Deveria ser óbvio o fato de que, pela natureza das coisas descritas nesse texto, nenhuma das histórias de Gênesis 1-11 pode ser produto da memória humana, e nem, em qualquer sentido moderno da expressão, relatos científicos da origem e natureza do mundo físico. O homem bíblico, apesar de suas inquestionáveis investiduras intelectuais e espirituais, não baseou suas visões do universo e suas leis no uso crítico de dados empíricos. Ele ainda não havia descoberto os princípios e os métodos da investigação disciplinada, da observação crítica ou da experimentação analítica. Em vez disso, seu pensamento era imaginativo e suas expressões de pensamento eram concretas, pictóricas, emocionais e poéticas. Portanto, é um exercício ingênuo e fútil tentar reconciliar os relatos bíblicos da criação com os achados da ciência moderna. Qualquer correspondência que possa ser descoberta ou engenhosamente estabelecida entre os dois certamente deve ser apenas mera coincidência. Ainda mais sério do que o inerente equívoco fundamental a respeito da psicologia do homem bíblico é o efeito prejudicial sobre o entendimento da própria Bíblia. (Nahum M. Sarna, Understanding Genesis).
Afirmar que Gênesis 1 não é ciência não significa, necessariamente, afirmar que o método científico é absoluto ou que a ciência propõe verdades ontológicos absolutas; significa, a meu ver, simplesmente e somente dizer que o autor desse texto em específico não conhecia o método científico e não utilizou essa linguagem para escrever. Por consequência, também significa que a sua cosmologia não era a mesma que a nossa, e ele tinha uma concepção sobre o formato e função do cosmos que é diferente daquela que temos hoje -- a não ser que você seja um desses terraplanistas que usam chapéu de alumínio. Sim. Para quem ainda não se deu conta: Gênesis 1 descreve a criação de um disco de terra coberto por uma cúpula sólida (chamada firmamento) e rodeado de água por todos os lados, inclusive por cima. Você já parou para se perguntar o que significa separar as águas que estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento (Gn 1:6-7)?
A cosmologia do autor de Gênesis (e de virtualmente todos os autores antigos que escreveram antes da revolução copernicana, bíblicos ou não) via o universo de forma diferente da que vemos hoje, e um dos aspectos dessa cosmologia era acreditar que a porção seca de terra que surgiu no meio do caos aquático primordial não tinha a forma de um globo. Esses autores antigos não tinham noção do que era um planeta. A sua visão de como o universo funcionava e do que se constituia era totalmente diferente da nossa, e essa cosmologia está refletida em vários textos biblicos como Gênesis 1; é essa cosmologia antiga que está por trás de como os autores bíblicos entendiam o universo, de como interpretavam o mundo ao seu redor.
A ideia de que a ciência deve se conformar com a Bíblia nos leva, no final das contas, a espremer Bíblia dentro da forma da ciência. Em outras palavras, acabamos pressupondo que a ciência ratificará o que a Bíblia diz sobre o cosmos, e isso, por sua vez, nos faz ler o texto de forma enviesada para tentar demonstrar que a ciência comprovou a Bíblia. Isso é condicionar a Bíblia à ciência e não deixá-la falar por si só. Acabamos fazendo eisegese. Quando abandonamos o pressuposto de que a Bíblia fala com uma linguagem científica moderna, deixamos que ela fale com a sua própria linguagem e conseguimos entender o texto em seus próprios termos.