28/09/2020

A limitação histórica dos evangélicos

Em seu famoso livro, "O Que é Cristianismo?", o grande historiador alemão Adolf Von Harnack explica a limitação que Martinho Lutero tinha em sua época para conseguir separar dogma de história:

“Esse gênio [Martinho Lutero] tinha uma fé tão robusta quanto a de Paulo e, portanto, um imenso poder sobre a mente e o coração dos homens. Mas ele não estava a par do conhecimento que era acessível mesmo em sua própria época. A era ingênua [pré-renascentista e pré-humanista] havia passado; [os dias de Lutero eram] uma época de profundo sentimento, de progresso, uma época em que a religião não podia evitar o contato com todas as faculdades da mente. Nessa época, era seu destino ser forçado a ser não apenas um reformador, mas também um líder intelectual, espiritual e professor. A maneira de ver o mundo e a história, ele teve que planejar novamente para as gerações que viriam, pois não havia ninguém para ajudá-lo, e as pessoas não ouviriam ninguém mais além dele. Mas ele não tinha todos os recursos do real conhecimento à sua disposição. Por último, Lutero estava ávido para voltar ao original, ao Evangelho mesmo, e, na medida em que foi possível fazê-lo por intuição e experiência interior, ele o fez. Além disso, também fez alguns estudos admiráveis de história e, em muitos lugares, rompeu vitoriosamente com as linhas serradas dos dogmas tradicionais. Mas qualquer conhecimento confiável da história desses dogmas ainda era uma impossibilidade, e menos ainda, qualquer familiaridade histórica com o Novo Testamento e o cristianismo primitivo era possível. É maravilhoso como, apesar de tudo isso, Lutero possuía tanto poder de penetração e julgamento são. Para perceber isso, basta olhar suas introduções aos livros do Novo Testamento, ou seu tratado sobre "Igrejas e Concílios". Mas havia inúmeros problemas que ele nem conhecia, quem dirá ser capaz de resolver. Assim, Lutero não tinha meios de distinguir entre cerne e casca, entre o que era original e o que havia vindo de fora. Como podemos nos surpreender, então, se em sua doutrina, e na visão que ela teve da história, a Reforma estava longe de ser um produto acabado; e que, onde não percebia problemas, a confusão em suas próprias ideias era inevitável? A Reforma não poderia, como doutrina, fazer mais do que marcar um início, e ela precisaria contar com o desenvolvimento futuro.”

Harnack reconhece o óbvio constatado pela lógica do desenvolvimento do pensamento humano: a pesquisa científica sobre a Bíblia e o cristianismo primitivo avançou muito desde a reforma protestante, e Lutero, apesar de ter sido pioneiro em muito do que posteriormente se tornaria a pesquisa histórica sobre o cristianismo, não possuía as ferramentas necessárias para entender a natureza da Bíblia como documento histórico. Com isso, suas conclusões sobre como os primeiros cristãos pensavam não poderiam estar completamente corretas. A pesquisa histórica moderna sobre como pensavam os primeiros cristãos demonstra que Lutero, por sua incapacidade investigativa mais aprofundada neste assunto, não percebeu o abismo enorme entre aquilo que se definiu sobre Jesus Cristo no Credo de Nicéia e aquilo que era a variada e efluente teologia cristã em formação no primeiro século.

Contudo, apesar da evolução na pesquisa científica sobre o cristianismo primitivo, o movimento evangélico moderno, principalmente aquele mais focado na teologia e história da reforma protestante, o novo calvinismo digital, os reformados (uso o termo de forma abrangente), desconhece (ou joga para escanteio dizendo se tratar de coisas daquele “câncer chamado liberalismo teológico”) as limitações dos pensadores da reforma e acredita que aquele foi o ápice da redescoberta do que era o cristianismo sem a capa da “tradição católica”. O problema é ainda mais agudo no Brasil, onde quase nenhuma das grandes obras de pesquisa histórica sobre o tema foram publicadas (com honrosas exceções).

Os problemas acarretados por essa ignorância histórica são claros: ao se embasar totalmente em Lutero, sua época, limitações de pesquisa, maneira de pensar e conclusões -- mesmo que um pouco mais elaboradas por Calvino e os puritanos -- a ideia protestante fundamentalista contemporânea falha em pressupor que a Bíblia é algo uniforme e sem divergências internas, e falha também em achar que os apóstolos tinham um entendimento único sobre quem era Jesus. O protestantismo fundamentalista erra em achar que o cristianismo pós-niceno é o cristianismo primitivo, quando, na realidade, o cristianismo inicial era uma seita messiânica/apocalíptica judaica e nada mais. Em outras palavras, o protestante fundamentalista acredita que se livrou da tradição católica para voltar ao cristianismo original "de Jesus", quando, na realidade, apenas descartou alguns dogmas para voltar à/se purificar na tradição de Nicéia, sem perceber que o Jesus do credo niceno é um desenvolvimento teológico de quase quatrocentos anos. Ao rejeitarem o criticismo e encararem a Bíblia não como uma fonte histórica, mas como um todo fechado e sem erros, os protestantes do movimento evangélico se prendem a Lutero e participam de seus erros e limitações.