os chamados deuses no céu e na terra — como de fato existem muitos deuses e muitos senhores — ainda para nós há um Deus, o Pai... e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8:4-6). “O deus deste mundo” está frustrando a missão de Paulo (2 Coríntios 4:4). Seus ex-gentios pagãos anteriormente adoravam os poderes elementares do universo (Gálatas 4:8-9).

Esses deuses fazem mais do que ficar no plano de fundo do passado pagão dos gentios de Paulo. Eles desempenham um papel fundamental no futuro cristão, moldando a identificação que Paulo tinha sobre Jesus como sendo o messias Davídico (Romanos 1:3 e 15:12). Jesus de Nazaré, como os evangelhos o retratam, foi um curandeiro carismático e um homem santo galileu. Nas tradições judaicas, no entanto, o descendente da casa de Davi, o messias escatológico, era, como seu antepassado bíblico, uma figura militar e monárquica, um guerreiro da realeza. Tendo derrotado os inimigos de Deus na batalha final e remontado as doze tribos de Israel, esse guerreiro governaria como um príncipe da paz — mas apenas quando ele prevalecesse na batalha apocalíptica contra o mal.

Como uma figura tão resolutamente civil quanto Jesus passou a ser associada a uma figura tão marcial como o messias final? A resposta curta é: por meio das expectativas em torno da Parousia de Jesus, sua triunfante "segunda vinda". Paulo fornece nossos primeiros vislumbres dessas expectativas em evolução. Quando ele retornar — durante a vida de Paulo, Paulo estava convencido — o glorioso Cristo descerá do céu ao clamor do arcanjo e o ressoar da trombeta final (1 Tessalonicenses 4:13-18). Ele ressuscitará os mortos; ele reunirá seus eleitos (loc. cit.); ele reunirá as tribos (“todo o Israel”); ele tornará todas as nações pagãs a Deus, seu pai (Romanos 11:25-26).

Mas antes de finalizar a história dessa forma, Cristo deve primeiro derrotar os deuses das nações. Paulo descreve o confronto de Cristo com essas forças especialmente em 1 Coríntios 15 e em Romanos 8. Na carta aos Coríntios, Paulo identifica esses deuses com forças cósmicas: "todo domínio, autoridade e poder" (1 Coríntios 15:24). Cristo os “destrói” e os “subjuga” “debaixo de seus pés” (15:24-27). Em outro lugar, em Filipenses 2, esses poderes sobre-humanos se ajoelham diante de Cristo e de Deus Pai (2:10-11). E em Romanos 8, essas divindades parecem totalmente reabilitadas: elas “gemem” junto com o resto da criação; e com a criação, eles aguardam a redenção final.

Mateus e Lucas, escritos perto da virada do primeiro século, irão "Davidizar" a biografia de Jesus. Esses dois evangelistas, em duas narrativas de nascimento mutuamente excludentes, apresentarão o Jesus galileu como tendo nascido no correto local judaico para o nascimento davídico: Belém. Meio século antes, o apóstolo Paulo não conhecia essas histórias sobre a natividade. Seu Jesus é o Cristo davídico por causa de seu reaparecimento futuro iminente como um guerreiro apocalíptico. Os poderes que ele combaterá são os deuses das nações. Renunciados, mas ainda assim necessários, esses deuses representam as forças cósmicas a serem submetidas ao triunfante guerreiro Cristo que retorna. Dessa forma e por essa razão, a identidade de Jesus como o messias davídico repousa no "monoteísmo" confuso da antiguidade, o cosmos congestionado de deuses pagãos. 


Pedro contra Paulo: o preconceito canônico e a influência do tradicionalismo judaico no cristianismo primitivo

Paulo é a voz do cânon. Quando avaliamos a influência do apóstolo nos primórdios do cristianismo, esse pequeno detalhe desvia a nossa atenção de uma coisa que deveria ser óbvia não fosse o peso das cartas de Paulo no Novo Testamento: Pedro e Tiago, respectivamente um dos doze mais próximos de Jesus e o irmão do mestre, exerceram uma influência muito maior nos primeiros cristãos do que o apóstolo nascido fora do tempo e ex-perseguidor da igreja.

Um dos momentos em que isso fica claro é no resultado da disputa entre Paulo e Pedro em Antioquia, relatado na carta de Paulo aos gálatas. Temos a impressão de que Pedro foi convencido pelos argumentos de Paulo sobre como os cristãos-gentios e cristãos-judeus deveriam se comportar à mesa, mas isso acontece porque o argumento de Paulo foi canonizado e o pressuposto é de que suas palavras são a verdade sobre o assunto. No entanto, é provável que o vencedor da disputa tenha sido Pedro (no sentido de que ele foi ouvido pelas primeiras comunidades), e talvez tenha sido por isso que Paulo foi obrigado a se defender. O fato é que Paulo não diz qual foi o resultado do confronto e não afirma que Pedro concordou com ele no final, diferente do que escreveu sobre a controvérsia a respeito da circuncisão, onde afirmou ter recebido o aval dos líderes da igreja de Jerusalém.

