10/12/2018

A Tradição Oral do Evangelho - James D. G. Dunn - Parte 3

Desde o tempo de Bultmann, prestou-se muito mais atenção no caráter da tradição oral e de sua transmissão. Menciono o que considero como o mais esclarecedor para nós: em primeiro lugar, a investigação sobre o antigo período oral, pré-literário, na cultura grega e o reconhecimento de que Homero foi recitado oralmente por um longo período antes de ser registrado por escrito e que o texto escrito indica o caráter das recitações orais; em segundo lugar, a investigação de Birger Gerhardsson sobre os procedimentos orais visando preservar e transmitir a tradição rabínica no contexto mais imediato possível da antiga tradição sobre Jesus; em terceiro lugar, uma pesquisa muito proveitosa e esclarecedora sobre as comunidades orais na África; e, em quarto lugar, os relatos impressionistas e anedóticos de Kenneth Bailey de seus trinta anos de experiência com comunidades orais em povoados do Egito e do Líbano. Mesmo que os dois últimos pareçam distantes da Palestina do século I, deveria ser observado como provável que essa vida de povoado, tanto na África quanto no Oriente Médio, foi em grande medida conservadora e imutável nos moldes em que as comunidades operaram como sociedades orais.

O traço mais notável que emerge, e emerge consistentemente, desses diferentes exemplos e a combinação característica de rigidez e flexibilidade, de estabilidade e diversidade, do mesmo e, contudo, diferente. Na tradição oral, há caracteristicamente um conto a ser contado, mas contado mediante o uso de palavras diferentes para ressaltar aspectos diferentes em diferentes modos de contar. Na tradição oral há caracteristicamente um ensinamento a ser guardado, mas ele é formulado de várias maneiras, dependendo das ênfases que os diferentes mestres desejam expor. Tradição oral é memória oral; sua função primordial é preservar e relembrar o que de importante provém do passado. A tradição, mais ou menos por definição, corporifica a preocupação com a continuidade em relação ao passado, um passado que serve de base, mas que também é avivado de tal forma que possa iluminar presente e futuro. Nas palavras de Eric Havelock: “Variabilidade e estabilidade, conservadorismo e criatividade, evanescência e imprevisibilidade, tudo isso marca o padrão da transmissão oral” – o “princípio oral da ‘variação dentro do mesmo’”. Ou como Alan Dundes formula o mesmo ponto: “‘existência múltipla’ e ‘variação’ [são] as características mais destacadas do folclore”.

O que me deixou animado quando tomei ciência desse traço característico da transmissão oral foi que ele falou diretamente para o caráter da tradição sinótica. Porque o caráter da tradição sinótica, o caráter que tinha me intrigado desde o início, é muito bem captado na expressão “o mesmo e, contudo, diferente” – o mesmo relato é contado, mas a introdução e a conclusão são diferentes, o fraseado é diferente; o mesmo ensinamento, mas dito com palavras diferentes e agrupado de maneira diferente. Foi a esse material sinótico, ilustrado anteriormente, que se poderia agora dar sentido nos termos da tradição oral. Aquele material era tradição oral, sua diversidade cristalizada nas versões divergentes dos evangelhos sinóticos. O modelo da interdependência literária pôde explicar bem as passagens dos sinóticos em que havia estreita correspondência verbal. Porém, o modelo literário fez pouco sentido em relação a passagens em que há uma correspondência verbal de menos de 40%, às vezes muito menos, ao passo que o modelo da tradição oral pareceu servir com precisão. A conclusão óbvia a ser tirada é que seções extensas da tradição sinótica constituem a tradição oral variável registrada por escrito.


James D.G. Dunn, Jesus, Paulo e os evangelhos, tradução de Nélio Schneider. – Petrópolis, RJ, Vozes, 2017. Edição Kindle. Posições do Kindle: 1022-1058.