Nota: trecho retirado do livro "O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do mediterrâneo", de John Dominic Crossan, publicado no Brasil por Imago Editora.
No princípio havia a realização; não apenas a palavra, nem apenas o ato, mas ambos, cada um marcado pelo outro para sempre. Ele chega, ainda desconhecido, numa aldeola da Baixa Galiléia. Encontra o olhar frio e duro de camponeses que vivem há muito tempo num nível de mera subsistência e sabem, portanto, onde fica a fronteira entre a pobreza e a miséria. Parece um mendigo, mas seus olhos não têm o aspecto servil que seria de esperar, sua voz não soa com os lamentos de costume e seu andar não é arrastado. Ele fala do domínio de Deus e os camponeses escutam mais por curiosidade do que outra coisa. Eles sabem o que é domínio e poder, o que é reino e império, mas sabem disso em termos de impostos e dívidas, subnutrição e doença, opressão agrária e possessão demoníaca. Querem saber o que esse reino de Deus pode fazer por uma criança aleijada, um pai cego, uma alma atormentada que grita o seu isolamento angustiado entre os túmulos que marcam os limites da aldeia. Jesus vai com eles até os túmulos e, no silêncio que se segue ao exorcismo, os aldeões o escutam novamente, mas dessa vez a curiosidade dá lugar à ganância, ao medo e ao constrangimento. Ele é convidado, como exige a honra, para a casa do líder da aldeia. Ao invés disso, vai para a casa da mulher sem posses. Não é exatamente a atitude adequada, mas seria uma estupidez censurar um exorcista, criticar um mago. O povo da aldeia poderia servir como um intermediário de seu poder, poderia dar a este reino de Deus uma localização, um lugar onde outras pessoas viriam ser curadas, um centro onde haveria honra e apadrinhamento para todos, talvez até mesmo para aquela mulher sem posses. Mas no dia seguinte ele vai embora, e agora se perguntam em voz alta sobre um reino divino que não mostra nenhum respeito pelo protocolo, um reino que, segundo ele, se destinava não só aos pobres como eles, mas também aos miseráveis. Outros dizem que os piores demônios, os mais poderosos, estão em certas cidades, e não em pequenas aldeias. Talvez, dizem, o demônio exorcisado tenha ido para um lugar desses, para Séforis ou Tiberíades, para Jerusalém, ou até mesmo Roma, onde a sua chegada nem seria percebida em meio a tantos outros que já moravam lá. Mas alguns não dizem nada e pensam na possibilidade de alcançar Jesus antes que ele se afaste demais.
Nem o próprio Jesus sempre vira as coisas dessa maneira. Antes, ele tinha recebido o batismo de João e aceitado a mensagem de que Deus seria o juiz de um apocalipse iminente. Mas o Jordão não é apenas água. Ser batizado neste rio significava reencenar a passagem arquetípica do cativeiro imperial para a liberdade nacional. Herodes Antipas tratou de executar João imediatamente, não houve nenhuma consumação apocalíptica e Jesus, encontrando a sua própria voz, começou a falar de Deus, não como um apocalipse iminente, mas como uma cura no presente. Aos seus primeiros seguidores, gente das aldeias camponesas da Baixa Galiléia que perguntavam como pagar pelos seus exorcismos e suas curas, ele dava uma resposta muito simples – ou melhor, simples de entender, mas extremamente difícil de executar. Vocês são curandeiros curados, dizia, então levem o Reino a outras pessoas, pois não sou o seu mestre e vocês não são seus intermediários. Ele sempre esteve e sempre estará à disposição de todos aqueles que o desejarem. Vistam-se como eu, como um mendigo, mas não peçam esmolas. Façam um milagre e peçam um lugar à mesa. Aqueles que vocês curarem devem aceitá-los em sua casa.
Essa visão enlevada e esse programa social tinham o objetivo de reconstruir uma sociedade a partir de suas bases, mas através de principios de igualitarismo religioso e econômico, levando-se curas gratuitas diretamente à casa do camponês e aceitando em troca qualquer coisa que puderem oferecer. A conjunção deliberada de magia e refeição, milagre e mesa, compaixão gratuita e comensalidade aberta era um desafio lançado não só à rigorosa regulamentação de pureza do judaísmo, ou à combinação patriarcal de honra e vergonha, apadrinhamento e clientelismo do Mediterrâneo, mas à eterna tendência da civilização de criar limites, estabelecer hierarquias e alimentar discriminações. Ela não buscava uma revolução política, mas uma revolução social que afetaria as profundezas mais perigosas da imaginação. Não se dava nenhuma importância às distinções entre gentio e judeu, homem e mulher, escravo e homem livre, ricos e pobres. Essas distinções mal chegavam a ser atacadas na teoria: elas simplesmente eram ignoradas na prática. O que aconteceria a Jesus provavelmente era tão previsível quanto o que já acontecera a João. Seria de se esperar que houvesse algum tipo de execução político-religiosa. O que ele fazia e dizia era tão inaceitável no século I quanto no século XX, lá, aqui, ou em qualquer lugar. No entanto, a sequência exata do que aconteceu no final não apresenta mais de um relato independente e é mais fácil entender a sua morte numa relação com a vida do que com os dias que a precederam. É provável que Jesus, confrontado com a riqueza magnífica do Templo – talvez pela primeira e última vez – tenha destruído simbolicamente a sua função perfeitamente legítima de mediador, em nome do reino sem intermediários de Deus. Se este ato tivesse se consumado na atmosfera explosiva da Páscoa, uma festa que comemora a libertação dos judeus da opressão de um império antigo, isso seria o bastante para ter a sua crucificação proclamada pelo poder político-religioso. Para nós, hoje em dia, é impossível imaginar a brutalidade e a indiferença com que se podia livrar de um camponês sem importância como Jesus.