30/03/2020

O problema da cosmologia hebraica antiga para o fundamentalismo teológico cristão

O fundamentalismo teológico se baseia inteiramente na ideia de que a Bíblia não contém erros e na pressuposição de que a linguagem bíblica é literalmente verdadeira porque esse livro foi inspirado pelo próprio Deus, sendo a revelação direta do ser divino à humanidade. A quantidade de problemas que existe em sustentar o pressuposto de que a Bíblia não contém erros, sejam eles de natureza científica, histórica, moral, filosófica ou teológica, é enorme, a começar pelo fato de que a cosmologia assumida pelos autores bíblicos é impossível de ser adotada pela mente moderna.

Segundo a cosmologia hebraica antiga, a criação se deu a partir de um caos de águas primordiais. Deus criou uma redoma, uma cúpula sólida (o firmamento) que separou as águas em duas partes e que segura as águas que estão acima dela. A terra seca surgiu no meio das águas que estão debaixo do firmamento, no meio do grande abismo (a imensidão de água interminável que ainda está embaixo da terra seca e que forma o oceano). Quando aconteceu o dilúvio, as janelas da cúpula foram abertas e a água de cima caiu e inundou tudo, enquanto as águas de baixo subiram quando as fontes do abismo foram abertas; o dilúvio é a volta do caos aquático que existia antes da criação. Essa cosmologia é pressuposta em textos como Gênesis 1 e Salmos 148.4. Acreditar que o autor(res?) de Gênesis subscrevia uma cosmologia copernicana, conhecia o heliocentrismo e entendia o significado de vácuo espacial é desesperadamente anacronistico.

Mas não para por aí. A cosmologia de Gênesis -- céu em cima, terra no meio e inferno embaixo, com o trono de Deus literalmente em cima das águas que cobrem a cúpula -- é adotada pelos autores do NT:

A visão do Novo Testamento sobre o que é o cosmos é uma visão mitológica. O mundo é uma estrutura em três camadas, com a terra no meio, o céu acima dela e o inferno abaixo. O céu é o lugar onde Deus e figuras celestiais, os anjos, habitam; o mundo abaixo da terra é o inferno, o local de tormento. Mas até mesmo a terra não é simplesmente o cenário de ocorrências naturais do cotidiano, de previsões e obras que se relacionam com ordem e regularidade; na verdade, a terra também é um teatro para as obras de poderes sobrenaturais, Deus e os seus anjos, Satanás e seus demônios. (Bultmann, New Testament and Mythology).

Na cabeça dos autores do NT, céu e inferno eram lugares que existiam materialmente acima e abaixo da terra respectivamente; não eram lugares espirituais que existiam em outra dimensão. Se você construísse uma escada suficientemente alta, chegaria ao céu:

Devemos lembrar que Lucas podia operar apenas dentro da opção conceitual possível para ele, na qual o céu era compreendido como literalmente "lá em cima", e a subida ao céu poderia apenas ser compreendida em termos de "ser tomado acima", uma ascensão literal. (Dunn, Beginning From Jerusalem, p. 148).

Nosso conhecimento moderno acerca do universo nos impede de aceitar a cosmologia mitológica do NT, pois sabemos que o que existe além do azul do céu são planetas, estrelas, galáxias e o infinito do espaço:

Nenhuma pessoa madura representa Deus como um ser que existe literalmente lá em cima no céu; de fato, para nós, não existe mais qualquer "céu" no sentido antigo dessa palavra. Da mesma forma, certamente também não existe um inferno no sentido de um submundo mítico que está abaixo do chão em que pisamos. (Bultmann, New Testament and Mythology).

O problema surge quando percebemos que essa cosmologia antiga é o cenário onde todos as narrativas que dão base à teologia do NT aconteceram. Se os lugares não são materiais como os autores achavam que eram, não podemos afirmar, por exemplo, que a ascensão de Jesus aconteceu como descrito pelo NT. Se a ascensão e a parousia fazem parte da linguagem mitológica, então elas não são reais no sentido literal como acreditavam os autores bíblicos. Se isso estiver correto, é impossível sustentar a inerrância bíblica segundo afirmada pelo fundamentalismo teológico, pois a Bíblia pressupõe como verdade algo que sabemos não ser real. Portanto, fica claro que os autores bíblicos não estavam escrevendo como se fossem historiadores modernos. Eles enxergaram significado teológico nos episódios que narravam, e muito do que escreveram, se analisado pelo método histórico moderno, não corresponde exatamente ao que aconteceu. Assim, a Bíblia não pode ser considerada um livro de história ou ciência, mas uma fonte histórica que precisa ser escrutinada pelo método correto.

