06/01/2021

Os Muitos Deuses do Monoteísmo Antigo (Paula Fredriksen)

Nota: artigo escrito por Paula Fredriksen e publicado originalmente no blog da Yale University Press.


Como o judeu antigo — e, mais tarde, o cristão antigo — se distingue do seu vizinho contemporâneo, o pagão? As comunidades bíblicas eram monoteístas, muitas pessoas responderão; as comunidades pagãs eram politeístas. Para a cultura majoritária, muitas divindades povoavam os céus. As religiões bíblicas, mais austeras, se apegaram à crença em um único deus.

A crença de que existe apenas um deus funciona bem como uma definição do monoteísmo moderno. Mas o monoteísmo antigo acomodava a existência de muitas outras divindades. Para os antigos judeus e cristãos, Deus não era o único deus, nem mesmo em seu próprio livro.

As escrituras judaicas estão repletas de outras divindades, os "deuses das nações". Às vezes, o deus de Israel combate essas divindades enquanto o seu povo luta contra o povo deles. Durante o Êxodo, o deus de Israel enfrenta os deuses do Egito (Êxodo 12:12). YHWH captura deuses estrangeiros (Jeremias 43:12), pune-os (46:25) ou os envia para o exílio (49:3). O poder celestial existe em um gradiente: o deus de Israel é singularmente poderoso, e esses outros deuses se curvam a ele (Salmo 97:7). Na verdade, eles constituem a sua corte celestial: “Ele julga no meio dos deuses” (Salmo 82:2). Mas a população celestial é múltipla: divindades inferiores ou menores preenchem o céu e a terra.

O monoteísmo judaico antigo, em resumo, não era "monoteísta". Embora as nações pagãs possam ser ridicularizadas por sua adoração de imagens divinas (“ídolos”), os poderes representados por essas imagens eram reais. A lealdade religiosa judaica centrava-se no deus judeu, mas os judeus antigos também reconheciam o poder desses outros deuses inferiores, menores. Induzir esses poderes divinos a cumprirem suas ordens era a principal atividade dos magos judeus. Algumas inscrições em sinagogas judaicas evocam deuses cósmicos e terrestres como testemunhas de procedimentos legais. Outras mencionam visitas em sonhos feitas por divindades pagãs. Outras ainda dedicam fundos para celebrar feriados pagãos e judaicos.

Os deuses pagãos têm um perfil particularmente importante no Novo Testamento, nas cartas do apóstolo Paulo. Paulo consistentemente proíbe seus gentios batizados de adorarem suas antigas divindades, cuja existência ele ridiculariza e reconhece ao mesmo tempo — em certo momento, na mesma passagem! "'Um ídolo não tem existência real' e 'não há deus senão um'; pois embora possa haver os chamados deuses no céu e na terra — como de fato existem muitos deuses e muitos senhores — ainda para nós há um Deus, o Pai... e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8:4-6). “O deus deste mundo” está frustrando a missão de Paulo (2 Coríntios 4:4). Seus ex-gentios pagãos anteriormente adoravam os poderes elementares do universo (Gálatas 4:8-9).

Esses deuses fazem mais do que ficar no plano de fundo do passado pagão dos gentios de Paulo. Eles desempenham um papel fundamental no futuro cristão, moldando a identificação que Paulo tinha sobre Jesus como sendo o messias Davídico (Romanos 1:3 e 15:12). Jesus de Nazaré, como os evangelhos o retratam, foi um curandeiro carismático e um homem santo galileu. Nas tradições judaicas, no entanto, o descendente da casa de Davi, o messias escatológico, era, como seu antepassado bíblico, uma figura militar e monárquica, um guerreiro da realeza. Tendo derrotado os inimigos de Deus na batalha final e remontado as doze tribos de Israel, esse guerreiro governaria como um príncipe da paz — mas apenas quando ele prevalecesse na batalha apocalíptica contra o mal.

Como uma figura tão resolutamente civil quanto Jesus passou a ser associada a uma figura tão marcial como o messias final? A resposta curta é: por meio das expectativas em torno da Parousia de Jesus, sua triunfante "segunda vinda". Paulo fornece nossos primeiros vislumbres dessas expectativas em evolução. Quando ele retornar — durante a vida de Paulo, Paulo estava convencido — o glorioso Cristo descerá do céu ao clamor do arcanjo e o ressoar da trombeta final (1 Tessalonicenses 4:13-18). Ele ressuscitará os mortos; ele reunirá seus eleitos (loc. cit.); ele reunirá as tribos (“todo o Israel”); ele tornará todas as nações pagãs a Deus, seu pai (Romanos 11:25-26).

Mas antes de finalizar a história dessa forma, Cristo deve primeiro derrotar os deuses das nações. Paulo descreve o confronto de Cristo com essas forças especialmente em 1 Coríntios 15 e em Romanos 8. Na carta aos Coríntios, Paulo identifica esses deuses com forças cósmicas: "todo domínio, autoridade e poder" (1 Coríntios 15:24). Cristo os “destrói” e os “subjuga” “debaixo de seus pés” (15:24-27). Em outro lugar, em Filipenses 2, esses poderes sobre-humanos se ajoelham diante de Cristo e de Deus Pai (2:10-11). E em Romanos 8, essas divindades parecem totalmente reabilitadas: elas “gemem” junto com o resto da criação; e com a criação, eles aguardam a redenção final.

Mateus e Lucas, escritos perto da virada do primeiro século, irão "Davidizar" a biografia de Jesus. Esses dois evangelistas, em duas narrativas de nascimento mutuamente excludentes, apresentarão o Jesus galileu como tendo nascido no correto local judaico para o nascimento davídico: Belém. Meio século antes, o apóstolo Paulo não conhecia essas histórias sobre a natividade. Seu Jesus é o Cristo davídico por causa de seu reaparecimento futuro iminente como um guerreiro apocalíptico. Os poderes que ele combaterá são os deuses das nações. Renunciados, mas ainda assim necessários, esses deuses representam as forças cósmicas a serem submetidas ao triunfante guerreiro Cristo que retorna. Dessa forma e por essa razão, a identidade de Jesus como o messias davídico repousa no "monoteísmo" confuso da antiguidade, o cosmos congestionado de deuses pagãos.