16/03/2021

Quem foi Jesus? (E. P. Sanders)

Nota: o texto abaixo é de autoria de E. P. Sanders, e foi retirado do livro "Redefining First-century Jewish and Christian Identities: Essays in Honor of Ed Parish Sanders", editado por Fabian E. Udoh (p. 27).


Jesus foi um profeta da restauração de Israel que começou [sua carreira] como seguidor de um profeta escatológico (João Batista) e cujo ministério resultou em um movimento judaico escatológico (o cristianismo primitivo, especialmente como visto nas cartas de Paulo). Ele apontou para a restauração por meio de palavras e ações, proclamando o reino como chegando em breve e indicando a restauração de Israel, especialmente chamando os Doze. Ele fez gestos simbólicos dramáticos apontando para essa esperança. Um desses gestos, derrubar mesas no pátio do templo, levou Caifás a pensar que Jesus poderia iniciar um motim. Os requisitos do sistema romano resultaram em sua execução. Seus seguidores continuaram seu movimento, esperando que ele voltasse para restabelecer Israel. Isso naturalmente os levou a incorporar a esperança profética de que, nos últimos dias, os gentios se voltariam para adorar o Deus de Israel.

12/03/2021

O constrangimento do batismo de Jesus por João Batista para os primeiros cristãos

Uma das coisas mais seguras historicamente sobre Jesus é o fato de ele ter iniciado sua carreira pública em próxima conexão com João Batista, provavelmente como seu discípulo. Um outro fato histórico altamente provável, ligado ao primeiro, é que Jesus foi batizado por João.

Em seus dias, João Batista foi o líder de um movimento que esperava o julgamento final de Deus sobre o mundo e a restauração do povo de Israel a um papel central de domínio mundial em uma Terra renovada. O Batista tinha discípulos, e usava um ritual simbólico que trazia tons de purificação e demonstrava uma inclinação, por parte do batizado, para uma atitude de espera e preparação (um sinal de arrependimento) em vista desse julgamento.

O fato de Jesus ter sido batizado por João e de ter vindo do seu círculo de discípulos pode ter sido problemático para quem afirmava a exaltação de Jesus de Nazaré e sua óbvia atuação como messias judeu. Como o messias poderia ter sido batizado por outra pessoa, ainda mais com um ritual que demonstrava arrependimento? Seria aquele outro superior ao batizado? É bem possível que essas e outras perguntas pairassem sobre os primeiros discípulos de Jesus, e estes talvez não estiveram fora de disputas com os antigos discípulos de João sobre quem seria o maior.

Os relatos sobre o batismo de Jesus nos evangelhos deixam transparecer o incômodo dos primeiros cristãos com essas perguntas, e os escritores demonstram tradições que buscaram se desvencilhar de uma questão que, de forma crescente com o passar dos anos, precisava ser respondida à luz do significado de quem era Jesus para eles. Em outras palavras, os evangelistas tentam explicar o assunto embaraçoso de como Jesus poderia ter sido batizado por João, mesmo sendo maior que ele.

O primeiro evangelho a ser escrito (Marcos) fala do batismo de Jesus de forma rápida, e não tenta explicar como foi possível o messias ter sido batizado por João, apesar de Marcos apresentar, logo no início de sua narrativa, uma tradição que coloca João Batista como percursor de Jesus, tradição esta que é comum a todos os evangelhos:

"Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galileia e por João foi batizado no rio Jordão." (Marcos 1:9).

É difícil determinar, entre Mateus e Lucas, qual foi escrito primeiro. Há divergências entre os estudiosos sobre esse assunto, mas é senso comum no mundo acadêmico o fato de que Marcos veio primeiro e foi usado como fonte pelos outros dois. Aqui, é interessante notar como Mateus e Lucas editam a tradição sobre o batismo de Jesus.

"Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galileia para o Jordão, a fim de que João o batizasse. Ele, porém, o dissuadia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por enquanto, porque, assim, nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o admitiu." (Mateus 3:13-15).

A intenção do escritor de Mateus é bem clara: ele modifica o texto de Marcos — ou usa uma outra tradição conhecida de sua comunidade — para explicar o embaraço que existe na ideia de Jesus ter sido batizado. O evangelista apresenta um João submisso e pronto a, ele mesmo, ser batizado por Jesus! E só o batiza porque lhe foi permitido pelo mestre.

