27/07/2022

Do pó viemos e ao pó voltaremos: como partes da bíblia hebraica não contemplam a vida após a morte

Ultimamente, tenho trocado as leituras teológicas — exegéticas, para ser um pouco mais preciso para os chatinhos — por outros tipos de não ficção, com breves e tímidas incursões no mundo da literatura, aquela vasta biblioteca que não formaria nenhum burocrata da interpretação bíblica ou de qualquer outra área técnica fatiada da realidade do mundo. Uma dessas novas leituras tem sido sobre alimentação e a história dos alimentos, coisas como de onde vem aquilo que comemos, por que chegou da forma que chegou e qual foi o processo histórico que desencadeou na indústria alimentar de hoje. Acontece que o mundo ocidental foi erguido sobre uma fundação bíblica que não nos larga de jeito nenhum, e mesmo tentando ficar longe — pelo menos por um tempinho — das leituras sobre a bíblia, o assunto me persegue até em parágrafos que falam sobre o processo bioquímico que acontece no solo para fazer com que o crescimento de uma planta se torne algo viável. Eis o trecho:

O húmus é o que, numa determinada quantidade de solo, lhe dá a tonalidade escura e o cheiro que lhe são característicos. É difícil dizer o que o húmus é exatamente, já que é muitas coisas. O húmus é o que resta de matéria orgânica depois de ter sido quebrada por bilhões de organismos grandes e pequenos que habitam qualquer quantidade mínima de terra – as bactérias, bacteriófagos, fungos e vermes responsáveis pela sua decomposição. (O autor do salmo que descreveu a vida como a passagem “do pó ao pó” teria sido mais preciso se tivesse dito “do húmus ao húmus”). (Michael Pollan, O Dilema do Onívoro, p. 206).

A citação bíblica me trouxe à tona um assunto sobre o qual eu já havia ensaiado escrever, mas que, por um motivo preguiçoso qualquer, acabei jogando debaixo do tapete mental para onde vão todas as infinitas inspirações que nos surgem durante os espasmos de criatividade noturna: a ideia de que, para algumas tradições da bíblia hebraica, a vida após a morte nunca existiu, expressada de maneira gritante na frase “do pó viestes e ao pó voltarás”.

A ideia do homem sendo criado do barro/argila (ou da terra/pó) não é originalmente judaica. Outras tradições culturais mais antigas do Oriente Próximo, da Babilônia e até da Grécia também imaginavam a criação do ser humano através da terra. O deus egípcio Chnum era ilustrado formando o homem no disco de um oleiro; na cultura babilônica, o homem fora formado de uma mistura de terra com o sangue do deus Marduk. Essa ideia pervade todo o Antigo Testamento, e é encontrada em várias passagens. Uma delas, Gênesis 2:7, demonstra a crença judaica acerca da composição física do homem:

Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.

Se o leitor se despir de todo o seu conhecimento científico que vem sendo desenvolvido pela humanidade nos últimos 300 anos, esquecendo tudo o que sabe (ou acredita) sobre o que constitui o corpo humano, a sua origem e destino, não será difícil imaginar como os povos antigos chegaram à ideia de que o homem veio da terra. Coloque-se no lugar de uma pessoa que viveu há 6 mil anos. Como ela imaginaria de onde o corpo humano veio? A intuição levaria a um caminho óbvio, simplesmente fruto da observação: se, quando morre, o corpo do ser humano se torna pó, desaparece, se dissolve, é engolido pela terra, ele só pode ter vindo do mesmo lugar. Lembre-se de que estamos falando de um conhecimento humano antigo, que não tinha nenhuma ideia do que seriam células, bactérias, ou qualquer coisa que só pode ser percebida com a ajuda de um microscópio. O conhecimento era observacional, resultado de dedução intuitiva do que acontece no mundo.

Para os autores dessa tradição que pervade o Antigo Testamento, o ser humano é composto de um corpo físico que foi feito com terra (porque volta a ser terra quando morre) e algo que animou, fez viver, deu vida a esse corpo que, sem isso, seria apenas barro: um sopro vindo de Deus. Tendo constatado de onde vem a parte física do homem, a tradição volta-se para explicar o que torna o homem vivo. O sopro de Deus é o que vivifica o corpo de barro, quase como a energia elétrica foi usada para fazer o Frankenstein de Mary Shelley vir à vida — às vezes, as minhas aventuras pelo mundo da literatura de ficção dão as caras timidamente.

Nas línguas em que a bíblia foi escrita, as palavras traduzidas para sopro, vento, ar, respiração, alma e espírito se confundem, são todas iguais ou muito parecidas, o que deixa transparecer que, na mentalidade antiga, tudo isso era a mesma coisa, era algo muito parecido ou tinha uma origem comum — e também deixa claro que a origem etimológica dessas palavras nos dá uma pista de que, muito antigamente, significavam a mesma coisa. Aqui, mais uma vez, o conhecimento dedutivo observacional chegou a conclusões óbvias: quando alguém morre, o que se observa é que o corpo deixa de respirar. Não é difícil imaginarmos que a mentalidade antiga, tendo constatado esse fato, pensaria em retrospectiva que a respiração é algo material que foi colocada dentro do corpo de barro e sai dele quando ele morre. Se sai dele, é porque foi colocada lá, e só poderia ter sido colocada por Deus quando este criou o ser humano. Sem a respiração, sem a vida, sem o sopro divino que o vivifica, o corpo volta a sua origem e o homem deixa de existir. Essa ideia também pervade várias passagens do Antigo Testamento.

Como as águas do lago se evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono. (Jó 14:11-12)

Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação. Sai-lhes o espírito [respiração, fôlego], e eles tornam ao pó; nesse mesmo dia, perecem todos os seus desígnios. (Salmos 146:3-4)

Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. (Eclesiastes 3:19-20)

Antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito [respiração, fôlego] volte a Deus, que o deu. (Eclesiastes 12:6,7)

Sou contado com os que baixam à cova; sou como um homem sem força, atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras; são desamparados de tuas mãos. (Salmos 88:4-5)

Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar? Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos? Acaso, nas trevas se manifestam as tuas maravilhas? E a tua justiça, na terra do esquecimento? (Salmos 88:10-12)

Se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito [espírito, sopro, vento], eles são criados, e, assim, renovas a face da terra. (Salmos 104:29-30)

Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens. (Salmos 90:3)

Não fossem os séculos de teologia, reinterpretação, apropriação e má exegese cristã — para não mencionar os rabinos, que, apesar de um pouco melhores, sempre tiveram seus preconceitos interpretativos — impostas sobre a bíblia de forma até apologética, textos como o de Gênesis 3:19 seriam lidos direta e claramente pelo que significam numa primeira impressão: o autor está dizendo que o homem volta de onde veio e deixa de existir.

No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.

Para o escritor dessa tradição registrada em Gênesis, quando morre, o corpo humano retorna à terra de onde veio e a sua respiração volta para Deus. Posteriormente, com o desenvolvimento da teologia, do pensamento do que acontece com o homem depois que ele morre, imaginou-se que essa respiração era algo a mais, e a ideia da alma (ou espírito, palavras que se confundem nas línguas originais, lembra?) como aquilo que permanece da consciência humana após a morte surgiu no imaginário teológico judaico, sendo herdada — e muito mais desenvolvida — pelo cristianismo.

Apesar de não conhecerem o húmus através uma perspectiva científica, sabendo dos processos químicos e biológicos que acontecem com a matéria orgânica que cai na terra — incluindo um cadáver —, a intuição dos autores da tradição que analisamos aqui não os traiu completamente. Embora a linguagem mitológica usada por eles não estivesse imaginando tanto um fenômeno químico quanto mágico — lembre-se de que a ideia de átomos e elementos da tabela periódica jamais passou pelo imaginário das sociedades pré-científicas —, no fim das contas, o mesmo carbono que compõe o corpo humano é aquele que está em toda a matéria orgânica deste planeta, incluindo a terra: como disse Carl Sagan — o Carlos que não era tão idiota quanto o Marques (quem lê entenda) —, tudo é poeira de estrelas. Se não fomos formados da terra num passe de mágica, como acreditavam os autores das tradições da bíblia hebraica, com certeza nos transformaremos nela se o curso da natureza não for impedido de alguma forma. Talvez devêssemos atualizar a linguagem bíblica — como tantos fazem sem nem perceber — e dizer “das estrelas ao húmus.”

17/01/2022

Criação e Caos: por que a mentalidade dos escritores bíblicos é diferente da nossa

Ao ler os livros que compõem a Bíblia, por vezes nos deparamos com textos que soam muito estranhos, mas, ou pelo ímpeto de terminar logo a leitura, ou pela falta de curiosidade e vontade de realmente entender o que estamos lendo, deixamos que essas passagens bizarras passem sem maiores indagações. Um desses textos que vêm me deixando perplexo desde que comecei a me interessar pela Bíblia quando tinha os meus quatorze ou quinze anos de idade é Isaías 27:1:

"Naquele dia o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o Leviatã, a serpente veloz, e o Leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão, que está no mar."

Num primeiro momento, esse versículo parece vindo de um conto de fadas, falando de dragões e criaturas fantasiosas que vivem apenas na imaginação de crianças ou em filmes da Disney. Lembro-me de que minha primeira reação ao me deparar com esse versículo foi de completa ininteligência: eu não fazia ideia de quem poderia ser esse dragão e sobre qual momento da história o profeta estaria tratando. Depois de um tempo, algumas traduções diferentes me foram apresentadas, e talvez algumas soluções mais seguras para a inerrância do texto bíblico surgiram: na verdade, não se tratava de um dragão, mas apenas de uma serpente, quem sabe algo mais palatável para uma cabeça que acreditava não fazer sentido um escritor inspirado por Deus falar sobre criaturas que não existem. Contudo, dragão ou serpente, independente da tradução que se escolha para uma palavra que, para os autores originais, significava algo como um monstro sem igual, tratava-se de uma criatura mitológica que se chamava Leviatã e aparecia em vários outros relatos de povos mais antigos do que os hebreus que escreveram a Bíblia. 

Com o tempo, e por encontrar muitos outros textos semelhantes, minha percepção sobre a Bíblia foi mudando, e cheguei à conclusão de que é impossível entendê-la se eu não conhecer os mitos antigos que permeavam a imaginação dos autores e a forma com que aquelas pessoas do passado entendiam o mundo ao seu redor. Hoje, me parece mais plausível entender o texto por aquilo que ele diz do que buscar uma solução que tenta atualizar a mente do escritor e fazê-lo pensar como um ser humano da atualidade que entende o mundo com uma forma de pensar científica pós-iluminista. Sendo assim, me parece mais provável que esse versículo signifique o que está escrito: Deus matará um dragão "naquele dia", uma expressão usada para denotar o fim dos tempos.

