22/11/2020

O surgimento da literatura apocalíptica

O Novo Testamento (NT) é repleto de imagens que remetem à ideia de uma mudança final que está próxima e será trazida por Deus. Durante os séculos anteriores à escrita dos documentos que compõem o NT, a terra de Israel havia sido dominada por sucessivos impérios mundiais que retiraram a independência política dos judeus. Para um povo que acreditava servir o único Deus supremo, essa situação não fazia sentido, e uma explicação para essa aflição precisava ser dada. A resposta foi encontrada na releitura de antigas profecias e no desenvolvimento de um novo tipo de literatura, os livros chamados de apocalipses, cujo representante cristão mais famoso fecha o canôn bíblico.

O nascimento do chamado apocalipticismo se deu quando profecias sobre a vitória política de Israel sobre seus inimigos foram reinterpretadas: num momento de angustia e desesperança sobre o futuro de Israel, antigas profecias que falavam sobre um dia de retribuição contra os inimigos de Israel foram lidas de acordo com uma esperança futura de libertação que viria por parte de Deus. Com isso, uma nova visão teológica sobre um dia de julgamento se desenvolveu, e um novo tipo de literatura foi criada. 

A literatura apocalíptica é uma forma de pensar que se desenvolve aos poucos e que surge em um momento de crise visando uma libertação final. No momento de dificuldade, da luta contra o império e a opressão -- até mesmo a opressão de judeus contra outros judeus --, os judeus olharam para Deus buscando uma intervenção final, o cumprimento de promessas antigas -- registradas em textos que já haviam perdido o seu apelo histórico e agora poderiam ser aplicados a situações presentes --, só que agora no tempo escatológico (do fim), no momento em que Deus mudaria e renovaria a criação, restabelecendo o paraíso que havia sido perdido com o pecado de Adão.

A pergunta era: por que o povo de Deus -- e aqui cada grupo específico de judeus poderia se entender como o verdadeiro povo --, que cumpre seus mandamentos e vive de acordo com a sua vontade segundo revelada na Lei (Torá), sofre na Terra, se sabemos que ele domina os céus e é Deus sobre todos os povos? A resposta -- provavelmente influenciada por outras culturas, cosmologias e teologias -- foi encontrada na dicotomia entre céu e terra, entre o governo de Deus e o governo de Satanás: este mundo é dominado por forças malignas -- encabeçadas pelo "deus deste século" (2 Coríntios 4:4); por isso, a presente era é má (Gálatas 1:4) -- as quais se opõem a Deus e ao seu povo, e o que acontece na Terra é reflexo de uma luta cósmica entre as forças de Deus e as forças do mal. É durante o desenvolvimento dessa mentalidade que a figura de Satanás surge na literatura como inimigo de Deus e do seu povo.

Um dos grandes exemplos dessa ideia de batalha no mundo espiritual contidos no NT é o que diz o autor da Carta de Judas: "Contudo, nem mesmo o arcanjo Miguel, quando estava disputando com o diabo acerca do corpo de Moisés, ousou fazer acusação injuriosa contra ele, mas disse: 'O Senhor o repreenda!'" (Judas 1:9 NVI).

Entretanto, Deus consertaria tudo: o sofrimento dos justos, dos filhos de Deus, terá um fim quando ele intervir sobre este mundo, trazendo finalmente a justiça e colocando Israel no seu lugar de direito como povo escolhido, inaugurando o reino de Deus na Terra, uma nova era que substituirá a presente era má. Mais uma vez, é o autor da Carta de Judas que nos oferece uma janela para esse aspecto do imaginário apocalíptico dos judeus daquela época, desta feita, citando diretamente um livro não canonizado, mas considerado o exemplo maior da literatura apocalíptica judaica: "Enoque, o sétimo a partir de Adão, profetizou acerca deles: 'Vejam, o Senhor vem com milhares de milhares de seus santos, para julgar a todos e convencer a todos os ímpios a respeito de todos os atos de impiedade que eles cometeram impiamente e acerca de todas as palavras insolentes que os pecadores ímpios falaram contra ele.'" (Judas 1:14-15).

Naturalmente, por fazerem parte de um contexto histórico onde essas ideias eram comuns, os primeiros cristãos -- todos eles judeus e discípulos de um profeta apocalíptico que pregava a vinda do reino de Deus -- eram apocalípticos e aguardavam ansiosos pela vinda do Reino de Deus, conforme haviam aprendido a orar com o seu mestre: "Venha o teu Reino e seja feita a tua vontade na Terra como é no céu."

Quando o reino viria? Alguns judeus calculavam a data do fim da história como a conhecemos usando as profecias de outro documento bíblico do gênero apocalíptico, o livro de Daniel e suas setenta semanas -- isso não é novidade dos evangélicos atuais. Segundo Jesus de Nazaré, porém, alguns daqueles que estavam ouvindo a sua pregação não morreriam sem antes verem o reino de Deus se manifestando (Marcos 9:1). Para ele, aquela geração não passaria antes que todo o abalo cósmico esperado para antes do fim acontecesse (Marcos 13:30).