27/07/2022

Do pó viemos e ao pó voltaremos: como partes da bíblia hebraica não contemplam a vida após a morte

Ultimamente, tenho trocado as leituras teológicas — exegéticas, para ser um pouco mais preciso para os chatinhos — por outros tipos de não ficção, com breves e tímidas incursões no mundo da literatura, aquela vasta biblioteca que não formaria nenhum burocrata da interpretação bíblica ou de qualquer outra área técnica fatiada da realidade do mundo. Uma dessas novas leituras tem sido sobre alimentação e a história dos alimentos, coisas como de onde vem aquilo que comemos, por que chegou da forma que chegou e qual foi o processo histórico que desencadeou na indústria alimentar de hoje. Acontece que o mundo ocidental foi erguido sobre uma fundação bíblica que não nos larga de jeito nenhum, e mesmo tentando ficar longe — pelo menos por um tempinho — das leituras sobre a bíblia, o assunto me persegue até em parágrafos que falam sobre o processo bioquímico que acontece no solo para fazer com que o crescimento de uma planta se torne algo viável. Eis o trecho:

O húmus é o que, numa determinada quantidade de solo, lhe dá a tonalidade escura e o cheiro que lhe são característicos. É difícil dizer o que o húmus é exatamente, já que é muitas coisas. O húmus é o que resta de matéria orgânica depois de ter sido quebrada por bilhões de organismos grandes e pequenos que habitam qualquer quantidade mínima de terra – as bactérias, bacteriófagos, fungos e vermes responsáveis pela sua decomposição. (O autor do salmo que descreveu a vida como a passagem “do pó ao pó” teria sido mais preciso se tivesse dito “do húmus ao húmus”). (Michael Pollan, O Dilema do Onívoro, p. 206).

A citação bíblica me trouxe à tona um assunto sobre o qual eu já havia ensaiado escrever, mas que, por um motivo preguiçoso qualquer, acabei jogando debaixo do tapete mental para onde vão todas as infinitas inspirações que nos surgem durante os espasmos de criatividade noturna: a ideia de que, para algumas tradições da bíblia hebraica, a vida após a morte nunca existiu, expressada de maneira gritante na frase “do pó viestes e ao pó voltarás”.

A ideia do homem sendo criado do barro/argila (ou da terra/pó) não é originalmente judaica. Outras tradições culturais mais antigas do Oriente Próximo, da Babilônia e até da Grécia também imaginavam a criação do ser humano através da terra. O deus egípcio Chnum era ilustrado formando o homem no disco de um oleiro; na cultura babilônica, o homem fora formado de uma mistura de terra com o sangue do deus Marduk. Essa ideia pervade todo o Antigo Testamento, e é encontrada em várias passagens. Uma delas, Gênesis 2:7, demonstra a crença judaica acerca da composição física do homem:

Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.

Se o leitor se despir de todo o seu conhecimento científico que vem sendo desenvolvido pela humanidade nos últimos 300 anos, esquecendo tudo o que sabe (ou acredita) sobre o que constitui o corpo humano, a sua origem e destino, não será difícil imaginar como os povos antigos chegaram à ideia de que o homem veio da terra. Coloque-se no lugar de uma pessoa que viveu há 6 mil anos. Como ela imaginaria de onde o corpo humano veio? A intuição levaria a um caminho óbvio, simplesmente fruto da observação: se, quando morre, o corpo do ser humano se torna pó, desaparece, se dissolve, é engolido pela terra, ele só pode ter vindo do mesmo lugar. Lembre-se de que estamos falando de um conhecimento humano antigo, que não tinha nenhuma ideia do que seriam células, bactérias, ou qualquer coisa que só pode ser percebida com a ajuda de um microscópio. O conhecimento era observacional, resultado de dedução intuitiva do que acontece no mundo.

Para os autores dessa tradição que pervade o Antigo Testamento, o ser humano é composto de um corpo físico que foi feito com terra (porque volta a ser terra quando morre) e algo que animou, fez viver, deu vida a esse corpo que, sem isso, seria apenas barro: um sopro vindo de Deus. Tendo constatado de onde vem a parte física do homem, a tradição volta-se para explicar o que torna o homem vivo. O sopro de Deus é o que vivifica o corpo de barro, quase como a energia elétrica foi usada para fazer o Frankenstein de Mary Shelley vir à vida — às vezes, as minhas aventuras pelo mundo da literatura de ficção dão as caras timidamente.