No caso de Lucas, apesar de não termos um João que se recusa a batizar Jesus, nos é apresentada uma história do nascimento do próprio Batista, onde, ainda quando não nascido, ele reconhece a superioridade de Jesus.

"Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; (...) logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim." (Lucas 1:41-44).

"E aconteceu que, ao ser todo o povo batizado, também o foi Jesus; e, estando ele a orar, o céu se abriu..." (Lucas 3:21).

No caso do Evangelho Segundo João, escrito por último, o relato do batismo de Jesus é completamente omitido, e o escritor nos apresenta a história pela metade: o Batista dá testemunho sobre Jesus repetidas vezes e, numa alusão à cena do batismo, onde o espírito desce sobre Jesus, apenas dá a entender que ele é superior:

"Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo." (João 1:33).

Esse crescente de modificações na forma de falar sobre o batismo de Jesus por João — de precursor de Jesus (Marcos), para permissão de batismo (Mateus), reconhecimento ainda quando no ventre (Lucas), até omissão do batismo em si (João) — nos mostra que a tradição de Jesus ser batizado precisou ser explicada. Por que isso aconteceu? Como interpretar historicamente essa modificação na tradição e fazer jus ao fato de que os evangelistas editaram a história para colocar Jesus em evidência e mostrar que o batismo tinha um motivo específico diferente dos outros? Por que os evangelistas não admitiram que o batismo aconteceu como os outros que João realizou? 

Parece-me razoável afirmar que essa tradição tenha surgido do fato constrangedor de que Jesus havia sido batizado e de que, portanto, João era maior do que ele ou algo do tipo — ou talvez porque um batismo de arrependimento teria sido muito estranho para o messias. O fato de o batismo de Jesus ter que ser explicado, e o fato de que é preciso enfatizar tanto que o Batista era menor do que Jesus, sugere que houve um problema com isso na comunidade primitiva, principalmente se levarmos em conta que o Batista ainda tinha discípulos mesmo depois de sua morte e início do ministério de Jesus (veja Atos 18). 

A tradição sobre o batismo de Jesus por João estava muito bem estabelecida na comunidade primitiva. Todos sabiam que Jesus havia vindo do círculo de João. A ligação não poderia ser simplesmente ignorada: ela precisou ser explicada. A resposta foi evasiva (Mateus) ou a questão foi simplesmente varrida para baixo do tapete (João), tudo isso com uma ênfase crescente de que João era menor que Jesus e falou isso durante o seu ministério (note que o último evangelista já mostra um João negando peremptoriamente que é o messias).

Talvez tenha ficado estranho, para os primeiros discípulos de Jesus — ou para pelo menos alguns círculos da seita dos nazarenos —, ter que admitir que o seu mestre havia sido discípulo de alguém, ainda mais quando esse mestre foi reconhecido como o próprio logos divino. Como o messias poderia ter sido batizado para o arrependimento de pecados? Por isso, eles precisaram mostrar que João era menor que Jesus ("convém que ele cresça e que eu diminua" João 3:30) e que havia algo diferente no batismo do messias.

01/03/2021

Jesus de Nazaré como profeta apocalíptico: a destituição dos poderosos e a exaltação dos humildes

Jesus de Nazaré, enquanto profeta judeu apocalíptico, falava de uma renovação na religião de Israel, assim como João Batista, seu predecessor e mestre. Esses judeus do primeiro século esperavam o momento em que Deus desfaria a injustiça da Terra no tempo escatológico do fim, na nova era, no novo éon, trazendo finalmente o reinado de Deus em Jerusalém, vista como a capital do mundo, onde Deus habitaria de forma derradeira, cumprindo aquilo que havia prometido.

A mensagem de Jesus de Nazaré está intrinsecamente ligada com a liberação do povo oprimido através da intervenção divina no fim dos tempos. O apocalipticismo falava justamente disso. A mensagem apocalíptica de Jesus tem a ver com a libertação de quem sofre na mão dos poderosos. É uma mensagem a favor dos pobres, dos injustiçados, dos indefesos, daqueles que eram usados e esmagados pela elite da época, o povo de Deus que precisa de socorro. Para Jesus, essa libertação ocorreria na intervenção final de Deus, trazendo julgamento para os maus e recompensa para os justos.

