06/01/2021

Pedro contra Paulo: o preconceito canônico e a influência do tradicionalismo judaico no cristianismo primitivo

Paulo é a voz do cânon. Quando avaliamos a influência do apóstolo nos primórdios do cristianismo, esse pequeno detalhe desvia a nossa atenção de uma coisa que deveria ser óbvia não fosse o peso das cartas de Paulo no Novo Testamento: Pedro e Tiago, respectivamente um dos doze mais próximos de Jesus e o irmão do mestre, exerceram uma influência muito maior nos primeiros cristãos do que o apóstolo nascido fora do tempo e ex-perseguidor da igreja.

Um dos momentos em que isso fica claro é no resultado da disputa entre Paulo e Pedro em Antioquia, relatado na carta de Paulo aos gálatas. Temos a impressão de que Pedro foi convencido pelos argumentos de Paulo sobre como os cristãos-gentios e cristãos-judeus deveriam se comportar à mesa, mas isso acontece porque o argumento de Paulo foi canonizado e o pressuposto é de que suas palavras são a verdade sobre o assunto. No entanto, é provável que o vencedor da disputa tenha sido Pedro (no sentido de que ele foi ouvido pelas primeiras comunidades), e talvez tenha sido por isso que Paulo foi obrigado a se defender. O fato é que Paulo não diz qual foi o resultado do confronto e não afirma que Pedro concordou com ele no final, diferente do que escreveu sobre a controvérsia a respeito da circuncisão, onde afirmou ter recebido o aval dos líderes da igreja de Jerusalém.

Pedro estava mais próximo ao que Jesus ensinou do que Paulo nessa disputa sobre os alimentos e sobre como um judeu e um gentio deveriam se relacionar na hora da refeição. Quem trouxe a novidade sobre o assunto foi Paulo, não Pedro — nem Jesus! Paulo afirma que foi ao terceiro céu, recebeu a revelação de um novo mistério e precisava convencer os outros discípulos. Em sua postura sobre os alimentos, Pedro estava apenas seguindo a lei de Moisés ao dizer que o estrangeiro que habita na terra de Israel deveria seguir os costumes judaicos. Nada mais. Paulo, por sua vez, nunca derrubou a lei em si, apenas disse que uma das suas funções estava ultrapassada.

Pedro saiu vencedor da disputa com Paulo em Antioquia, e as grandes igrejas fundadas por Paulo (na Galácia e em Corinto) foram fortemente influenciadas por uma visão judaica mais tradicionalista que era a de Pedro e Tiago. O fato de Paulo ter que brigar por seu apostolado nessas igrejas mostra que ele não era tão importante como imaginamos. Nas cartas escritas para as igrejas que fundou, Paulo precisa defender a sua autoridade diante de pessoas que estavam seguindo uma visão mais tradicional sobre como um gentio que virou judeu deveria viver. Isso mostra que esses dois foram mais influentes do que Paulo no início do cristianismo. Pensamos o contrário porque tudo o que lemos é o relato de Paulo sobre a situação. Imaginar que Paulo poderia puxar a orelha do principal discípulo de Jesus de Nazaré é ingenuidade histórica, um anacronismo guiado pela apropriação protestante de Paulo e pela interpretação luterana sobre os problemas do apóstolo. Um judeu da diáspora não teria mais autoridade no início da seita dos nazarenos do que um discípulo que andou com Jesus desde o começo.

Pedro e Tiago — juntamente com o judaísmo-cristão mais tradicionalista que existia na igreja de Jerusalém — tiveram uma primazia maior do que Paulo na comunidade primitiva. Não fosse a queda de Jerusalém e a destruição do cristianismo judaico, dificilmente a história se desenrolaria como se desenrolou. Hoje, temos a impressão de que Paulo era mais importante, mas isso acontece simplesmente porque ele tem um espaço grande no cânon. O fato de Pedro ter sido considerado o primeiro bispo de Roma não surgiu de um vácuo histórico, e a importância que o escritor de Atos dos Apóstolos, logo no início do seu tratado sobre o começo do cristianismo, dá à pedra sobre a qual Jesus fundaria a sua igreja (segundo um evangelho que soa muito antipaulino) não deveria nos passar despercebida.