Existia um mito antigo que dizia que o mundo foi criado a partir da destruição de dois monstros que representavam o caos: Leviatã e Beemote. Leviatã era uma serpente (ou dragão) que vivia no mar, Beemote vivia no deserto. O mundo surgiu quando esses dois monstros foram domados e, do caos e desordem, surgiram a ordem e a fertilidade. Essa tradição está em virtualmente todos os povos antigos do Oriente Próximo. Os hebreus herdaram essas tradições e as adaptaram para a sua religião. Para eles, o deus chamado Javé havia destruído o caos desses dois quando colocou ordem no mundo e fez as separações de dia e noite, terra e água, etc. Contudo, esse mito também foi adaptado para representar as constantes reviravoltas que a história tem: Beemote e Leviatã sempre tentavam se soltar, e, por isso, existem guerras, caos e destruição na sociedade. O mundo nunca está em perfeita ordem. Então esse mito da criação foi transformado em mito do fim dos tempos: chegará um dia em que Deus finalmente destruirá esses monstros do caos e a ordem eterna reinará. É disso que Isaías está falando: no final dos tempos, Deus finalmente destruirá o Leviatã e o mundo será perfeito. O escritor do Apocalipse de João faz uso dessa mesma tradição:

"E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e os seus anjos; mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele." (12:7-9)

Aqui, a tradição está ainda mais desenvolvida, onde Leviatã é igualado a Satanás e a ideia do messias como Jesus e a segunda volta está inserida nessa tradição.

Isso me faz pensar como é impossível acreditar na mesma coisa que esses escritores acreditavam. Eles tinham uma mentalidade mítica que já não se encaixa no homem da atualidade. Por isso, as pessoas insistem em reinterpretar a Bíblia, pois ela precisa fazer sentido para a mentalidade científica moderna. Para quem ainda lê a Bíblia de maneira acrítica, é impossível que um autor inspirado por Deus tenha falado algo errado sobre o cosmos. No entanto, se fosse permitido que falassem por si mesmos, veríamos que os autores bíblicos são tão estranhos a nós quanto qualquer história fantasiosa sobre os deuses gregos e romanos.

03/11/2021

Book Review #5 - A Vida de Jesus Examinada Criticamente (David Friedrich Strauss)

A Vida de Jesus Examinada Criticamente, de David Friedrich Strauss, é um daqueles livros que quase ninguém conhece, mas que impactou o ocidente de maneira irreversível. Certa vez, um comentarista afirmou que este foi "o livro mais pestilento já vomitado pelas mandíbulas do inferno". Após Strauss, os milagres como fatos históricos foram retirados de vez da Busca.

Strauss foi o primeiro autor a trazer a ideia do mito para explicar os Evangelhos. Em resposta aos racionalistas (os quais afirmavam que os episódios da vida de Jesus poderiam ser explicados sem recorrer aos milagres) e aos sobrenaturalistas (que acreditavam na literalidade dos acontecimentos narrados pelos evangelistas), o autor afirmou que, mais do que fatos reais ou coisas que podem ser entendidas de maneira racional se a capa sobrenatural for retirada, os episódios milagrosos foram mitos criados pela mentalidade antiga e aplicados à vida de Jesus. Para Strauss, os primeiros cristãos desenvolveram essas histórias milagrosas como uma apologia a sua visão do que o messias deveria ser idealmente. Dessa forma, por exemplo, o autor do Evangelho Segundo Mateus cunhou a sua narrativa do nascimento de Jesus tomando como base as histórias de Moisés e Israel que aparecem no Antigo Testamento: assim como Moisés foi perseguido ainda quando criança por faraó, Jesus também foi perseguido por Herodes; assim como o povo de Israel teve seu êxodo do Egito, Jesus também saiu daquela nação, etc.

O livro de Strauss causou indignação e alvoroço na Europa de 1835. Por causa dele, o autor foi impedido de conseguir emprego como professor e recebeu duras críticas do mundo acadêmico da época. Ainda assim, Das Leben Jesu (no original em alemão) iniciou uma nova época nos estudos críticos sobre a vida de Jesus. Como afirmou James Dunn ao comentar este livro, aqueles que estão do lado da fé no debate da busca pelo Jesus histórico deveriam ler Strauss para experimentar um pouco do choque que esse texto causou quando foi publicado pela primeira vez.

01/11/2021

As narrativas sobre o nascimento de Jesus: verdades históricas ou deliberações teológicas posteriores?

Dois dos quatro Evangelhos do Novo Testamento, Mateus e Lucas, apresentam uma narrativa do nascimento de Jesus de Nazaré. Apesar de serem muito diferentes entre si -- por exemplo, enquanto Lucas pressupõe que a cidade natal da família de Jesus é Nazaré, Mateus afirma que eles se mudaram para lá por medo de serem descobertos pelo governante da Judéia; embora Mateus narre uma perseguição por Herodes, Lucas nada sabe a respeito desse detalhe importante; conquanto Lucas não saiba nada sobre uma estrela guiando magos até o local do nascimento de Jesus, Mateus também não parece fazer ideia de que uma corte celestial tenha celebrado o nascimento da criança, etc. --, no imaginário popular, por influências variadas, não menos devido ao cinema e teatro, e especialmente à apologética evangélica da atualidade, essas histórias formam um todo completo e harmonizado. Entretanto, o que mais me chama a atenção não é o fato de esses dois Evangelhos possuírem um relato sobre o nascimento do Messias, mas que os outros dois, Marcos e João, omitem as histórias completamente. 

Seja lá o que o autor de Marcos esteja tentando falar sobre Jesus de Nazaré, uma coisa é muito clara: para aquele autor, Jesus foi uma pessoa especial: ele curou doentes, expulsou espíritos malignos, andou sobre as águas, controlou tempestades, multiplicou comida, previu sua própria morte e voltou dos mortos. Eu não sei quanto a você, leitor, mas, se estivesse escrevendo uma história sobre a vida de alguém assim, eu jamais deixaria de fora um relato sobre o nascimento dele por meio de uma virgem! Acredito que um relato dessa natureza, além de ser um acréscimo fantástico para a minha narrativa, seria uma abertura perfeita para o meu livro sobre a vida de alguém como Jesus.

Em se tratando de João, talvez esse não teria sido o ato ideal para abrir a sua narrativa sobre quem era Jesus de Nazaré, afinal, esse evangelista começa a sua história com o tempo antes do tempo: para ele, Jesus é a expressão da mente e das ações de Deus no mundo tornada em uma pessoa de carne e osso; a Sabedoria de Deus encarnada, aquela que estava presente com Deus na criação; o Logos divino. Nada mais justo, portanto, do que começar a sua história da vida de Jesus com essa assombrosa afirmação. Contudo, se eu fosse esse autor, que fala da preexistência de Jesus e de sua clara divindade, não deixaria faltar esse pequeno detalhe do nascimento virginal e as circunstâncias especiais nas quais a anunciação da gravidez e o parto aconteceram.

A esta altura, o leitor já deve ter percebido qual é o meu ponto com os parágrafos anteriores: se alguém fosse escrever sobre a vida de uma pessoa que fez milagres, foi morto, mas ressuscitou, e soubesse que ele havia, também, nascido de uma virgem, acharia importante relatar essa informação para o seu público. Veja bem, eu não estou dizendo que tudo o que Jesus teria feito em sua vida necessariamente teria sido escrito. Não o foi. Isso é inegável. Estou dizendo que o nascimento se destaca como algo ainda mais relevante do que um milagre de cura, por exemplo, porque ratificaria a importância daquela pessoa desde o seu nascimento, ou mesmo antes dele, quando ainda estava no ventre de sua mãe.

Ao lidar com o trabalho de determinar o que aconteceu no passado, é impossível falar sobre certezas e verdades absolutas. Tudo se trata de probabilidade: o que é mais possível de ter acontecido no passado? Para analisar isso, precisamos pensar da seguinte forma: o que acontece hoje em dia é o que acontecia no passado, aquilo que os historiadores chamam de analogia natural. Raciocinando dessa maneira, e tentando determinar o que aconteceu há dois mil anos, quando os autores dessas histórias da vida de Jesus resolveram escrever sobre ele, devemos nos perguntar qual é o cenário mais plausível de ter ocorrido com os relatos do nascimento: se, hoje, alguém provavelmente não deixaria essas histórias de lado ao escrever sobre uma pessoa especial, é mais provável que, se as conhecesse, um autor, no passado, também as teria escrito. Dessa forma, ficamos com a seguinte questão e suas possíveis respostas: por que Marcos não registrou a(s) história(s) do nascimento? (1) porque não a conhecia; (2) porque não a achava importante; ou (3) porque ele esperava que outro autor, quem sabe inspirado por Deus, escreveria a história no seu lugar, tornando o seu Evangelho obsoleto e incompleto. Eu não sei quanto a você, leitor, mas me parece que a resposta mais plausível seja a primeira. 

Se minhas conclusões estiverem corretas (que Marcos e João não conheciam a história do nascimento virginal e suas circunstâncias especiais), nos deparamos com outro problema:⁩ como é possível eles não conhecerem essa história, se tiveram contato direto com os primeiros discípulos e, possivelmente, a própria Maria? A tradição cristã nos afirma que os autores dos Evangelhos que carregam seus nomes eram realmente tais pessoas: Mateus, o discípulo de Jesus, Marcos e Lucas, os companheiros de Paulo, e João, outro discípulo direto do mestre. Contudo -- e, novamente, racionalizando através da analogia natural, buscando aquilo que seria mais plausível como explicação para nossos questinamentos --, me parece estranho pensar que tais autores seriam realmente quem a tradição nos diz que foram, pois, se o fossem, teriam conhecido os parentes de Jesus e, por consequência, as circunstâncias especiais sobre o seu nascimento. Se os autores são quem os títulos dos Evangelhos dizem que são, e se Marcos e João, de fato, não conheciam essas histórias sobre o nascimento de Jesus, a única alternativa que nos resta é que essas histórias teriam ficado escondidas (com Maria e José?) até que apenas Mateus e Lucas as descobrissem, e isso de maneira bem estranha, pois, como vimos, as narrativas de Mateus e Lucas não são as mesmas. Portanto, me parece mais plausível concluir que os autores dos evangelhos não podem ser quem a tradição diz que eles são. Se o fossem, é mais provável que eles teriam conhecido uma única história advinda diretamente de Maria e dos parentes próximos de Jesus. Eles são provavelmente helenistas judeus (se todos judeus, eu não sei) e prosélitos gregos de uma geração posterior a dos primeiros discípulos.

Novamente, apelo à probabilidade: se todos conhecessem essas histórias como sendo algo vindo de testemunhas oculares (Maria principalmente), é provável que Marcos as tivesse colocado em sua narrativa sobre a vida de Jesus e que todas elas seriam iguais ou pelo menos parecidas. Dessa forma, nos resta a pergunta: de onde as histórias sobre o nascimento de Jesus vieram? Mais um cenário nos é apresentado: se Marcos e João não relataram o nascimento porque não conheciam essas histórias, ou elas vieram a surgir ex post facto (são histórias desenvolvidas posteriormente), ou ficaram ocultas até que Mateus tenha descoberto uma e Lucas a outra.