Essa característica da mensagem de Jesus pode ser percebida ainda na interpretação que o terceiro evangelista faz do significado do seu nascimento: “[Deus] dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (Lucas 1:51-53). Para o autor do Evangelho Segundo Lucas, o significado do nascimento de Jesus é claro: Deus havia cumprido as promessas feitas ao seu povo, Israel. Ele destruiria os donos do poder e colocaria os pobres e famintos em seu lugar. Quem passa fome, se enxeria de comida, os últimos seriam os primeiros.

Tal mensagem continuaria posteriormente dentre os discípulos de Jesus que ainda possuíam um viés bastante judaico em sua expressão cristã, pessoas para as quais ser cristão e judeu não significava duas coisas separadas, pois um era o mesmo que o outro. Para eles, acreditar em Jesus como o messias prometido a Israel era a melhor expressão de viver a religião judaica:

“Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas, e as vossas roupagens, comidas de traça; o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência” (Tiago 5:1-6).

Para o(s) autor(es) desse documento, a esperança na destruição da injustiça investida pelos poderosos contra os pobres indefesos ainda era algo vivo e presente.

Com isso, Jesus não separa o material do imaterial, a alma do corpo, o céu da Terra, o mundano do divino, mesmo porque essas categorias gregas sobre a composição do ser humano não fariam parte da mentalidade de um camponês da Galileia do primeiro século da Era Comum. Jesus conecta o material com o imaterial. Para ele, tudo é uma coisa só. O problema da injustiça do mundo tem a sua resolução em uma ação de Deus. Para Jesus, a ideia é justamente que a salvação da injustiça refletida na vida explorada da população da Galiléia se resolverá na intervenção divina; é o eschaton, o momento em que céu e Terra se unem, o momento em que a nova Jerusalém desce do céu e onde os que antes eram oprimidos reinarão com Deus. Por isso, felizes os que agora choram e bem-aventurados os pobres, pois deles é o reino de Deus que virá e serão consolados. Nada disso, é preciso reforçar, está desligado da religião e voltado somente a uma situação política, pois essa divisão não existia no tempo de Jesus. A resolução de assuntos que para nós parecem políticos se daria de uma forma que hoje nos soa apenas religiosa. Aqui, é importante lembrar que a religião abrangia todas as esferas da vida antiga.

Entretanto, ao fazermos essa análise histórica, é necessário ter algo muito claro em mente: uma coisa é falar do que Jesus pregava, outra coisa é analisar como o impacto da sua mensagem, juntamente com a experiência da Páscoa, influenciou os discípulos dele a interpretarem o significado que ele tinha nos planos de Deus e qual era o ponto central da sua missão.

Quando os discípulos de Jesus tiveram as experiências da ressurreição, essa mensagem passou a ser desenvolvida, e o papel dele na intenção de Deus para Israel no fim dos tempos começou a ficar mais e mais elaborado. Questões sobre como a Torá deveria ser interpretada à luz de Jesus começaram a surgir, e então apareceu Paulo (quem sabe os próprios judeus helenistas de Jerusalém antes dele?) com muito a falar sobre o problema humano do pecado e da culpa diante de Deus, e o que a morte de Jesus tem a ver com tudo isso. Com quatro séculos de desenvolvimento teológico sobre quem era Jesus e o que a sua vida e missão significaram para a humanidade, temos o cristianismo, formado pelo debate dos líderes religiosos que buscavam uma definição daquilo que acreditavam em face de outras ramificações geradas pelo impacto de Jesus sobre o mundo judaico e pela admiração que uma figura como aquela causara em quem buscava uma resposta para a questão humana. A tais líderes coube o papel de ratificar quais documentos deveriam ser usados e como poderiam ser interpretados.

Fazer uma leitura da religião de Jesus desde uma perspectiva sociológica dentro do seu momento histórico é diferente de tentar explicá-lo segundo os credos cristãos desenvolvidos posteriormente. Enquanto essas confissões teológicas sobre quem era Jesus (o Cristo) buscam uma resposta ontológica para a verdade do mundo (algo abrangente que explica a realidade total do cosmos), uma análise histórica da vida de Jesus de Nazaré procura apenas entender quem era o homem judeu do interior da Galiléia que foi condenado à morte em Jerusalém por insurreição contra o império romano e a aristocracia judaica de seus dias, os quais queriam evitar maiores problemas.