Nota: trecho retirado do livro "Jesus e o mundo do judaísmo", de Geza Vermes, publicado no Brasil por Edições Loyola.
Na maioria das vezes, alega-se haver falta de correlação entre o Jesus aqui descrito como um homem mergulhado na piedade judaica e de perspectiva fundamentalmente apolítica, e a hostilidade com que foi tratado por representantes de judaísmo (ou ao menos alguns deles) e de Roma. Creio que a dificuldade vem de uma leitura ou interpretação errônea dos indícios apresentados. Reações violentas das autoridades religiosas judaicas contra um dos seus subordinados, bem como sua transferência para a jurisdição dos romanos, não implicam necessariamente que, na avaliação dessas autoridades, um crime político ou religioso tenha de fato sido cometido. A afronta pode ter sido simplesmente um comportamento irresponsável suscetível de levar à agitação popular. Os encarregados da manutenção da lei e da ordem poderiam facilmente estar convencidos de que era seu dever evitar, com vistas ao bem comum, que o perigo tomasse vulto numa sociedade já afetada pelo fervor revolucionário. O caso de João Batista, descrito nas Antiguidades de Josefo como um pregador influente e, portanto, potencialmenteperigoso, já oferece bons indícios sobre o caso de Jesus na ótica da liderança judaica. Contudo, o relato menos conhecido, igualmente de Josefo, de um "profeta” apocalíptico também chamado de Jesus, proporciona um paralelo ainda mais revelador.
Em 62 d.C., quatro anos antes de eclodir a primeira revolução contra Roma, durante a festa dos Tabernáculos, os líderes religiosos de Jerusalém prenderam Jesus, filho de Ananias, por enunciar profecias aziagas na cidade. Ao que parece, ele proclamava que aflições se abateriam sobre o santuário e o povo. A fim de fazê-lo parar, eles lhe deram uma severa surra. Mas Jesus, filho de Ananias, sofreu os golpes em silêncio, sem emitir sequer uma palavra de protesto, e não desistiu de profetizar. Isso deixou os líderes num verdadeiro dilema; diz-se que alguns deles chegaram a pensar se Jesus, filho de Ananias, não seria inspirado por Deus (cf. At 5:39). Mesmo assim, persuadidos de que a fonte de um sério distúrbio tinha de ser neutralizada, eles preferiram entregar o homem ao governadorromano, e Jesus, filho de Ananias, foi “açoitado até ter os ossos expostos”. Como nem mesmo essa tortura se mostrou eficaz, e como, examinado pelo Procurador, ele persistisse em seus lamentos e se recusasse a responder às perguntas de AIbino, este último o libertou. Ele acreditava que o homem estivesse louco!
Há uma similaridade prima facie entre o caso de Jesus, filho de Ananias e o de Jesus de Nazaré. A conduta de ambos poderia levar à violação da ordem pública, ocasionando uma intervenção romana maciça, situação a ser evitada a todo custo. Todavia, em vez de agirem eles mesmos, os magistrados judeus estavam plenamente dispostos a enviar o "criador de problemas" aos romanos. Ao fazê-lo, eles se protegiam da acusação de não terem cumprido o seu dever e, ao mesmo tempo, se isentavam de proferir e executar uma sentença num caso embaraçoso, com o qual, sem sombra de dúvida, preferiam não ter deparado. O julgamento de Jesus, filho de Ananias, terminou numa absolvição com a justificativa de loucura, ao passo que o de Jesus de Nazaré -- uma questão muito mais séria devido aos desacordos que ele causara no Templo e à suspeita de que alguns dos seus seguidores fossem zelotes -- levou à decisão injusta de um tribunal e a uma das maiores tragédias da história.