Levando-se em conta que Marcos e João não conheciam a história e que Mateus e Lucas conheciam duas diferentes, me parece mais provável que elas tenham surgido de um desejo de explicar de onde Jesus veio e como ele era especial. Ou seja, com a experiência da Páscoa, de ter visto Jesus após a morte dele, e com o desenvolvimento da cristologia -- com o passar dos anos, as explicações sobre quem era Jesus e o quanto ele era especial foram crescendo --, histórias sobre o seu nascimento ter sido especial surgiram no meio das comunidades primitivas, mas nem todas elas as conheciam e elas não vieram de Maria: olhando para o Antigo Testamento buscando explicações para a vida de Jesus, os evangelistas se inspiraram nas histórias dos antigos heróis judeus para escrever sobre como teria sido o nascimento dele. Dessa forma, assim como Moisés foi perseguido por faraó, assim também Jesus foi perseguido por Herodes, por exemplo; tendo em vista que Isaías falava de uma virgem dando a luz, Maria, mãe de Jesus, só poderia ter sido uma virgem ao receber o Messias em seu ventre, etc. -- parece-me mais provável que Isaías estivesse falando de algo no seu contexto histórico, não de Jesus, que viria a nascer muitos séculos depois. O mais razoável é imaginar que os discípulos de Jesus interpretaram Isaías com o pressuposto de que o Nazareno era o Messias e, portanto, deveria cumprir as profecias do que o contrário.

Apesar de essas conclusões soarem, às mentes evangélicas atuais -- que costumam misturar história com teologia, e que, inevitavelmente influenciadas pelo pensamento iluminista, buscam provar o cristianismo através de verdades científicas -- como um ataque à fé e à narrativa bíblica, elas exaltam a real intenção dos autores bíblicos e nos trazem à luz a forma com que esses documentos foram produzidos. Como disse o grande Raymond E. Brown, "enquanto as histórias do ministério dependem, pelo menos em parte, das tradições que vieram dos discípulos de Jesus que o acompanharam durante aquele ministério, não temos informações confiáveis sobre a fonte do material da infância. Isso não significa que as narrativas da infância não tenham valor histórico, mas significa que não se pode fazer suposições sobre sua historicidade com base em sua presença nos Evangelhos."

19/10/2021

Book Review #4 - The Historical Jesus, John Dominic Crossan

Minha relação com este livro é de amor e ódio: amor porque acho o autor brilhante em suas colocações, análises e clareza metodológica; ódio porque, apesar de tudo isso, não consigo aceitar suas conclusões.

Partindo de três camadas interdisciplinares (antropologia intercultural, história romana e judaica e arqueologia), Crossan busca separar textos de contextos para reconstruir (uma palavra-chave para o autor), não buscar, o Jesus da história.

Após o uso das três camadas (antropologia, fontes históricas da época e arqueologia) de forma cruzada, o Jesus de Crossan surge reconstruído como um Camponês Cínico Judeu, alguém que, em suas atitudes e estilo de vida, fazia oposição às elites da época: "O Jesus histórico era, então, um camponês cínico judeu. Sua aldeia camponesa ficava perto o suficiente de uma cidade greco-romana como Séforis, de modo que a visão e o conhecimento do cinismo não são inexplicáveis ​​nem improváveis. Mas seu trabalho estava entre as fazendas e aldeias da Baixa Galiléia. Sua estratégia, implícita para si mesmo e explicita para seus seguidores, era a combinação de cura gratuita e as refeições compartilhadas, um igualitarismo religioso e econômico que negava por igual e ao mesmo tempo as normalidades hierárquicas e patronais da religião judaica e do poder romano."

O Jesus reconstruído por Crossan, dessa forma, está longe de ser um profeta apocaliptico judaico como João Batista; ele não está dentro do movimento apocaliptico, esperando a intervenção imediata de Deus que traria o reino escatológico do fim dos tempos, como os primeiros cristãos e Paulo;  o Jesus de Crossan está mais próximo de um hippie antigo que pregava a paz, o igualitarianismo e a relação direta com Deus, fazendo crítica aos poderosos.

Por alguns motivos, eu não consigo concordar com Crossan (embora ache sua reconstrução digna de todo respeito): primeiro, porque, mesmo sendo próxima de cidades aparentemente gregas, Nazaré, como qualquer vila do interior hoje em dia, não seria culturalmente influenciada por um movimento estritamente estrangeiro apenas pela proximidade: o fator cultural judaico certamente falaria muito mais alto na matrix (para usar uma palavra preferida de Crossan) de Jesus de Nazaré -- não me parece fazer muito sentido, usando a analogia natural, pensar que Jesus estaria tão longe do imaginário de seus correligionários; depois, porque reconstruir o que Jesus pretendia através da veracidade histórica de algumas de suas falas pode ser perigoso: você corre o risco de favorecer apenas os logions que lhe parecem coniventes com aquilo que já pressupõe a respeito de Jesus -- esse, a meu ver, é um equívoco primordial do Jesus Seminar.

Apesar de ser uma reconstrução brilhante, o Jesus Histórico de Crossan me parece muito mais com o mestre ideal desse ex-padre católico que recebeu o nome Dominic no monastério do que com um judeu que realisticamente teria vivido há dois mil anos atrás no interior da Galiléia e que foi crucificado com a acusação de pretenso rei dos judeus.

11/10/2021

Book Review #3 - A Religião do Bolsonarismo, Yago Martins

O último livreto de Yago Martins, A Religião do Bolsonarismo, não é uma análise sociológica do fenômeno Bolsonaro no Brasil; não se trata de uma pesquisa acadêmica sobre o que está acontecendo na mentalidade brasileira; não é uma avaliação de um cientista sobre a dinâmica das ideias políticas em nosso país. Trata-se, apenas, da opinião de um pastor evangélico sobre algo que ele não entende.

O que o autor faz em sua nova publicação é imaginar, desde uma perspectiva teológica pronta que ele aprendeu com o fundamentalismo evangélico americano, que os apoiadores mais entusiasmados do presidente trocaram o seu deus (do Yago) por uma figura política. Ao acreditar em sua própria imaginação, o pastor, que tem menos de trinta anos de idade, tece uma apologia à sua religião, dizendo de maneira arrogante, como sempre o faz, que não há outro deus além do seu e acusando de idolatria brasileiros sofridos e indignados com o terrível resultado do trabalho de governos anteriores.

O brasileiro, muito religioso e cristão, mais do que Yago Martins jamais seria, não trocou o seu deus por uma figura política. O que ele fez foi depositar a esperança de uma vida menos difícil no trabalho de alguém que falou o que ele queria ouvir e refletiu seus anseios e desejos em sua proposta política; o que o brasileiro fez foi, no máximo, enxergar em Bolsonaro um representante de deus para o Brasil. E isso, mesmo dentro do sisteminha teológico evangelicalista do Yago, jamais será idolatria. Se o fosse, ele teria que chamar todos os primeiros cristãos de idólatras também. Isso, porém, o pastorzinho jamais faria, pois uma mente presa a ideologias religiosas como a do autor dessa cartilha apologética nunca será capaz de entender que o cristianismo primitivo não tem nada a ver com o que ele imagina ser cristianismo. 

Apologetas como Yago Martins nunca poderão analisar a realidade ao seu redor sem fazer um discurso político-religioso disfarçado de tese acadêmica. A mistura do liberalismo econômico mal compreendido com o fundamentalismo religioso de um jovenzinho que tem os hormônios à flor da pele é desastrosa.

Book Review #2 - Pequenos comentários sobre alguns livros a respeito do Jesus histórico

Jesus and Judaism (E. P. Sanders)

E. P. Sanders está na minha lista top 3 de autores favoritos e eu acredito que ele seja o estudioso do Novo Testamento mais importante do século passado. Nesta obra, após demonstrar os problemas que existem em basear a análise histórica de Jesus nas suas falas, Sanders parte de dois fatos que são os mais seguros de determinar historicamente sobre o Nazareno: o incidente no templo e a morte por crucificação. Verificando que, para Jesus, a ação feita no templo significava um gesto profético que simbolizava a destruição final do local e que ele foi morto por representar uma ameaça à pax romana, o autor conclui que Jesus foi um profeta apocalíptico judeu que esperava uma intervenção final divina no curso normal da história humana.


The Historical Figure of Jesus (E. P. Sanders)

Diferente do seu livro acadêmico sobre Jesus e o Judaísmo, onde parte do incidente no templo para analisar quem era o Nazareno, nesta obra muito mais popular, Sanders oferece sua reconstrução do Jesus histórico para quem não entende nada do assunto. Com todo o plano de fundo contextual necessário, o autor mostra como Jesus foi um judeu que esperava uma intervenção imediata de Deus para mudar o rumo da história e de seu povo. Não é tão bom quanto o primeiro, mas, ainda assim, é um livro de E. P. Sanders e merece ser lido com toda a atenção, principalmente se você não está familiarizado com o tema.


Jesus of Nazareth: King of the Jews (Paula Fredriksen)

O que mais impressiona neste livro é a sagacidade histórica da autora: Paula sabe se portar com respeito e sinceridade diante de suas fontes. Para reconstruir o passado, você precisa se despir de tudo o que sabe em retrospecto e entrar no estado mental de ingenuidade sobre o futuro das pessoas cujas vidas você busca entender e descrever. E a autora faz isso com maestria. As cenas reconstruídas de episódios da vida de Jesus fazem você entrar no mundo dos antigos judeus do segundo templo. Fredriksen explica como o título 'Rei dos Judeus' se relaciona com a morte de Jesus dentro do contexto de domínio romano na Palestina do primeiro século; demonstra por que apenas Jesus foi morto, e não, junto com ele, seus seguidores, e como o seu movimento pôde continuar mesmo após a sua morte. De maneira muito popular, e até quase melhor do que Sanders faz em Historical Figure, a autora fornece todo o contexto histórico necessário para que o leitor entenda o que e como as coisas aconteceram com Jesus de Nazaré. Este livro me lembrou muito Jesus and Judaism, como se ele tivesse sido escrito para o público geral, não para acadêmicos. As conclusões de Fredriksen são praticamente as mesmas de Sanders.


Jesus of Nazareth: Millenarian Prophet (Dale C. Allison)

Allison segue a mesma linha de Sanders: para ele, Jesus foi um judeu apocalíptico que esperava o final dos tempos. O ponto forte desta obra é a maneira com que o autor explica a necessidade de uma fundamentação metodológica correta para se iniciar a análise histórica sobre Jesus de Nazaré. O epílogo deste livro é uma das coisas mais lindas e impactantes que já li sobre o Jesus histórico. Allison recebeu um lugar de direito na minha lista top 5 de autores preferidos sobre o tema.


Jesus (Marcus Borg)

Marcus Borg foi membro do Seminário de Jesus. Como tal, baseia sua análise histórica sobre Jesus primariamente nas falas, isto é, determina quais logions são possivelmente verdadeiros e reconstrói Jesus de Nazaré a partir disso. Eu não gosto dessa abordagem por vários motivos, mas
principalmente porque acho extremamente difícil verificar quais ditos de Jesus são ou não verdadeiros e o nível de alteração que cada um sofreu (a tendência é que os seus
pressupostos acabem pesando muito na escolha daquilo que realmente foi dito por Jesus). Mesmo assim, acho a leitura desta obra muito válida, especialmente pelo mar de informações sobre o tema trazidas pelo autor.


