08/09/2020

Jesus Cristo, Reino de Deus, Escatologia e Apocalipticismo - por Rudolf Bultmann

Nota: trecho retirado do livro "Jesus Cristo e Mitologia", de Rudolf Bultmann, publicado pela editora Fonte Editorial, pp. 11-3.


O reino de Deus constitui o núcleo da pregação de Jesus Cristo. No Século XIX, a exegese e a teologia entenderam este reino como uma comunidade espiritual composta de homens unidos por sua obediência à vontade de Deus, a qual dirigia a vontade de todos estes. Com semelhante obediência, tratavam de ampliar o âmbito de Sua influência no mundo. Segundo diziam, estavam construindo o reino de Deus como um reino que é certamente espiritual, porém que se encontra situado no interior do mundo, é ativo e efetivo neste mundo, se desenvolve na história deste mundo.

No ano de 1892 apareceu a obra de Johannes Weiss, A pregação de Jesus acerca do reino de Deus. Este livro, que marcou época, refutava a interpretação geralmente aceita até então. Weiss fez notar que o reino de Deus não é imanente ao mundo e não cresce como parte integrante da história do mundo, senão que é escatológico, isto é, que o reino de Deus transcende a ordem histórica. Chegará a ser uma realidade, não pelo esforço moral do homem, senão unicamente pela ação sobrenatural de Deus. Deus rapidamente porá fim ao mundo e à história, e implantará um novo mundo, o mundo da felicidade eterna.

Esta concepção do reino de Deus não era uma invenção de Jesus, senão que nela estavam familiarizados alguns círculos de judeus que aguardavam o fim deste mundo. Semelhante descrição do drama escatológico procedia da literatura apocalíptica judaica, da qual o livro de Daniel é o testemunho mais antigo que tem chegado até nós. A pregação de Jesus se diferencia das descrições tipicamente apocalípticas do drama escatológico e da bem-aventurança dos novos tempos que estão por vir, na medida em que Jesus se absteve de nos dar detalhes precisos dos mesmos: se limitou a afirmar que o reino de Deus viria e que os homens devem estar preparados para enfrentar o juízo vindouro. Ainda que não deixou de participar da expectação escatológica de seus companheiros. Por esta razão, ensinou seus discípulos a orar dizendo:

Santificado seja o teu nome,
venha a nós o teu reino,
seja feita a tua vontade
assim na terra como no céu.

Jesus abrigava a esperança de que todas estas coisas ocorreriam logo, em um futuro imediato, e dizia que já se podia perceber o amanhecer desta nova idade nos sinais e prodígios que ele operava, especialmente em seu poder de expulsar os demônios. Jesus concebia o advento do reino de Deus como um tremendo drama cósmico. O filho do Homem viria sobre as nuvens do céu, os mortos ressuscitariam e chegaria o dia do juízo; para os justos inauguraria o tempo de felicidade, enquanto que os condenados seriam entregues aos tormentos do inferno.

(...) a expectação e a esperança escatológicas constituem o núcleo de toda a pregação neo-testamentária.

A comunidade cristã primitiva entendeu o reino de Deus no mesmo sentido de Jesus. Também ela esperava o advento do reino de Deus em um futuro imediato. O próprio Paulo pensava estar ainda vivo quando chegasse o fim deste mundo e os mortos ressuscitassem. Esta convicção geral fica confirmada pelas vozes de impaciência, ansiedade e dúvida que já são perceptíveis nos evangelhos sinópticos, porém, cujo eco tomara ainda maior força mais tarde, por exemplo, na segunda epístola de Pedro.