Sabendo disso, os teólogos liberais tentaram chegar à essência do que é o cristianismo através da análise histórica crítica, deixando de lado aquilo que não poderia ser tido como verdade pela mente moderna e dispensando, com isso, os dogmas cristãos. Influenciados por Kant, e tendo consciência da impossibilidade de provar a existência do mundo metafísico empiricamente, tentaram chegar ao conhecimento de Deus pela via do sentimento. Todos os teólogos, desde Schleiermacher, tentam falar sobre Deus a partir de algo que vem de dentro do sentimento humano. Assim, para eles, a Bíblia é o registro histórico do sentimento religioso de um povo específico. Ainda assim, afirmaram que o ensino de Jesus de Nazaré foi o ápice da religiosidade humana, e que esse ensino poderia ser alcançado através do escrutínio crítico do texto bíblico; poderia ser purificado do dogma cristão. Dessa forma, podemos dizer que, quando a cosmovisão medieval caiu com o surgimento iluminismo, todo o pensamento sobre Deus se desfez em palavras que vêm de dentro do coração. Sabemos (ou pelo menos pensamos que sabemos) que tanto o sentimento interno de dependência ao infinito (Schleiermacher), quanto a moral inata do ser humano (Kant, Ritschl e Harnack) parecem nos dizer que existe algo além do empírico, mas isso nunca poderá ser provado; tudo pode não passar de condição cerebral desenvolvida pela evolução -- aqueles que estão familiarizados com os livros de Robert Sapolsky sobre o comportamento humano sabem do que estou falando. Tudo o que se pode fazer nessa área, pelo menos até a pesquisa científica avançar muito mais, e apesar dos esperneios da militância ateísta, é especular.

Os seres humanos sempre foram criadores de mitos. Arqueólogos desenterraram sepulturas de neandertais onde foram encontradas armas, ferramentas e os ossos de um animal sacrificado, o que sugere que eles acreditavam em um mundo futuro semelhante ao que conheciam em vida. Os neandertais podem ter contado histórias sobre a vida que os seus companheiros mortos estavam experienciando. Eles estavam certamente refletindo sobre a morte de uma forma que as outras criaturas não estavam. Os animais veem outros animais morrerem, mas, até aonde sabemos, eles não pensam sobre o assunto. Contudo, as sepulturas dos neandertais mostram que, quanto essas pessoas antigas se tornaram conscientes da sua mortalidade, eles criaram algum tipo de contra-narrativa que os capacitou a se conformar com o fato. Os neandertais, que enterraram os seus companheiros com tanto cuidado, parecem ter imaginado que o mundo visível, material, não era a única realidade. Portanto, desde uma época muito primitiva, parece que os seres humanos se distinguiram por sua habilidade de ter ideias que foram além da sua experiência cotidiana. (Karen Armstrong, A Short History of Myth).

Se os seres humanos são apenas animais que têm consciência da morte, e a religião/mitologia foi uma das formas que eles desenvolveram para explicar/neutralizar o medo da aniquilação, então é provável que a religião seja apenas isso, ou seja, a imaginação de uma espécie que percebeu que a vida acaba. Se a religião for isso, ela pode ser simplesmente uma primeira etapa na conscientização da espécie humana dentro do cosmos: para explicar a si mesmo e o mundo ao seu redor, o ser humano usa o mito/imanência de algo superior para descrever as coisas que vê; com o surgimento da linguagem e observação científica, a religião fica ultrapassada e o ser humano finalmente compreende que não passa de uma aglomeração de organismos que se desenvolveu, percebeu isso e está no mundo apenas por consequência do acaso.