Jesus e as Testemunhas Oculares (Richard Bauckham)

Bauckham foi o primeiro autor não apologeta que li falando a respeito de Jesus. Lembro-me da sensação de estar finalmente entendendo melhor o que eram os evangelhos e de começar a compreender mais claramente quem foi Jesus. Nesta obra (que não me convenceu por completo), o autor defende a ideia de que os quatro evangelhos neotestamentários são baseados em relatos de testemunhas oculares. Minha crítica é a seguinte: é claro que qualquer tradição que exista sobre Jesus veio, em última instância, de uma testemunha ocular (obviamente, ninguém criou Jesus ex nihilo - pode chorar, miticista). Contudo, me parece ingenuidade quase apologética imaginar que tudo o que existe na tradição de Jesus tenha surgido de testemunhas oculares e não (também) de uma visão antiga sobre como o mundo funciona. Strauss precisa ser levado em consideração.

Book Review #1 - "O Jesus Histórico: Critérios e Contextos no Estudo das Origens Cristãs", Darrel L. Bock, J. Ed Komoszweski (Editores)

Finalmente, o livro sobre o Jesus histórico organizado por Darrel Bock foi traduzido ao português, e alguns amigos vieram pedir a minha opinião a respeito da obra. Pois bem, aí vai:

Este livro foi escrito por acadêmicos evangélicos, não estudiosos críticos. Existe um ramo, dentro do mundo acadêmico norte-americano, composto por pessoas que se formaram em universidades confessionais nos EUA. Eles escrevem como acadêmicos e estudaram na academia, mas são confessionalmente evangélicos, e, em sua maioria, vieram de universidades que compartilham de sua fé. Este livro é uma compilação de ensaios desses autores, os quais tentaram usar a linguagem acadêmica para fazer uma crítica aos estudiosos críticos. Assim, a obra é boa para quem está buscando algo que confirme a sua fé, para quem tem uma visão mais conservadora sobre Jesus, mas não para quem está tentando entender verdadeiramente o assunto.

Com excessão, talvez, de Larry Hurtado, que figura como um ponto fora da curva na lista de nomes que aparece na capa, a meu ver, existem dois autores, dentre todos estes, que (eu não diria que se salvam, mas) são menos piores: Scot McKnight e Craig Evans, os quais são evangélicos, mas dão o braço a torcer para algumas coisas. O prefácio é de Tom Wright, mas, num primeiro momento, o tom de Tom não me pareceu muito entusiasmado: ele apenas fala que o conteúdo fomentará o debate, e pede para que os outros acadêmicos prestem atenção ao que foi dito. 

Eu não acredito que seja um livro para se começar a estudar o assunto, e não acho que será uma obra que fará alguma diferença na busca pelo Jesus histórico. Ele serve para, dentro do mundo evangélico, oferecer uma resposta aparentemente acadêmica às conclusões críticas sobre o Jesus da história, e fala àquelas pessoas que sentem que o cristianismo estará sendo jogado fora se as conclusões críticas desse campo de estudo forem adotadas. No final das contas, os autores estão fazendo apologética.

Guardadas as devidas proporções, essa obra me lembrou o livro organizado por D. A. Carson para responder a E. P. Sanders: enquanto este último falou sobre nomismo da aliança em Paul and Palestinian Judaism, virando o mundo dos estudos do Novo Testamento de cabeça para baixo, criando um novo e irrefutável paradigma e desmoronando o frágil castelo de cartas da exegese reformada, Carson e Cia. insistiram numa variedade de nomismos em Justification and Variegated Nomism, afirmando que 4 Esdras mostra, no judaísmo do segundo templo, algo parecido com aquilo que Lutero chamaria de legalismo, coisa que Sanders já havia confirmado em seu livro de 1977 e dado como excessão à regra -- os evangélicos não cansam de tentar salvar a sua tradição assassinando a exegese.

Em suma, a obra é escrita por autores acadêmicos evangélicos que escrevem para esse mundo dos artigos cheios de notas de rodapé, mas você dificilmente verá um artigo desses autores em journals de alto gabarito, como The New Testament Studies, The Harvard Theological Review, Journal of Biblical Literature, etc., onde o debate acadêmico serve para o mundo real que compartilha do diálogo aberto sobre o que aconteceu no passado, e não apenas para o ambiente fechado das igrejas mais fundamentalistas. Por fim, tudo se torna uma briga chata entre apologetas que se vestem de acadêmicos para proteger a fé, e historiadores que olham para tudo isso espantados, tentando explicar que não se trata de fé, mas de metodologia.

Alguém me dirá, como já me disseram por incontáveis vezes, que os estudiosos críticos também estão fazendo apologética do ceticismo. Essa afirmação parte da ideia de que todo mundo entra numa investigação acadêmica já com um pressuposto sobre a fé e o cristianismo. A racionalização funciona da seguinte maneira: se eu tenho o pressuposto da fé em Jesus e estou fazendo a minha apologética, então aqueles que estão do outro lado do debate, os quais não acreditam nas mesmas coisas que eu acredito sobre Jesus, também estão fazendo uma apologética, só que ao ateismo. Isso, contudo, simplesmente não é real. É claro que existem pessoas que fazem isso, especialmente os miticistas (aqueles que acreditam que Jesus nunca existiu) -- esses caras, eu preciso admitir, são apologetas do ateismo (graças a Deus, essa chatice ainda não chegou no Brasil, e se concentra na internet de fala inglesa). Existe um outro pessoal (da esquerda americana), aqueles mais radicais do seminário de Jesus, que também parecem fazer um pouco disso, transformando suas conclusões quase num debate político contra a direita evangélica fundamentalista americana (Crossan deve ficar frustrado com certas afirmações desses caras).

Mas nem tudo é assim. Há estudiosos que sabem separar fé de história e acreditam que as fontes precisam ser analisadas sem medo de quais conclusões possam ser alcançadas. Por incrível que possa parecer para um apologeta, existem pessoas que simplesmente estão procurando a verdade; que buscam a verdade sem se importar em mudar de opinião, e essa é a maioria dos estudiosos, basta lê-los para perceber isso (vocês nunca ouviram falar de Dale C. Allison Jr., por exemplo? Leiam meio livro dele para ver o que é a busca sincera pela verdade). Estudiosos como Sanders, Fredriksen, Collins, Dunn, Meier, entre tantos outros, (muitos deles cristãos convictos), não são apologetas nem de um lado e nem de outro; apenas estão tentando entender a realidade. Essas pessoas podem errar, e certamente erram, mas estão sendo sinceras com suas fontes.

Dizer que quem está do lado crítico faz apologética da critica é uma afirmação evasiva de quem acha que todo mundo tenta defender uma causa, quando, na realidade, existe gente sincera que busca entender o que acontece ao seu redor. É certo que o sujeito está envolvido com qualquer análise histórica; o passado explica o presente tanto quanto o presente explica o passado, e é impossível fugir disso. Contudo, já está na hora de os apologetas admitirem que existe uma forma aceitável a todos para se determinar com certo nível de probabilidade o que aconteceu no passado, mesmo que o sujeito que faz a análise esteja envolvido em sua pesquisa e não consiga sair de si mesmo para fazer o seu trabalho. Se isso não for verdade, qualquer côrte de justiça que busca determinar o que aconteceu no passado ao investigar um crime estaria condenando pessoas por vontade própria de quem julga as fontes. Sabemos que isso não é real.

Pelo preço de R$ 40,00, a compra até que vale a pena, mas, se você nunca leu nada sobre o assunto proposto pelo livro, não comece por ele: leia O Jesus Histórico, Um Manual, de Gerd Theissen -- este é o lugar certo para começar. Existem muitos livros já traduzidos e escritos originalmente em português, especialmente das Edições Loyola e da Editora Paulus, que jamais chegam nas mãos do público mais geral das igrejas evangélicas, porque tudo o que se conhece nesse meio, em questão de editoras, é aquele pessoal homologado pelos grandes nomes da apologética neste país. No Brasil, infelizmente, defesa da fé confunde-se com metodologia histórica.

07/10/2021

O surgimento das primeiras cidades e o desenvolvimento da religiosidade mitológica dos povos antigos

Nota: o trecho abaixo foi extraído do livro “A angústia de Abraão”, pp. 57-8, do autor Emílio Gonzales Ferrín.

 

É provável que a primeira tentativa sistemática de explicação do mundo tenha sido a mesopotâmica. O testemunho escrito — histórico — de algumas das distintas civilizações assentadas principalmente nas bacias dos rios Tigres e Eufrates — em torno do atual Iraque, principalmente — remonta até o ano 3000 a.C. Sumérios, acádios, babilônicos, assírios e hititas se sucederam na Mesopotâmia, gerando uma complexa interpretação do mundo e suas origens — cosmogonia — que pôde chegar até nós pela grande contribuição instrumental de tais povos: a escritura cuneiforme; uma forma de registro providencialmente longeva. O conteúdo desses textos varia: desde registros musicais, jurídicos, comerciais ou reflexões pessoais, até a citada cosmogonia mesopotâmica: uma narração proveniente do tempo sumério — 3000 a.C. —, e provavelmente fixada na época babilônica — anos 1000 a.C. —, quando se compila uma visão sobre a criação dos deuses, o mundo e o ser humano.

Um dos poemas que contêm tal cosmogonia é, por exemplo, o Enuma Elish, ou poema babilônico da criação. O nome de Enuma Elish provém das duas primeiras palavras do poema: Quando, lá no alto... um bom começo de um primeiro poema cosmogônico, sem dúvida, e de semelhança nem um pouco dissimulada com o primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, em hebraico. Be-reshit, no princípio..., livro que bebe profusamente das fontes babilônicas. De fato, pode-se dizer que o Enuma Elish recolhe pela primeira vez — até onde sabemos — elementos narrativos paradigmáticos para o restante das cosmogonias: criação, ordem sobre o caos, sequência das coisas criadas, assentamento das águas, dilúvio universal, e um sem-fim de elementos comuns a tantas outras visões sobre a origem do mundo e do ser humano.

Mesopotâmia provém do grego (Μεσοποταμία) — entre rios —, indubitável versão do aramaico bez nahrin ou do persa miyanrudan, que têm exatamente a mesma tradução. Ambos os rios citados e aqui referidos — o Tigre e o Eufrates, Dachla e Furat nas tradições desembocadas no árabe — compartilham um complicado regime de cheias e vazantes no nível das águas, provocando inundações tais que se pode compreender a razão de ser de uma cosmogonia surgida das águas estabelecidas, assim como maldições consistindo de enchentes ou dilúvios. Também se poderá compreender a necessidade de um trabalho comum para tirar proveito de alguns rios, cuja desmesura não permite economias familiares, mas protoestatais: o sistema de represas, canais e muros de contenção que requer o aproveitamento de tais rios se acerca à visão das origens estatais postuladas por Wittfögel em sua obra O despotismo oriental; toda aquela teoria sobre as chamadas dinastias hidráulicas. Não é casual que as origens do estado e da história — tempo resenhado por escrito — possam ser rastreadas em economias semelhantes, baseadas na necessidade de mover massas de trabalhadores: bacia do Nilo, do Ganges, e inclusive do Iangtzé, na China. E é evidente que tudo que agora contemplamos como textos religiosos eram em seu momento — já fizemos alusão a isso — visões de mundo protocientíficas, provavelmente a serviço de ideologias — unidade estatal — ou grupos de poder, tais como castas de escribas, no futuro conhecidas como sacerdotais.