Nas línguas em que a bíblia foi escrita, as palavras traduzidas para sopro, vento, ar, respiração, alma e espírito se confundem, são todas iguais ou muito parecidas, o que deixa transparecer que, na mentalidade antiga, tudo isso era a mesma coisa, era algo muito parecido ou tinha uma origem comum — e também deixa claro que a origem etimológica dessas palavras nos dá uma pista de que, muito antigamente, significavam a mesma coisa. Aqui, mais uma vez, o conhecimento dedutivo observacional chegou a conclusões óbvias: quando alguém morre, o que se observa é que o corpo deixa de respirar. Não é difícil imaginarmos que a mentalidade antiga, tendo constatado esse fato, pensaria em retrospectiva que a respiração é algo material que foi colocada dentro do corpo de barro e sai dele quando ele morre. Se sai dele, é porque foi colocada lá, e só poderia ter sido colocada por Deus quando este criou o ser humano. Sem a respiração, sem a vida, sem o sopro divino que o vivifica, o corpo volta a sua origem e o homem deixa de existir. Essa ideia também pervade várias passagens do Antigo Testamento.

Como as águas do lago se evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono. (Jó 14:11-12)

Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação. Sai-lhes o espírito [respiração, fôlego], e eles tornam ao pó; nesse mesmo dia, perecem todos os seus desígnios. (Salmos 146:3-4)

Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. (Eclesiastes 3:19-20)

Antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito [respiração, fôlego] volte a Deus, que o deu. (Eclesiastes 12:6,7)

Sou contado com os que baixam à cova; sou como um homem sem força, atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras; são desamparados de tuas mãos. (Salmos 88:4-5)

Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar? Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos? Acaso, nas trevas se manifestam as tuas maravilhas? E a tua justiça, na terra do esquecimento? (Salmos 88:10-12)

Se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito [espírito, sopro, vento], eles são criados, e, assim, renovas a face da terra. (Salmos 104:29-30)

Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens. (Salmos 90:3)

Não fossem os séculos de teologia, reinterpretação, apropriação e má exegese cristã — para não mencionar os rabinos, que, apesar de um pouco melhores, sempre tiveram seus preconceitos interpretativos — impostas sobre a bíblia de forma até apologética, textos como o de Gênesis 3:19 seriam lidos direta e claramente pelo que significam numa primeira impressão: o autor está dizendo que o homem volta de onde veio e deixa de existir.

No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.

Para o escritor dessa tradição registrada em Gênesis, quando morre, o corpo humano retorna à terra de onde veio e a sua respiração volta para Deus. Posteriormente, com o desenvolvimento da teologia, do pensamento do que acontece com o homem depois que ele morre, imaginou-se que essa respiração era algo a mais, e a ideia da alma (ou espírito, palavras que se confundem nas línguas originais, lembra?) como aquilo que permanece da consciência humana após a morte surgiu no imaginário teológico judaico, sendo herdada — e muito mais desenvolvida — pelo cristianismo.

Apesar de não conhecerem o húmus através uma perspectiva científica, sabendo dos processos químicos e biológicos que acontecem com a matéria orgânica que cai na terra — incluindo um cadáver —, a intuição dos autores da tradição que analisamos aqui não os traiu completamente. Embora a linguagem mitológica usada por eles não estivesse imaginando tanto um fenômeno químico quanto mágico — lembre-se de que a ideia de átomos e elementos da tabela periódica jamais passou pelo imaginário das sociedades pré-científicas —, no fim das contas, o mesmo carbono que compõe o corpo humano é aquele que está em toda a matéria orgânica deste planeta, incluindo a terra: como disse Carl Sagan — o Carlos que não era tão idiota quanto o Marques (quem lê entenda) —, tudo é poeira de estrelas. Se não fomos formados da terra num passe de mágica, como acreditavam os autores das tradições da bíblia hebraica, com certeza nos transformaremos nela se o curso da natureza não for impedido de alguma forma. Talvez devêssemos atualizar a linguagem bíblica — como tantos fazem sem nem perceber — e dizer “das estrelas ao húmus.”