Os teólogos dialéticos (neo-ortodoxos) tentaram resolver o problema dizendo que precisamos simplesmente aceitar que Deus é inalcançável e receber a palavra da revelação. Para eles, se a linguagem mitológica do NT não faz sentido para a mente científica porque a objetividade que essa mitologia expressa não pode se realizar no mundo natural que conhecemos, o importante é o que está por trás dessa linguagem; qual é o anseio que ela tenta responder.

A diferença entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia se encontra numa mudança de paradigma em relação a onde está a base da teologia; de um escrutínio histórico/filosófico da Bíblia para se chegar à essência do cristianismo -- mesmo quando isso significa largar os dogmas --, para um abandono do método histórico como algo válido para se definir o dogma, partindo do pressuposto de que Deus é totalmente transcendente e só pode ser reconhecido quando se revela; essa revelação jamais pode ser provada empiricamente, mas surge no reconhecimento mútuo da igreja como um todo e do indivíduo de que Deus se revelou em Jesus. O método histórico (o empírico) não demonstra Deus, mas isso não importa, porque a igreja percebe a revelação subjetivamente. Assim, a neo-ortodoxia é o reconhecimento de que o empírico não prova Deus e de que o caminho está em outro lugar. Com a influência de Kierkegaard, a fé vira um salto no escuro, mas um salto que precisa ser feito, pois a verdade não está disponível fora da fé subjetiva de cada indivíduo. 

É claro que os teólogos liberais que ainda estavam vivos na época do surgimento desse novo tipo de teologia não deixaram de tecer seus pensamentos sobre ela, como o fez Harnack: "Uma teologia vinda desde dentro nunca é uma teologia acadêmica; é, na verdade, algo mais, algo superior; é confissão. Somente a teologia desde fora pode criar comunidade. Lamentamos que a insuficiência de tal teologia seja tão evidente, mas ninguém pode mudar isso. Se alguém tentar, no entanto, fracassará e criará confusão para a teologia. Em vez disso, que eles se apegam à sua tarefa: pregar." (Adolf Von Harnack, The Formation of Christian Theology and of the Church's Dogma.) Quem sabe ele tenha mesmo razão.

Talvez a única coisa que possa salvar o cristianismo em sua capacidade de demonstrar a realidade, de provar que ele fala a verdade sobre o que existe após a morte, sobre o metafísico, seja a ressurreição de Jesus: se a ressurreição for apenas um exemplo de como a mitologia apocalíptica foi usada pelos discípulos de Jesus, então Schwetizer estava certo: Jesus foi apenas um profeta apocaliptico judeu que teve suas expectativas frustradas. Isso não anula a validade do cristianismo em sua força de criação civilizacional no ocidente -- e talvez também possamos dizer que a essência da religião cristã tenha sido o ponto mais alto da intelectualidade humana na busca pela moralidade --, mas enfraquece (e muito!) o poder de explicação da realidade que o cristianismo possui. Contudo, se a ressurreição de Jesus realmente aconteceu em seu sentido literal, o cristianismo é verdadeiro, e pouco importa o fato de que os primeiros cristãos usaram uma linguagem mitológica para descrever o mundo ao seu redor.

Por outro lado, se a fé cristã é baseada na historicidade do relato bíblico, e se a mente moderna usa o método histórico para demonstrar o que é, de fato, histórico ou não, então o problema parece persistir (pelo menos para as mentes mais insatisfeitas com respostas evasivas), pois, ao contrário do que muitos apologetas cristãos tentam insistir, o método histórico não pode demonstrar que Jesus ressuscitou de fato; ele pode apenas constatar que pessoas interpretaram o túmulo vazio como sendo a ressurreição, e que elas tiveram experiências onde viram Jesus após a morte dele. Justiça seja feita: o método histórico não pode identificar o Jesus real. A busca pelo Jesus histórico "pode apenas reconstruir fragmentos de um mosaico, o fraco contorno de um afresco desgastado que permite muitas interpretações... [Assim,] o Jesus histórico não é o Jesus real. O Jesus histórico pode nos dar fragmentos da pessoa 'real', porém nada mais" (Meier, Marginal Jew, Vol. 1, p. 25). Neste ponto, o método histórico se esgota, e chegamos na fé: você acredita no que essas testemunhas falaram?