Coincide a aparição da escrita — de novo, em torno do ano 3000 a.C. — com o apogeu da civilização Suméria e suas cidades/estado: Uruk principalmente, mas também Eridu, Kish, Lagash, Ur... É interessante presenciar como a história do Oriente Médio é a de suas cidades... além do mais, esta essencial descentralização territorial corresponde a um absolutismo de poder em cada cidade, na qual governava um rei indefectivelmente autorreconhecido como representante do deus patrono da cidade. Daí o valor de tradição unificadora que ligue com as origens do mundo — a viagem desde meu deus a um deus —; daí o crivo como patrimônio exclusivo de uma casta — o povo era analfabeto —, e daí os ímpetos religiosos de tal casta: não só deve o povo obedecer, mas nisso está a garantia da salvação eterna. Embora, sem dúvida, o processo deva ter sido inverso: Como podemos fazer com que o povo obedeça? Indicando que pode perder a vida eterna...

01/10/2021

Desenvolvimento no cristianismo: história e construção civilizacional

É inegável que tenha existido, desde o princípio do movimento de Jesus, uma evolução e desenvolvimento na liturgia cristã. Acreditar que os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré usavam vestes simbólicas e utensílios de ouro em reuniões que aconteciam de maneira humilde nas suas próprias casas é uma imaginação purista e, acima de tudo, apologética, algo criado por mentes que não conseguem aceitar que suas crenças não são exatamente as mesmas dos primeiros judeus discípulos de Jesus. 

Todo esse desenvolvimento da liturgia, tanto em imagem quanto em forma, acompanhou o desenvolvimento teológico sobre quem foi e o que significava Jesus, enquanto essa atualização teológica também veio acompanhada de influências filosóficas externas e de maneiras de explanar e enxergar o mundo e a realidade. Quando o movimento de Jesus deixou de ser uma seita judaica, permitindo a entrada de vários gregos (não-judeus/gentios), sem a necessidade da circuncisão e da atenção às leis dietéticas e ao calendário sagrado (marcas étnicas de uma cultura exclusivamente judaica), bastou alguns séculos para que o neoplatonismo se tornasse a língua franca para explicar Jesus de Nazaré. Com o passar dos anos, essa nova linguagem filosófica, ainda que sendo instrumentalizada para falar de algo judaico em essência, também deixou suas marcas no culto cristão, na institucionalização e padronização da forma de se fazer uma reunião cristã.

Mais tarde, quando a filosofia aristotélica também foi adicionada a esse caldeirão cultural que formou o jeito cristão de se cultuar a Deus, a forma medieval da Missa estava completa. Quando, no alvorecer da modernidade, Martinho Lutero tentou separar Moisés de Aristóteles, ele havia esquecido (ou nem se deu conta!) de que Platão também estava presente, e manteve a linguagem da filosofia grega para explicar Jesus, firmando-se no Credo de Nicéia. Foi preciso mais três séculos até que um outro alemão pudesse chegar às conclusões lógicas da metodologia crítica e mostrar que a teologia estava equivocada quanto à sua concepção histórica a respeito de Jesus e dos seus discípulos originais — Reimarus foi o reformador derradeiro, mas o seu Jesus jamais servirá como força motivadora que dará base a uma cultura inteira. Esse Jesus serve apenas para a academia, e a busca do Jesus histórico, o profeta apocalíptico dos últimos dias, é um exercício para as mentes inquietas, não para o cidadão comum, que não tem tempo para gastar com livros intermináveis, enquanto luta diariamente para sustentar a sua família. Esse homem precisa de um ponto firme, um imaginário que dê sentido à sua vida, ainda mais se deixarmos de lado o reducionismo materialista e nos abrirmos à possibilidade de que a realidade seja muito mais complexa e estranha do que possamos imaginar.

Com todo esse patente crescimento e evolução naquilo que se tornou o cristianismo, nem católicos estão certos ao acreditarem que o cristianismo dos pais da igreja é o original, nem protestantes ao pensarem ter se livrado da capa católica, mas que mantêm aquilo que jamais passou pela cabeça de Pedro e Paulo quando falavam sobre Jesus. O cristianismo como o conhecemos hoje é fruto do próprio desenvolvimento do pensamento ocidental como um todo, e jamais poderemos chegar a uma forma original dos primeiros discípulos — eles não eram cristãos como entendemos hoje, mas judeus, e, mesmo entre eles, não havia um consenso sobre quem foi Jesus e o que ele significou, vide todas as divergências de opinião a esse respeito presentes ainda nos escritos que formam o Novo Testamento. A seita judaica que posteriormente viria a se tornar a religião cristã sempre foi multifacetada, desde o início. 

A meu ver, não há sentido em querer se livrar de desenvolvimentos naturais que aconteceram ao longo de vinte séculos de história cristã para buscar um cristianismo supostamente apostólico ensinado por Jesus e seus primeiros seguidores. Aquilo que começou de maneira humilde como uma seita apocalíptica dentro do caleidoscópio de opiniões sobre como a religião de Moisés deveria ser seguida e vivida que era o judaísmo do segundo templo acabou por se tornar a religião do império que antes a perseguia. Essa constatação, sozinha, deveria acender o sinal de alerta para quem imagina que o cristianismo se manteve perfeitamente constante durante todo esse tempo. As próprias circunstâncias exigiriam uma evolução em muitos aspectos. Uma delas, é óbvio, esteve ligada à maneira de se reunir para adorar ao seu Deus.

A religião é o motor da sociedade, e o cristianismo como o conhecemos hoje, em suas várias vertentes culturais diferentes, é o que nos move como brasileiros e o que nos formou como nação e povo. Mesmo com os perigos intelectuais que isso possa acarretar, e ainda correndo o risco de ser usado por líderes maldosos, me parece que, para o cidadão comum, por prudência e preservação da tradição ocidental, talvez seja mais seguro seguir o cristianismo com a capa neoplatônica dos pais e o aristotelismo dos tomistas — apesar de sua origem pagã (pelo menos em essência) — do que o apocalipticismo judaico do mestre: o primeiro foi bem construído para durar; o último se desfez logo, pois esperava um fim que jamais veio.

13/09/2021

A ascenção de Jesus: relato histórico ou cena apologética?

O relato da ascenção de Jesus aos céus, narrado em Lucas e no Livro dos Atos dos Apóstolos, é uma cena marcante: diante dos olhos dos discípulos, o Jesus ressurreto sobe aos céus e é encoberto pelas nuvens, numa clara alusão ao seu entronamento à destra de Deus Pai. O que parece curioso, na tradição sinótica, é que esse episódio só aparece na obra do terceiro evangelista. Por que Mateus, Marcos e até mesmo João não mostram essa cena?

É interessante notar que as narrativas mais antigas sobre a ressurreição a conectam com exaltação (a entronização de Jesus Cristo à destra do Pai), mas não falam exatamente como essa exaltação de Jesus aconteceu, isto é, não narram o momento da subida aos céus; nessas narrativas mais antigas, existe uma conexão direta entre ressurreição e exaltação, sem um espaço de tempo entre os dois momentos e sem uma descrição da subida de Jesus aos céus.

"E foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos." (Romanos 1:4).

"Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século." (Mateus 28:18-20).

Em Mateus, após a ressurreição, Jesus encontra os discípulos na Galiléia, e o Evangelho encontra seu final com uma garantia da presença do Cristo ressurreto junto à comunidade, mas não há a descrição da subida aos céus. Quanto a Marcos, não há menção nem mesmo das aparições do Jesus ressuscitado, apenas do espanto das mulheres frente à tumba vazia. 

"A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis." (Atos 2:32-33).

"A este ressuscitou Deus no terceiro dia e concedeu que fosse manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos; e nos mandou pregar ao povo e testificar que ele é quem foi constituído por Deus Juiz de vivos e de mortos." (Atos 10:40-42).

Aqui, mesmo se tratando do escritor de Lucas/Atos, a narrativa não descreve a ascenção, uma subida. É possível que o terceiro evangelista tenha usado fontes/testemunhos sobre a pregação mais antiga da igreja para escrever a respeito desse período mais embrionário, visto que a cristologia das falas atribuídas a Pedro não se encaixa exatamente com o que Lucas fala acerca de Jesus. Assim, esses relatos mais antigos não condizem com a própria narrativa adotada pelo autor, e não mostram Jesus subindo aos céus após a ressurreição.

João, da mesma forma, fala de uma ascenção que aconteceu no dia da ressurreição, sem narrar a cena da subida e sem deixar nenhum espaço de tempo entre ressurreição e exaltação:

"Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus." (João 20:17).

Existem outras aparições de Jesus após essa cena no quarto evangelho, mas, com o final editado de João, é difícil pensar em algo mais concreto sobre isso. Parece que os editores finais não se importaram em explicar para onde Jesus foi depois dessas aparições (veja 20:26-29 e 21:1-23).

Nos textos acima, vemos que Jesus foi exaltado -- recebeu domínio/poder, sentou ao lado direito do trono de Deus, teve a sua morte de servo sofredor vindicada (o que, segundo alguns ramos teológicos do judaísmo daquele tempo, aconteceria com todos os mártires que deram a vida por Israel, segundo uma interpretação de Isaías 53) --, mas esses exemplos não narram uma subida aos céus como vemos no final de Lucas e no começo de Atos:

"Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo elevado para o céu." (Lucas 24:51).

"Ditas estas palavras, foi Jesus elevado às alturas, à vista deles, e uma nuvem o encobriu dos seus olhos." (Atos 1:9).

Um outro ponto a ser levantado é o fato de Lucas ter omitido as aparições pós-ressurreição na Galiléia, o que indica claramente a intenção e liberdade do evangelista em moldar e modificar seu relato do que aconteceu no período entre a ressurreição de Jesus e sua exaltação e o início do cristianismo, provavelmente por motivos teológicos.

Perceba que Marcos relata o seguinte:

"Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a Galileia; lá o vereis, como ele vos disse." (Marcos 16:7).

Mateus segue essa ideia de Marcos:

"Ide, pois, depressa e dizei aos seus discípulos que ele ressuscitou dos mortos e vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis. É como vos digo!" (Mateus 28:7).

No entanto, na passagem paralela em seu evangelho, Lucas excluiu o pedido de Jesus para se encontrar com os discípulos na Galiléia, mudando a fala do anjo:

"Ele não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos de como vos preveniu, estando ainda na Galileia, quando disse: Importa que o Filho do Homem seja entregue nas mãos de pecadores, e seja crucificado, e ressuscite no terceiro dia." (Lucas 24:6-7).

Essa mudança deixa transparecer que o autor não via problemas em alterar as cenas para encaixar suas ideias teológicas. O Jesus de Lucas não quer encontrar seus discípulos na Galiléia, longe de Jerusalém: ele permanece na cidade santa até ser elevado aos céus e enviar o Espírito.

