Eu já escrevi alguma coisa neste blog a respeito da importância de entender o apocalipticismo para qualquer estudante do Novo Testamento. Sem a compreensão desse contexto de pensamento judaico do segundo templo, é virtualmente impossível decifrar exatamente o que os autores queriam dizer e o que Jesus e seus discípulos, incluindo os primeiros cristãos e Paulo, pensavam.
Um dos aspectos desse contexto é a pregação escatológica de Jesus. Jesus de Nazaré era um judeu apocaliptico, e foi influenciado, assim como também influenciou e ajudou a formar, essa corrente de pensamento do judaísmo da época. Isso pode ser visto nas características de sua pregação, que está preservada na tradição sinótica.
Para nos explicar esse aspecto da pregação de Jesus de Nazaré, não existe ninguém melhor do que o mestre da exegese e estudo do Novo Testamento do século XX, Rudolf Bultmann. O texto a seguir foi retirado da sua Teologia do Novo Testamento, publicada no Brasil pela editora Academia Cristã, em 2008, e encontra-se nas páginas 41 e 42.
A Pregação Escatológica de Jesus - Por Rudolf Bultmann
Com essa pregação Jesus se encontra no contexto histórico da expectativa judaica do fim e do futuro. E está claro que o que a determina não é a imagem da esperança nacionalista, ainda viva em determinados círculos do povo judeu, que imagina o tempo da salvação estabelecido por Deus com o restabelecimento do antigo reino davídico, transfigurado à luz de um ideal. Nenhuma palavra de Jesus fala do messias-rei, que esmagará os inimigos do povo; nenhuma palavra sobre o domínio do povo de Israel sobre a terra, da reunião das doze tribos ou dafelicidade no país rico, pleno de paz. Pelo contrário, a pregação de Jesus está ligada à esperança de outros círculos, testemunhada sobre tudo pela literatura apocalíptica, uma esperança que não espera a salvação de uma maravilhosa mudança das condições históricas, políticas e sociais, e, sim, de uma catástrofe cósmica, que põe termo a todas as condições do atual curso do mundo. O pressuposto dessa esperança é a concepção dualista-pessimista da corrupção satânica da estrutura do mundo como um todo; e essa ideia encontra sua manifestação na doutrina específica dos dois éones, nos quais está dividido o curso do mundo: o velho éon está prestes a acabar e em meio a terror e sofrimento irromperá o novo. O velho curso do mundo com seus períodos foi determinado por Deus e, quando chegar o dia por ele estabelecido, será realizado o julgamento do mundo por ele ou por seu representante, o "Filho do homem", que vem nas nuvens do céu; os mortos ressuscitarão, e ações tanto boas quanto más receberão sua recompensa. A salvação dos justos, porém, não consistirá em bem-estar e glória nacionalistas, e, sim, numa maravilhosa vida paradisíaca. É no contexto dessas expectativas que se situa a pregação de Jesus. Falta-lhe, todavia, toda a erudita e fantástica especulação dos apocalípticos. Jesus não olha para trás, como aqueles, para as eras mundiais já decorridas, e não faz cálculos sobre quando virá o fim; ele não ordena que se fique à espreita de sinais na natureza e no mundo dos povos, por meio dos quais se pudesse reconhecer a proximidade do fim. Ele renuncia a toda tentativa de pintar o juízo, a ressurreição dos mortos e a glória vindoura em detalhes. Tudo é tragado pelo único pensamento de que então Deus reinará; e somente alguns traços isolados da imagem apocalíptica futura se reencontram nele.
Fica claro, porém, que Jesus tem a seguinte certeza: o presente éon chegou ao fim. O resumo de sua pregação na palavra cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo corresponde aos fatos. Jesus está convencido de que o atual curso do mundo está sob o domínio de Satanás e seus demônios, cujo tempo agora passou (Lc 10.18). Ele espera a vinda do "Filho do homem" como juiz e salvador (Mc 8.38; Mt 24.27 par., 37 par., 44 par.) Ele espera a ressurreição dos mortos (Mc 12.18-27) e o juízo (Lc 11.3s. par., etc.), compartilha a ideia do inferno de fogo, no qual são lançados os condenados (Mc 9.43-48; Mt 10.28). Para referir-se à bem-aventurança dos justos usa a simples designação vida (Mc 9.43, 45, etc.). Ele fala naturalmente da ceia celestial, em que se reclinarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó (Mt 8.11), ou ainda da esperança de beber novamente o vinho no reino de Deus (Mc14.25); mas ele também diz: "Quando ressuscitarem dos mortos, não pedirão em casamento nem serão pedidos em casamento, e, sim, serão como os anjos no céu" (Mc 12.25).
Assim, Jesus de fato assume a imagem apocalíptica do futuro, mas numa forma bastante reduzida. O novo e próprio, porém, é a certeza com que afirma: "O tempo chegou! O reino de Deus está irrompendo! O fim está aí!"