Pedro estava mais próximo ao que Jesus ensinou do que Paulo nessa disputa sobre os alimentos e sobre como um judeu e um gentio deveriam se relacionar na hora da refeição. Quem trouxe a novidade sobre o assunto foi Paulo, não Pedro — nem Jesus! Paulo afirma que foi ao terceiro céu, recebeu a revelação de um novo mistério e precisava convencer os outros discípulos. Em sua postura sobre os alimentos, Pedro estava apenas seguindo a lei de Moisés ao dizer que o estrangeiro que habita na terra de Israel deveria seguir os costumes judaicos. Nada mais. Paulo, por sua vez, nunca derrubou a lei em si, apenas disse que uma das suas funções estava ultrapassada.

Pedro saiu vencedor da disputa com Paulo em Antioquia, e as grandes igrejas fundadas por Paulo (na Galácia e em Corinto) foram fortemente influenciadas por uma visão judaica mais tradicionalista que era a de Pedro e Tiago. O fato de Paulo ter que brigar por seu apostolado nessas igrejas mostra que ele não era tão importante como imaginamos. Nas cartas escritas para as igrejas que fundou, Paulo precisa defender a sua autoridade diante de pessoas que estavam seguindo uma visão mais tradicional sobre como um gentio que virou judeu deveria viver. Isso mostra que esses dois foram mais influentes do que Paulo no início do cristianismo. Pensamos o contrário porque tudo o que lemos é o relato de Paulo sobre a situação. Imaginar que Paulo poderia puxar a orelha do principal discípulo de Jesus de Nazaré é ingenuidade histórica, um anacronismo guiado pela apropriação protestante de Paulo e pela interpretação luterana sobre os problemas do apóstolo. Um judeu da diáspora não teria mais autoridade no início da seita dos nazarenos do que um discípulo que andou com Jesus desde o começo.

Pedro e Tiago — juntamente com o judaísmo-cristão mais tradicionalista que existia na igreja de Jerusalém — tiveram uma primazia maior do que Paulo na comunidade primitiva. Não fosse a queda de Jerusalém e a destruição do cristianismo judaico, dificilmente a história se desenrolaria como se desenrolou. Hoje, temos a impressão de que Paulo era mais importante, mas isso acontece simplesmente porque ele tem um espaço grande no cânon. O fato de Pedro ter sido considerado o primeiro bispo de Roma não surgiu de um vácuo histórico, e a importância que o escritor de Atos dos Apóstolos, logo no início do seu tratado sobre o começo do cristianismo, dá à pedra sobre a qual Jesus fundaria a sua igreja (segundo um evangelho que soa muito antipaulino) não deveria nos passar despercebida.

04/01/2021

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Richard A. Horsley)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus e o Império", de Richard A. Horsley (p. 107), publicado no Brasil pela editora Paulus.]

Num dos confrontos entre Jesus e os governantes de Jerusalém, os fariseus e herodianos tentam apanhar Jesus com uma pergunta sobre a legitimidade do tributo a César. Se queremos ouvir a resposta de Jesus no contexto histórico de povos israelitas sob o domínio imperial romano, precisamos superar o pressuposto moderno da separação entre a religião e os assuntos político-econômicos. Os fariseus e herodianos supostamente sabiam muito bem que, de acordo com a lei da aliança mosaica, não era lícito pagar tributo a Roma. Eles também sabiam que os romanos interpretariam o não pagamento do tributo como um ato de rebeldia. Sem dúvida, essa seria uma decisão suicida, uma vez que os romanos poderiam novamente dizimar e escravizar o povo em perversa retaliação, como haviam feito em 4 a.C. De fato, pouco mais de duas décadas antes da missão de Jesus na Galiléia e do confronto em Jerusalém, alguns antecessores desses fariseus haviam ajudado a organizar resistência ao tributo como líderes da Quarta Filosofia.

Em sua resposta, Jesus evita sutilmente a armadilha que lhe preparavam na tentativa de encontrar uma justificativa para prendê-lo como rebelde. “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Jesus não responde diretamente, “Não é lícito”. Mas a sua declaração teria sido compreendida exatamente desse modo por qualquer israelita que o estivesse ouvindo, até pelos fariseus. Ele assume a mesma postura da Quarta Filosofia. Se Deus é o Senhor e Mestre único, se o povo de Israel vive sob o reinado exclusivo de Deus, então todas as coisas pertencem a Deus, sendo bem óbvias as implicações para César. Jesus está clara e simplesmente reafirmando o princípio israelita de que César, ou qualquer outro governante imperial, não tem direitos sobre o povo israelita, uma vez que Deus é o seu rei e mestre de fato.