Uma hipótese para explicar essa exclusividade nos relatos do terceiro evangelista é que a ressurreição levou ao desenvolvimento sobre a narrativa de Lucas a respeito da ascenção. Diferente dos outros locais do Novo Testamento que falam sobre a ressurreição, onde um movimento único de ressurreição unida à exaltação é usado para falar sobre o assunto, Lucas desenvolve a narrativa sobre esses acontecimentos, dando um passo adiante para mostrar como a exaltação aconteceu. Ou seja, a ideia de que Jesus subiu literalmente é uma adição posterior à tradição da exaltação para explicar a maneira que a exaltação aconteceu. Desta forma, podemos dizer que as experiências da ressurreição não tiveram originalmente parte com a cena da ascenção, e que a ideia de Jesus vencendo a morte e sendo exaltado levou ao surgimento da cena da ascenção como explicação do modo que a exaltação aconteceu.

Portanto, eu diria que os relatos da ressurreição não são da mesma qualidade histórica que os relatos da ascenção. Eu posso dizer com mais firmeza histórica que os discípulos tiveram experiências com o Jesus ressuscitado, tendo em vista que a tradição das aparições de Jesus após a sua morte está presente em várias fontes, mas não posso afirmar com a mesma probabilidade que os discípulos tiveram a experiência de ver Jesus subindo aos céus. Esses relatos me parecem mais explicativos do que alusões a uma tradição que teria vindo dos primeiros discípulos.

Por que essa clara distinção e separação entre ressurreição e ascenção aparece apenas nos escritos de Lucas? É mais provável que o terceiro evangelista tenha desejado colocar um ponto final nas experiências de aparições de Jesus pós-ressurreição e, por esse motivo, desenvolveu a cena para deixar isso claro. Caso contrário, se uma tradição mais forte sobre essa cena existisse, é difícil explicar por que os outros evangelistas a deixaram de lado. Com uma cena explícita de Jesus subindo aos céus, Lucas mostra que os discípulos viram a ascenção e que, agora, ele reina à destra de Deus, completando, por assim dizer, seu ministério terreno e dando ensejo ao ministério do Espírito Santo, que conduz os discípulos na pregação para a expansão do Evangelho até os confins da Terra.

05/09/2021

Mateus 5, Jesus e a Lei

Uma das descobertas mais significativas sobre o Evangelho Segundo Mateus feitas nas últimas décadas é que este texto foi produzido por uma comunidade de judeus que haviam acreditado que Jesus de Nazaré era o Messias prometido a Israel, e que essa comunidade estava em disputa com outros grupos judaicos da sua época, que também buscavam a (re)definição de sua religião num período conturbado de sua história, a saber, após a queda de Jerusalém e a destruição do templo no ano 70 da Era Comum. Portanto, Mateus não deve ser lido como um documento cristão propriamente dito, pois, na época de sua escrita, não havia uma definição clara do que era "cristianismo", e essa nova religião que surgiria séculos depois ainda não havia se separado do judaísmo como um todo. O Evangelho de Mateus é um documento produzido pelo sectarismo judeu do primeiro século.

Quando o Evangelho de Mateus veio à luz, havia, no judaísmo, grupos sectários que travavam disputas sobre como a religião judaica deveria ser vivida. Para Mateus e sua comunidade (o grupo social de onde o documento surgiu), o judaísmo correto era aquele explicado por Jesus, ou melhor, aquele que Mateus acreditava ter sido explicado por Jesus -- o Jesus de Marcos, por exemplo, certamente não concordaria com as visões do Jesus de Mateus a respeito da Lei de Moisés.

Dentro dessa perspectiva social da comunidade de Mateus, os estudiosos mais célebres deste Evangelho buscam interpretar o documento dentro dessa disputa judaica de grupos que visavam a primazia dentro da sua religião, e uma das grandes controvérsias dos sectários era a respeito de como a Lei de Moisés deveria ser interpretada. Todos os grupos tinham a Lei como pressuposto: é claro que ela deve ser seguida e vivida, mas como? Todos concordavam que o Sábado era um dia sagrado que deveria ser respeitado, mas o que significava respeitar o Sábado? Todos sabiam que não se deveria trabalhar neste dia, mas o que se qualifica como trabalho? Para responder tais perguntas, alguns grupos judeus haviam criado uma série de tradições interpretativas sobre como se deveria cumprir a Lei. Para os estudiosos, a grande disputa da comunidade de Mateus com os seus contemporâneos judeus que não haviam acreditado em Jesus era justamente sobre essas tradições, e um trecho onde essa disputa aparece claramente está no capítulo 5, as famosas Antíteses Mateanas.

No quinto capítulo do Evangelho Segundo Mateus, onde Jesus inicia seu primeiro grande discurso de ensinamento neste documento, há um trecho em que o Nazareno é descrito como rebatendo e, aparentemente, reformulando algumas tradições de como a Lei deveria ser interpretada. É praxe de muitos leitores ver, aqui, uma rejeição de Jesus à Lei: Jesus tem autoridade suficiente para reescrever aquilo que Moisés havia dito. Contudo, um olhar mais atento ao texto e ao ambiente social judaico da época revelará que o Jesus de Mateus não está criticando nenhum ponto da Lei: de fato, ele afirma categoricamente que toda a Lei deve ser cumprida: 

"Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra. Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus. Pois eu lhes digo que se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da Lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus." (Mateus 5:17-20, ênfase minha).

Eu já vi e ouvi muitos intérpretes afirmando que o cumprir, aqui, significa cumprir aquilo que, na Lei, supostamente estaria escrito sobre Jesus Cristo: ele deveria morrer e ressuscitar, cumprindo seu ministério e salvando os homens. No entanto, tal interpretação não faz jus ao contexto geral da passagem, que trata de qual seria a forma correta seguir a Lei e cumprir os mandamentos. Neste trecho, Jesus discute a Lei em relação à interpretação dos fariseus: a Lei deve ser cumprida, a questão é de que maneira. É uma questão de halacá judaica: a disputa é entre interpretação, não validade da Lei.

Mateus cinco trata da forma correta de como interpretar a Lei. A Lei não está em questão: tanto os judeus quanto os cristãos judeus da comunidade mateana têm a Lei como pressuposto. A briga é sobre a forma com que a lei deve ser interpretada. Mateus expande a Lei: ele coloca uma cerca ao redor dela e a aumenta para a tornar mais rígida. Assim, o pecado não é apenas matar alguém, mas o ódio, que leva ao assassinato, já é pecado. Dessa forma, o Jesus de Mateus quer que seus discípulos sejam mais justos que os outros judeus que cumprem a lei à risca, isto é, que a cumprem exatamente como está escrito. Ele diz: a justiça de vocês deve ultrapassar a dos fariseus, que cumprem da lei apenas o que está escrito. Em resumo, Mateus quer um cumprimento ainda mais rígido da Lei. Cumprir, aqui, é obedecer a Lei. Nada da lei seria ultrapassado, e todos precisam cumpri-la.

Um outro bom exemplo de como Mateus entende a Lei de Moisés está no capítulo 23: "Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas, porque vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezam os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé. Mas vocês deviam fazer estas coisas, sem omitir aquelas!" (v. 13, ênfase minha). Aqui, fica explícito que o Jesus de Mateus, ao ser retratado numa disputar com os líderes judaicos da época, afirma com todas as letras que aquilo que eles faziam deveria mesmo ser feito. Aliás, em Mateus 23:2-3, Jesus claramente fala que "Na cadeira de Moisés se assentaram os escribas e os fariseus. Portanto, façam e observem tudo o que eles disserem a vocês, mas não os imitem em suas obras; porque dizem e não fazem." O problema, para Mateus, não era o que os líderes estavam falando sobre cumprir a lei.

Mais um grande exemplo de como Mateus enxerga a lei está em outra disputa de Jesus com líderes judaicos a respeito de uma prática de alguns judeus que acreditavam que a purificação feita para os rituais do templo deveria ser seguida na vida cotidiana, lavar/purificar as mãos antes de comer. Aqueles que estão mais familiarizados com o estudo da formação dos Evangelhos sabem que, ao compor sua narrativa sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, Mateus tinha à sua disposição uma cópia do Evangelho Segundo Marcos, e o copiou quase que por completo. Contudo, Mateus alterou significativamente alguns trechos de Marcos, e podemos ter uma ideia do que ele pensava a respeito de algumas coisas se analisarmos o que ele mudou no texto. Na passagem em questão, ao concluir seus ensinamentos sobre o que torna o homem impuro, Marcos arremata: "E, assim, Jesus considerou puros todos os alimentos." (7:19). Essa era uma questão muito delicada para o judaísmo da época. A comida permitida pela Lei, juntamente com a circuncisão, virou uma espécie de símbolo que mostrava o que era ser um judeu. Isso se deu provavelmente pela tentativa de proibir tais práticas por parte de reis estrangeiros que conquistaram o povo judeu. Falar que os judeus poderiam comer qualquer coisa certamente era radical demais para Mateus, pois ele excluiu essa frase na sua versão paralela sobre o mesmo episódio (15:1-20). Isso mostra que Mateus era mais conservador em relação à Lei de Moisés do que Marcos: enquanto este último não via problemas em comer todos os alimentos (assim como parece ser o caso com Paulo), o primeiro parece não concordar com a liberalidade culinária. Se, para Marcos, comer sem purificar as mãos significava que todos os alimentos poderiam ser consumidos, para Mateus, tal conclusão não era necessária. A omissão desse trecho deixa transparecer uma inclinação mais judaica por parte de Mateus. Para o autor deste Evangelho, as leis a respeito do que um judeu poderia ou não comer estavam mais válidas do que nunca.

Se estivermos corretos quanto a essa leitura de Mateus, essa seria a ideia de Mateus e sua comunidade a respeito de como os judeus que acreditaram em Jesus de Nazaré deveriam seguir a Lei. Porém, qual seria a ideia de Jesus em relação à Lei de Moisés? Como saber que aquilo que o Jesus de Mateus fala foi realmente dito por Jesus? 

As percepções de judeus-cristãos sobre como cumprir a Lei variaram dentro da janela de 50/60 anos da morte de Jesus e a escrita dos Evangelhos. Mateus quer o cumprimento total da Lei; Paulo já pensa diferente, e Marcos parece seguir Paulo. Eu acredito que, se Jesus tivesse deixado algo bem específico sobre como cumprir a Lei, não existiria essa disputa no cristianismo primitivo. Há uma tradição bem forte que retrata Jesus disputando sobre como se deveria cumprir o Sábado, mas as disputas com fariseus em Mateus não parecem reais. Não faz sentido pensar que os fariseus de Jerusalém enviariam comissários à Galiléia para saber o que um camponês de lá estaria fazendo. Faria sentido se o que Jesus estivesse fazendo fosse algo extraordinário para o seu tempo, mas não era extraordinário: havia um número significativo de figuras proféticas, curadores e exorcistas nos tempos de Jesus; João Batista é um bom exemplo disso, mas existiram outros. O extraordinário na vida de Jesus foi que seus discípulos acreditaram tê-lo visto após a sua morte e interpretaram isso como a ressurreição final. Me parece que Jesus, como qualquer judeu do seu tempo, cumpria a Lei normalmente, com algumas disputas sobre certos pontos, mas ele não foi claro sobre como se deve cumprir isso ou aquilo. Caso contrário, a disputa na igreja primitiva não faria sentido: se há disputa, é porque não houve instrução clara.

