03/08/2020

Teologia não é história

Como todo jovem evangélico aficcionado por Bíblia, eu comecei meus estudos teológicos com a sistemática, e passei muitos anos pensando na Bíblia com o pressuposto da sistematização de seus ensinos, isto é, acreditando que os livros que compõem a Bíblia devem ser analisados como um todo coerente e sem contradições que é completo em si mesmo, onde cada texto pode e deve ser explicado à luz dos outros.

A minha intenção por trás de toda a incessante leitura da teologia sistemática sempre foi entender aquilo que os autores bíblicos queriam dizer, e isso, com o passar do tempo, me fez deixar a sistemática de lado porque percebi que, com ela, eu não estava entendendo o que os autores bíblicos pensavam, mas aquilo que os teólogos sistemáticos e suas diversas correntes pensavam. Com essa percepção, acabei dando mais atenção à exegese e história, que são a base para a sistemática, mas que, a meu ver, são mais seguras quando o assunto é entender aquilo que os autores bíblicos disseram.

Teologia não é história, e as duas não podem ser misturadas ou confundidas. O que percebi é que, em seu esforço para compreender o todo do pensamento de Deus na Escritura Sagrada, os teólogos sistemáticos não conseguem separar bem as coisas e acham que a teologia de sua tradição é a mesma teologia de Jesus e os apóstolos. Em outras palavras, eles cometem anacronismo quando não entendem que a sua teologia é desenvolvimento e não representa exatamente aquilo que os escritores bíblicos pensavam. Isso acaba causando confusão de método na leitura e interpretação dos textos, pois a sistemática pretende fazer algo com a Bíblia que a própria Bíblia não pretende fazer com ela mesma, isto é, a teologia sistemática acaba unindo a diversidade da Bíblia de uma maneira forçada, o que gera tradições, mas acaba traindo o sentido original dos textos. Não digo que isso não é legítimo, nem que está errado, só não acho que seja o caminho para entender os textos.

O fazer teologia em cima de textos antigos, por mais que eles falem de teologia, é algo diferente de apenas tentar entender esses textos por aquilo que eles são em si mesmos. Apesar de ser importante e válida, a sistemática não se preocupa essencialmente em explicar a intenção dos autores, mas com a criação de um sistema de pensamento bíblico global que não parece ter sido a intenção dos autores. Além de gerar tradição, a sistemática é resultado de tradição: ela faz algo que não é simplesmente entender o texto, mas interpretá-lo dentro do desenvolvimento de pensamento teológico da igreja como um todo e de cada corrente específica. O problema que vejo nas sistemáticas é que os autores não foram suficientemente a fundo na base exegética para depois tentar desenvolver uma sistematização, e a maioria deles é inclinada a ler nos textos aquilo que a sua tradição diz. 

Um bom exemplo da confusão entre teologia e história é o debate sinergismo vs. monergismo e a interpretação da Carta de Tiago à luz das cartas de Paulo ou vice-versa. Tentando achar uma solução bíblica para questões modernas, o teólogo sistemático usa os textos biblicos para responder perguntas que nunca foram feitas pelos autores. Em sua ânsia para provar um ponto de sua tradição teológica, ele então coloca na cabeça dos autores pensamentos que eles nunca tiveram, simplesmente porque não conhece o contexto histórico da época e porque não fez uma exegese precisa. Com isso, dependendo de sua corrente teológica, o teólogo sistemático pensa que Paulo e Tiago eram monergistas ou sinergistas, sendo que isso nunca passou pela mente dos dois. Não que não ache que essas perguntas não podem ser feitas: elas podem e devem. Só não acho que Paulo ou Tiago as tenham feito, pois o que eles debatiam não era aquilo que Lutero debateu.

Minha pergunta seria: será que Paulo e Tiago estavam escrevendo em conjunto? Escreveram para serem lidos e sistematizados? Eu acredito que não, e não consigo mais ler a Bíblia assim, apesar de saber que é uma forma válida de fazê-lo. Essa leitura, no entanto, precisa ser feita de forma consciente: o teólogo sistemático deve entender seu papel e não misturar a sua sistematização com história. Uma coisa é ler a Bíblia com o pressuposto de que ela é a palavra de Deus e pode ser sistematizada, outra coisa é fazer exegese para entender o que cada texto significou para o autor na sua época e contexto. O meu grande problema com a sistemática é que ela confunde tradição com método histórico e coloca palavras na boca dos autores. O que notei é que se você faz a exegese corretamente, percebe que a sistemática não era a intenção dos autores.

A teologia sistemática é um tipo de filosofia; é desenvolvimento de pensamento em cima de textos que foram escritos sem a intenção de serem desenvolvidos. Visto que minha intenção sempre foi entender aquilo que os autores estavam dizendo, e não o que uma corrente de desenvolvimento teológico tem a dizer, acabei focando minha atenção no estudo da base exegética e histórica. Isso tem me trazido problemas de sistemática, mas ainda não me preocupei em resolvê-los.