Em alguns textos anteriores, eu tratei sobre a diversidade de pensamento no cristianismo primitivo, ainda na época dos apóstolos e dos primeiros discípulos de Jesus. Um dos grandes exemplos dessa divergência é a disputa entre um judaísmo mais tradicional, seguido por Pedro e Tiago na comunidade judaico-cristã de Jerusalém, e um judaísmo que estava mais aberto a uma redefinição de alguns papéis da Torá (Lei) em relação à sua aplicação a gentios que aderiram à seita dos nazarenos, a comunidade messiânica judaica que tinha Jesus de Nazaré como o seu messias.
A Carta de Tiago, que provavelmente é um compilado das tradições sobre o ensino do líder da comunidade de Jerusalém feita por seus discípulos posteriormente, possui um exemplo claro dessa divergência de opiniões quanto ao papel da Torá em relação aos gentios que queriam se tornar adeptos da nova seita judaica. Contudo, esse exemplo fica mascarado nas traduções em língua portuguesa da epístola em questão, pois o(s) tradutor(es), lendo o documento sob uma ótica cristã moderna e com o pressuposto de que não haveria diferenças entre a opinião dos apóstolos sobre qualquer tema, inseriu duas palavras que não existem no texto original:
“Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma.” Tiago 1:21 (grifo meu).
As palavras “em vós” não fazem parte do texto grego e não se encontram em nenhum manuscrito antigo, isto é, não se trata de uma variante textual que foi seguida pelo tradutor. As palavras simplesmente não existem. O acréscimo ficou por conta dos tradutores, que achavam que “palavra implantada” só poderia significar “evangelho” ou “mensagem recebida pelos cristãos”.
Veja, por exemplo, como a versão inglesa New Revised Standard Version traduz o versículo: “Therefore rid yourselves of all sordidness and rank growth of wickedness, and welcome with meekness the implanted word that has the power to save your souls.” (“Portanto, livrem-se de toda sordidez e acúmulo de maldade e recebam com mansidão a palavra implantada que tem o poder de salvar suas almas.”)
Essa tradução está mais próxima do original grego, que traz as palavras ἔμφυτον λόγον (emphyton logon – palavra implantada) e nada mais. E também não há motivos gramaticais para acrescentar “em vós” na frase.
Por que o tradutor resolveu acrescentar essas palavras em seu texto? Provavelmente, porque ele traduziu como cristão e interpretou os termos “palavra implantada” como “mensagem do evangelho que é colocada no coração de quem creu nessa mensagem”. Por isso, para ele, “palavra implantada” só pode ser implantada “em vós”, porque ele parte do pressuposto cristão de que logos é a palavra de Deus que é recebida pelo coração de quem crê. Nesse caso, o tradutor é um apologeta cristão: ele não traduziu, mas interpretou o texto.
Entretanto, é válido perguntar se o significado de “palavra implantada” muda alguma coisa com o acréscimo. Para responder a isso, devemos levar em conta o que um judeu do século primeiro da Era Comum que viveu antes da queda de Jerusalém e da destruição do segundo templo em 70 E.C. (ou seus representantes que compilaram seus ensinamentos nessa carta) e que tinha Jesus de Nazaré como messias queria dizer com “palavra implantada”. Será que “palavra implantada” significava o mesmo para ele que “palavra que está no seu coração” significa para um evangélico (ou cristão de modo geral) de hoje em dia?
Tiago não era cristão nos termos atuais. Falar de cristianismo e judaísmo como duas religiões separadas no período em que essa carta foi redigida é um anacronismo monstruoso. Ele era um judeu messiânico que estava em conflito com outros judeus que não achavam correto que os gentios se tornassem prosélitos, isto é, aderissem ao modo de viver judaico derivado da Lei. Ele queria mostrar a validade da Lei de Moisés para outros judeus que achavam que a Lei, segundo interpretada por Tiago e possivelmente pela comunidade de Jerusalém, não valia para os gentios que estavam adentrando na sua nova seita judaica. Para isso, ele usa um conceito comum da literatura da época, o termo “implantado”, que fazia referência à ideia de razão humana inata ou lei natural, de onde os seres humanos derivam as noções de bem e mal. Para o judeu da carta, essa “palavra implantada” é expressada verbalmente na Torá. Para ele, seguir a Torá é ser guiado pelo que é correto. Assim, ele busca responder aqueles outros judeus messiânicos que acreditavam que a Torá, conforme interpretada por ele, não tinha muita serventia para quem não era judeu.
Para explicar isso melhor, traduzi abaixo uma parte da conclusão do livro Logos and Law in the Letter of James, de Matt A. Jackson-McCabe. O trecho se encontra nas páginas 242-3:
A análise dessa (“implantada”) e outras palavras revela que o termo “implantado” é normalmente usado na literatura antiga para descrever a razão humana ou uma lei natural que a razão humana abrange. A terminologia tem as suas raízes na teoria estoica de que a razão humana — a qual, na sua forma perfeita como “razão correta”, representa a lei natural — se desenvolve a partir de "preconcepções implantadas": a tendencia humana inata de conceitualizar distinções morais como “bom” e “mal”, frequentemente descritas como “sementes” de conhecimento ou virtude. Foi precisamente à luz dessa teoria que Dionísio Bar Salibi descreveu a “palavra implantada” de Tiago como “lei natural”, e que ele e um outro exegeta — cuja interpretação de Tg 1:21 está preservada em Pecumenius e Theophylactus — identificaram essas palavras como algo inato em toda a humanidade, algo associado particularmente com a habilidade de distinguir opostos morais.
Se a discussão do logos em Tiago difere em alguns aspectos das discussões dos estoicos sobre a razão humana, não é porque apenas Tiago, entre essas obras antigas, formulou a citação de “o logos implantado” com a lei perfeita inteiramente à parte da influência estoica. Ao contrário: tais divisões são encontradas onde quer que a compreensão estoica da lei seja incorporada a visões de mundo estranhas ao estoicismo.
Em Tiago, o criador do mundo é o deus das escrituras judaicas, e o logos que ele implantou na humanidade encontra expressão escrita na Torá, a “lei perfeita” que ele deu aos descendentes de Abraão. O desejo humano, por outro lado, é associado com o Tentador mitológico das tradições judaica e cristã: o diabo. A oposição entre logos e desejo e o problema da tentação, além disso, são vistos a partir de um horizonte escatológico iminente, quando esse deus executará um julgamento de acordo com a sua lei: “os ricos” serão punidos pelo seu hedonismo arrogante e opressivo, enquanto os pobres humildes que resistiram ao desejo e amarem a Deus herdarão o reino que ele prometeu.
Se a característica central da soteriologia de Tiago não é um “evangelho” pelo qual alguém pode renascer, mas um logos implantado por Deus em toda a humanidade na criação, o qual encontra expressão escrita na Torá, é dificilmente necessário concluir que a carta não foi originalmente uma composição cristã. Tendo em vista a correlação recorrente do interesse nas doze tribos de Israel com o messianismo, particularmente na literatura do período romano inicial, as referências à figura de Jesus Cristo são muito consistentes com o endereçamento da carta "às doze tribos que estão na diáspora", e também com a sua perspectiva escatológica mais geral. A incorporação do entendimento estoico da lei nessa cosmovisão é, ela mesma, na realidade, muito bem compreendida levando-se em conta os debates cristãos iniciais que estavam em andamento a respeito do significado da Torá. De fato, existe forte evidência sugerindo que o tratamento que Tiago tem da “perfeita lei da liberdade” foi cunhado particularmente com um olho na formulação de Paulo sobre o problema da lei.