Jesus não foi criticado simplesmente por andar com pecadores. Se ele tivesse somente andado com pecadores e tentado fazê-los se arrependerem, tornando-se judeus exemplares, nenhuma crítica seria direcionada a ele. Pelo contrário, Jesus seria incentivado e talvez até mesmo admirado. Portanto, a tradição de um criticismo por parte de seus adversários sobre a sua relação com pecadores que encontramos nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) parece sugerir outra coisa, algo mais sério do que a simples evangelização de pecadores. Ele parece ter dito que algumas coisas da Lei não eram tão essenciais pelo momento escatológico em que estava vivendo: o reino de Deus está vindo; não é necessário cumprir a Lei da forma com que esses outros judeus querem para entrar no reino; apenas creiam na minha mensagem sobre a vinda do reino e vocês entrarão. Me parece que isso foi o que deu problema e deu origem à tradição sobre a crítica contra Jesus andar com pecadores. Essa questão aparece de forma clara em Mateus: "Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus. Porque João veio a vós outros no caminho da justiça, e não acreditastes nele; ao passo que publicanos e meretrizes creram. Vós, porém, mesmo vendo isto, não vos arrependestes, afinal, para acreditardes nele." (22:31-32, ênfase minha).

Não há nenhum exemplo, na tradição sinótica, que apresente Jesus descumprindo a Lei. No máximo, vemos ele interpretando e dizendo como ela deveria ser cumprida, apesar de que, como vimos em Mateus, muitos desses exemplos podem ter sido criados pelos evangelistas e não vieram de Jesus.

Jesus não era um reformador, como bem disse Sanders em seu livro The Historical Figure of Jesus. Ele não estava em seu ministério para descumprir a Lei. A sua visão sobre a Lei deve ser entendida dentro da sua perspectiva maior sobre o eschaton, o final dos tempos: o templo seria destruído e o reino de Deus viria. Assim, existiam coisas mais urgentes do que o cumprimento de certos aspectos da Lei, como a total purificação da vida diária, por exemplo (a expansão da pureza do templo), como queriam alguns judeus.

05/08/2021

A volta de Jesus: mito ou realidade literal?

Um conhecido meu, criticando de forma velada algumas de minhas afirmações sobre a Bíblia e o que acredito sobre Deus, me questionou se eu estaria colocando em dúvida a crença dos autores neotestamentários na volta de Jesus Cristo, a parousia; e completou: você não acredita na volta de Jesus? Apesar de parecer uma pergunta muito simples, ela não pode ser respondida de maneira tão direta quanto eu gostaria, pois é uma questão muito mais complicada do que pode parecer num primeiro momento.

Se formos partir para a exegese do Novo Testamento, é claro que a parousia é um ponto em comum de vários autores; e se iniciarmos nossa resposta com o pressuposto de que devemos acreditar em tudo o que esses autores antigos disseram, então a resposta será simples e bem direta: sim, eu acredito nisso porque a Bíblia assim o diz.

Contudo, essa crença depende fortemente de algo que eu não consigo aceitar: a cosmologia hebraica antiga. Jesus só poderia subir porque os autores antigos acreditavam em um mundo dividido em três camadas, com céu em cima, terra no meio e hades (o mundo dos mortos) embaixo. Isso não faz mais sentido para nós, pois sabemos que o universo é diferente disso. Assim, fica a pergunta: subiu para onde? Porque o(s) autor(res) acreditava(m) que Jesus subiu literalmente acima das nuvens, pois o trono de Deus estaria literalmente lá em cima. Um exemplo disso é o Apocalipse de João, onde uma janela literal se abre na cúpula sólida chamada de firmamento e o autor sobe até lá para ver o trono de Deus.

Desse modo, a pergunta que, num primeiro momento, parecia muito descomplicada, dá ensejo a uma série de outras perguntas muito difíceis de serem respondidas diretamente: como o meu método hermenêutico seria construído para acreditar na parousia, ao mesmo tempo em que anulo a cosmologia dos autores? Como reformular a ideia de que Jesus subiu literalmente para um local material que havia acima das nuvens (coisa que sabemos não existir)? Jesus foi para outra dimensão? Não é isso que os autores dizem. Afirmar isso seria falar algo que a Bíblia não diz. Se Jesus não subiu exatamente como os autores disseram, como saber se ele descerá como eles afirmam? 

Outro ponto é que, dentro da formação da tradição sinótica, a parousia me parece mais um desenvolvimento teológico formado pela reinteepretação de textos do Antigo Testamento sobre o filho do homem à luz da crença pascal dos discípulos do que qualquer expressão literal, do que acontecerá realmente na história. Em outras palavras, tudo pode ter sido simplesmente uma resposta cristã para entender quem era Jesus: a ideia de ressurreição e ascenção os levou a interpretarem o filho do homem em Daniel como sendo Jesus, e então eles desenvolveram a ideia de que ele voltaria como o filho do homem, na qualidade de filho do homem.

A pergunta a ser feita, no caso dessa interpretação dos dados estar correta, é: a afirmação da igreja sobre a volta de Jesus, mesmo sendo algo que Jesus não afirmou, é verdade ou não? E, se for verdade, é uma verdade literal ou parabólica, no sentido de que a explicação torna-se realizada porque ela explica o mundo e a nossa vida? Isto é, a transformação do mundo pela presença de Jesus poderia significar a mudança na mentalidade das pessoas trazida pela mensagem de Jesus de Nazaré à medida em que o mundo ouve suas palavras ainda hoje? Eu sei, essa resignificação do que seria a parousia não faz sentido para quem adota o pressuposto citado acima, mas como resolver o problema da cosmologia?

Portanto, para responder a pergunta finalmente: acredito que o mundo poderia, sim, ser impactado pela parousia, e realmente espero que seja. Eu só não sei se isso se daria de forma literal ou não.

30/06/2021

Apocalipse Sinótico: a demora da parousia e a apologética cristã

Um dos episódios mais notáveis dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) é o chamado Apocalipse Sinótico (Mateus 24, Marcos 13 e Lucas 21), o discurso de Jesus a respeito da destruição do templo e a final intervenção de Deus sobre a história, inaugurando o reino. A cena levanta alguns sérios questionamentos por parte de quem lê a Bíblia como um livro que ainda precisa fazer sentido, mesmo não atualizado ou adaptado, para a sua vida pessoal nos dias de hoje. Isso se deve pelo fato de que o discurso de Jesus nessas passagens parece fazer referência a um fato histórico que aconteceu no ano 70 da era comum: a destruição de Jerusalém pelos romanos e a derrubada do templo. Ora, se Jesus predisse que a destruição do templo acarretaria na vinda imediata do reino ("não passará esta geração sem que tudo isso aconteça"), por que ainda estamos esperando, depois de mais de dois mil anos, a volta de Jesus e a vinda do reino de Deus?

Muitas vertentes teológicas produziram respostas a essa pergunta óbvia para quem, dentro de uma confessionalidade cristã fundamentalista, procura entender esse texto dentro da seguinte racionalização: a Bíblia não pode conter erros. Portanto, precisamos encontrar o real significado das palavras de Jesus no Apocalipse Sinótico, pois ele não teria se enganado a respeito do tempo da vinda do reino. As respostas para essas indagações são variadas. Alguns falam em uma vinda simbólica do reino após a destruição do templo no ano 70; outros disseram que a geração a que Jesus se refere não é a dele, mas a geração que veio depois do reestabelecimento da nação de Israel em 1948, após o término da Segunda Guerra Mundial; outros, ainda, tentam guardar as duas pontas do espectro, afirmando que Jesus se referia ao ano 70, mas que havia algo a mais em suas palavras: o significado do texto é a guerra dos judeus com os romanos, mas o significante do texto está no futuro, isto é, o texto é uma prévia do que acontecerá muitos séculos depois.

Apesar de as respostas serem diferentes, elas estão unidas em um objetivo único, mesmo que implícito: demonstrar que Jesus (ou melhor, os autores que colocaram essas palavras na boca dele) estava(m) falando de um tempo futuro, uma época distante, provavelmente a nossa. Certamente, uma leitura teológica, que faz com que o texto ainda tenha sentido para os leitores atuais, é válida. Todavia, a meu ver, essa não é a forma mais segura de abordar esses textos se o seu objetivo for entender o que os autores queriam dizer em seu contexto original e aquilo que eles esperavam que os seus leitores originais entendessem. O fato de a Bíblia ser considerada, por quase todos os cristãos, como um livro divino, os faz aproximarem-se dela de uma forma que não fariam com qualquer outro texto antigo cujo significado estejam procurando. Em outras palavras, o pressuposto da inspiração divina da Bíblia impede que o leitor entenda exatamente o que os autores estavam querendo dizer.

A menos que isso seja implicitamente óbvio ou explicitamente negado pelo autor, ele estará, invariavelmente, falando com seus leitores imediatos. Para se entender o que ele queria dizer quando escreveu, portanto, é preciso levar em conta o seu contexto e os seus primeiros leitores; é preciso entender o meio histórico em que o autor estava inserido. Sendo assim, me parece mais seguro partirmos do pressuposto de que um autor do século primeiro estivesse falando para pessoas da sua época e dificilmente estaria pensando em dois mil anos à frente. Quando escreveram (ou copiaram e editaram) o Apocalipse Sinótico, os evangelistas (autores dos evangelhos) não estavam pensando em nossa geração, mas nas comunidades cristãs das quais faziam parte; em um momento histórico onde, após alguns anos da morte de Jesus, eles ainda aguardavam ansiosos pela vinda do reino que ele mesmo havia prometido. Para eles, o reino viria a qualquer momento.

Tendo isso em vista, meu ponto é que os autores achavam que Jesus voltaria no tempo deles, e interpretar o Apocalipse Sinótico como um texto escrito para o futuro no sentido de algo que aconteceria somente depois de muitos anos não é exegese, mas uma reinterpretação de profecias que não se cumpriram conforme os seus autores acreditavam. Me parece mais razoável dizer que a ânsia por responder à pergunta "por que Jesus ainda não veio?" deu origem a tais explicações engenhosas sobre as profecias a respeito de sua vinda; faz mais sentido pensar que essa engenhosidade de interpretação não é exegese, mas uma tentativa, ainda que inconsciente, de salvaguardar a inspiração da Bíblia e de provar a verdade do cristianismo baseando-se em profecias que não podem falhar. Nessa ânsia, alguns cristãos reinterpretaram profecias que não tinham nada a ver com o seu momento histórico para fazê-las terem sentido, pois, para eles, é claro que Jesus não poderia ter se enganado sobre a vinda do reino naquela geração. Isso, contudo, não me parece ser exegese, mas apologética cristã.

Aqui, é necessário apontar a atualização da mensagem de Jesus sobre o reino, feita pelos primeiros cristãos, para a mensagem dos cristãos sobre a volta de Jesus trazendo esse reino: com a morte de Jesus e as experiências com a ressurreição, os cristãos misturaram a pregação inicial de Jesus com a ideia de que ele mesmo traria o reino no seu retorno, colocando-o no centro dessa vinda do reino. A igreja, desde o seu primórdio, crê na volta de Jesus, e essa crença, juntamente com a demora da parousia (a volta de Jesus), fez com que tais engenhosidades hermenêuticas surgissem. Como eu disse acima, era preciso responder à pergunta "por que Jesus não veio ainda?" Visto que Jesus não poderia estar errado sobre a vinda desse reino e ele está (ou estava) demorando para vir, é necessário encontrar um meio de dizer que o autor não disse exatamente aquilo que está escrito.

Um dos exemplos mais claros, ainda no Novo Testamento, dessa necessidade de explicar a demora da volta de Jesus e, consequentemente, da vinda do reino, está na segunda carta atribuída a Pedro:

"Mas há uma coisa, amados, que vocês não devem esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a julguem demorada. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento. Porém, o Dia do Senhor virá como um ladrão. Naquele dia os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se desfarão pelo fogo. Também a terra e as obras que nela existem desaparecerão." (2 Pedro 3:8-10)

Esse autor, diferente dos modernos, tenta resolver o problema da demora com uma resposta simples: para Deus, o tempo não passa como para os seres humanos. Aqui, fica evidente que as primeiras gerações de cristãos já se preocupavam com essa demora. Eles estavam com problemas, e esses problemas, conforme as gerações passavam, deram origem às engenhosidades hermenêuticas apresentadas acima. Quando o autor da carta de Pedro fala em mil anos para o Senhor, deixa transparecer os questionamentos de uma geração que já estava pensando na demora na volta de Jesus — aliás, esse é um dos motivos que levam os estudiosos a concluírem que essa carta não pode ter sido escrita pelo apóstolo de Jesus, pois demonstra as frustrações de uma geração posterior a Pedro, onde o adiamento da vinda do reino estava começando a se tornar um problema nas comunidades.

Ainda dentro do Apocalipse Sinótico, há uma outra indicação de que o autor está tentando explicar por que o reino ainda não veio se Jesus havia prometido algo imediato:

"Estejam de sobreaviso, porque as pessoas os entregarão aos tribunais e às sinagogas. Vocês serão açoitados e, por minha causa, serão levados à presença de governadores e reis, para lhes servir de testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações." (Marcos 13:9-10, ênfase minha).

A inclusão dessa cláusula sobre a pregação para todas as nações demonstra uma preocupação com certa demora da vinda. Jesus afirmou a vinda iminente do reino e morreu. Os cristãos acharam que ele viria trazer o reino logo, mas estavam começando a sentir a demora.

Há, ainda, um outro autor neotestamentário que deixa escapar uma inquietação a respeito da demora da parousia. No Evangelho de Lucas e no Livro dos Atos dos Apóstolos, escritos depois de Marcos, o autor tenta acalmar os seus leitores: “Ouvindo eles estas coisas, Jesus contou uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o Reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente.” (Lucas 19:11); "Então os que estavam reunidos com Jesus lhe perguntaram: Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel? Jesus respondeu: Não cabe a vocês conhecer tempos ou épocas que o Pai fixou pela sua própria autoridade." (Atos 1:6-7). Tenham paciência, diria esse autor, e não se preocupem com isso. As coisas acontecerão no tempo de Deus.

Esses não são os mesmos motivos que fazem os cristãos da atualidade acharem que a vinda é iminente, mas a preocupação é a mesma: Jesus achava que o reino viria em seus dias, mas ele ainda não veio. Por que está levando tanto tempo? Por que Jesus ainda não voltou? Acalmem-se, diriam os autores, ainda nos resta o tempo dos gentios; Jesus voltará depois de pregarmos a todas as nações. Portanto, vamos embora pregar, porque ele mesmo disse que não passaria dessa geração; as coisas acontecerão no tempo de Deus; para o Senhor, mil anos são como um dia; na verdade, Jesus não falava daquela geração, mas da nossa, etc. Essas respostas, porém, por mais que sejam satisfatórias desde uma perspectiva teológica e de apropriação textual -- afinal, um texto antigo pode ser resignificado para o leitor atual, ainda mais em se tratando de um texto religioso --, não servem para quem quer apenas entender o que os autores e Jesus de Nazaré queriam dizer em seu contexto original.

24/05/2021

Jesus e os primeiros cristãos (E. P. Sanders)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus and Judaism",  de E. P. Sanders, p. 335.]


Jesus afirmou que o fim estava próximo, que Deus estava para estabelecer o seu reino, que aqueles que respondessem a ele (Jesus) seriam incluídos e (pelo menos por implicação) que ele (Jesus) reinaria. Ao apontar para a mudança de épocas (ou eras), ele realizou um gesto simbólico, virando as mesas na área do templo. Esse foi o ato crucial que levou à sua execução, embora houvesse causas contribuintes.

Seus discípulos, após a morte e ressurreição, continuaram a aguardar a restauração de Israel e a inauguração da nova era, e continuaram a entender que Jesus ocuparia o primeiro lugar no reino. Além disso, eles continuaram a aguardar um reino supramundano, que seria estabelecido por um milagre escatológico, embora a localização desse reino possa ter mudado deste mundo para o celestial. A própria pessoa de Jesus também foi progressivamente interpretada: ele não foi mais visto apenas como 'Messias' ou 'Vice-rei', mas como Senhor. Algumas pessoas que foram atraídas pelo movimento começaram a converter gentios. A obra dos primeiros apóstolos, tão bem refletida nas cartas de Paulo, se encaixa inteiramente nas expectativas conhecidas sobre a restauração de Israel.

A necessidade da separação entre história e teologia (E. P. Sanders)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus and Judaism", de E. P. Sanders, p. 334-5.]


As relações entre história e teologia são muito complexas, e não farei nenhum esforço insignificante para me aprofundar em um assunto vasto e difícil aqui. Estive engajado por alguns anos no esforço de libertar a história e a exegese do controle da teologia; isto é, libertá-la da obrigação de chegar a certas conclusões que são predeterminadas pelo compromisso teológico, e pode-se ver esse esforço sendo continuado aqui. É uma tarefa muito simples, mas considero-a essencial para um empreendimento mais complexo. Pretendo ser apenas um historiador e um exegeta. Mas, uma vez que critiquei tantos por terem sua 'história' e 'exegese' ditada pela teologia, o leitor pode muito bem se perguntar o quão bem 'meu' Jesus se enquadra com minha herança teológica. Posso explicar de forma simples: sou um protestante liberal, moderno e secularizado, criado em uma igreja dominada pela baixa cristologia e pelo evangelho social. Tenho orgulho das coisas que essa tradição religiosa representa. Não sou ousado o suficiente, no entanto, para supor que Jesus veio para inaugurar tal tradição, ou que morreu por causa dos princípios defendidos por ela.

10/05/2021

Por que Jesus foi morto? (E. P. Sanders)

(Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro "Jesus and Judaism", de E. P. Sanders, p. 293).


Jesus ofendeu muitos de seus contemporâneos em dois pontos: seu ataque ao templo e sua mensagem a respeito dos pecadores. Em ambos os pontos, pode-se dizer que ele está desafiando a adequação da dispensação mosaica, e ambos são, em grande escala, abrangentes e flagrantes. Sua presunção de falar em nome de Deus foi certamente aprovada por aqueles que se convenceram de que ele o fazia, e isso provavelmente não foi, de modo geral, ofensivo. Contudo, tal presunção pode ter se tornado algo ofensivo quando esse porta-voz de Deus se voltou contra o templo. Ele insistiu neste, o ponto mais ofensivo, em Jerusalém, na época da Páscoa, e isso não poderia ter sido deixado de lado. Se acrescentarmos a essas considerações somente mais o fato de que ele tinha um número notável de seguidores, não precisaremos mais procurar para entender por que ele foi executado.

Neste nível de ofensa, não precisamos buscar um grupo específico que se opôs a Jesus e incitou os romanos a executá-lo. Em outro nível, entretanto, uma inferência razoável sobre os instigadores de sua morte pode ser feita. Ele foi executado pelos romanos, e, se os judeus tiveram alguma coisa a ver com isso -- isto é, se ele não foi executado simplesmente porque causou um distúrbio público --, os instigadores de sua morte teriam sido aqueles com acesso a Pilatos. Os principais entre eles eram os líderes do sacerdócio.

06/05/2021

Mateus dentro do sectarismo judaico (John Kampen)

(Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro "Matthew within Sectarian Judaism", de John Kampen.)



Uma conferência na Southern Methodist University em 1989 marcou uma grande mudança no estudo do primeiro evangelho. Os primeiros resultados dessa nova onda de pesquisas por meio da perspectiva das ciências sociais foram resumidos da seguinte maneira:

1. A comunidade mateana estava situada em um ambiente urbano, talvez na Galiléia ou na Síria, mas não necessariamente em Antioquia.

2. Embora englobasse convertidos gentios, o constituinte étnico da comunidade mateana era predominantemente judeu-cristão.

3. A comunidade mateana é melhor entendida como uma seita dentro do judaísmo.

4. No momento da escrita do evangelho, a comunidade mateana estava encontrando forte oposição do judaísmo farisaico (ou formativo).

5. No centro da disputa com o judaísmo farisaico estava a questão da interpretação e prática da lei judaica.

Essa lista significou um afastamento notável de uma boa parte da erudição mateana anterior.

Um levantamento da erudição crítica sobre Mateus na primeira parte do século XX demonstraria até que ponto o contexto judaico do primeiro evangelho se tornou menos significativo no exame de seu desenvolvimento histórico. Deixando de ser considerada uma composição originalmente hebraica e o mais antigo (daí o mais autêntico?) dos evangelhos, Mateus passou a depender de Marcos e Q, de acordo com os críticos das fontes no século XIX. Isso foi seguido pelo trabalho magistral sobre a crítica da forma, de Rudolf Bultmann, que identificou camadas de texto dentro do desenvolvimento do movimento cristão inicial, mas não as relacionou de maneira significativa com a literatura judaica da época. Os critérios empregados tendiam a enfatizar os desenvolvimentos teológicos no cristianismo primitivo, em vez de enxergar respostas à vida judaica refletida na literatura cristã. Após sua atenção detalhada ao que poderia ser denominado "as microformas", a crítica da redação foi uma tentativa de identificar as posturas teológicas que cada um dos escritores dos evangelhos trouxeram para a sua avaliação do significado de Jesus, geralmente um foco cristológico. Mais uma vez, a experiência judaica do primeiro século foi relegada ao segundo plano em se tratando de ser uma preocupação primária dos intérpretes. Nas mãos de exegetas mais recentes, essa abordagem para uma análise do texto como um todo gradualmente buscou métodos literários para a análise do texto. A crítica literária estava interessada na exploração da dinâmica dentro do texto, frequentemente com um olho para o texto como um modo de comunicação, em vez de para o mundo judaico dentro do qual o texto foi composto e lido. Todos esses métodos inevitavelmente levaram o texto a ser lido principalmente como um texto cristão, com o mínimo de atenção ao seu contexto judaico. A possibilidade de que Mateus deva ser lido principalmente como uma composição judaica não foi levada em consideração durante a utilização desses métodos, que eram predominantes no trabalho erudito em cima do Evangelho Segundo Mateus no século XX.