Por que muitos americanos leem a Bíblia como um
Calendário Codificado da História do Mundo?
Por Jürgen Moltmann
Um voo regular de um Boeing 747 sobre o
Atlântico está a caminho de Londres. O avião está completamente cheio. De repente,
a aeromoça vai até o capitão na cabine. Com os joelhos tremendo e a voz
falha, ela anuncia: dezenas de passageiros desapareceram. Seus sapatos, meias
e roupas ficaram para trás. O capitão olha em volta e encontra tudo em ordem na
primeira classe, enquanto uma mulher da segunda classe chora por seu marido
desaparecido. Ele chama o aeroporto de Heathrow, mas não pode pousar lá.
Incontáveis aeronaves caíram porque pilotos desapareceram de repente e
ninguém mais tinha o controle do tráfego aéreo. (2000, Tyndale House
Publishers, Inc/www.leftbehind.com)
O piloto voa de volta para Chicago. O mesmo caos
prevalece lá, mas ele recebe um espaço para pousar. A catástrofe é perfeita:
aviões caídos, carros colididos, trens descarrilhados e milhares de mortos. Vemos
imagens de salas de parto onde bebês desapareceram de repente do ventre de
mulheres grávidas, o noivo que estava no altar perdeu sua noiva, e classes
inteiras de uma escola nas Filipinas se dissolvem em nada. Quando o capitão
voltou para casa, sua esposa também havia desaparecido.
O que aconteceu? Para o capitão, a questão com Deus
estava, de alguma forma, bem, mas sua esposa frequentava regularmente estudos
bíblicos e pertencia a um grupo de cristãos que eram nascidos de novo. Isso lhe
deu uma pista. O seu pastor lhe explicou: os últimos dias começaram. Como a
Bíblia profetizou, os crentes verdadeiros serão "arrebatados" nas nuvens
com Cristo, enquanto os horrores do fim do mundo virão sobre os incrédulos
deixados para trás. Os últimos dias começam com o grande arrebatamento dos
crentes, e os incrédulos participam, durante sete anos, da grande tribulação,
com pragas, terremotos, tornados, enchentes e o terror do Anticristo no “sinal
da besta”. No entanto, Cristo voltará, matará o Anticristo e estabelecerá o seu
Reino de mil anos, onde os crentes governarão com ele enquanto os incrédulos
são destruídos.
É Marcada a Hora
Obviamente, isso é uma ficção, mas os leitores
são pessoas reais. Desde 1995, a série Left
Behind [Deixados Para Trás] (também transformada em filme), dos professores
de escola dominical Tim LaHaye e Jerry Jenkins, que começa com essa história,
apareceu nos Estados Unidos na forma de romance, com mais de 40 milhões de
cópias vendidas. Para o volume dez, "Os Remanescentes", houveram 2,5
milhões cópias compradas antecipadamente este ano [N.T.: 2002]. Somente metade dos leitores são cristãos evangélicos.
As vendas subiram 60 por cento após os ataques de 11 de setembro. Pessoas
seculares também perguntam: o fim do mundo está chegando? Muitos amam a
desgraça e a melancolia no mundo dos detetives e da ficção científica. "Beam me up, Scotty"* é, sem dúvida,
a maneira mais aceita de lidar com o mal. [*N.T.:
Expressão idiomática da língua inglesa retirada da série Star Trek e usada para
dizer que uma pessoa toparia qualquer coisa que lhe fosse oferecida.]
Em 1970, aconteceu um apocalipse fictício semelhante
no livro de Hal Lindsay, The Late Great
Planet Earth [A Agonia do Planeta Terra], que também obteve edições na casa
dos milhões. Naquela época, o Armagedom, a batalha final entre Deus e o diabo,
Cristo e o Anticristo, o bem aqui e o reino do mal lá naquele vale, foram
salientados. Com bombas nucleares ou de hidrogênio, o Exército Vermelho da
União Soviética anticristã seria destruído primeiro e, depois, seria a vez do
exército do Povo China que não tinha Deus. Lindsay serviu Ronald Reagan como conselheiro sobre o Oriente Médio e Israel, e convenceu o presidente a respeito
de um inevitável "Armagedom em nossa geração". Felizmente, Michail
Gorbatchev veio com sua política de paz. Parece que o cenário apocalíptico
sempre será atraente, visto que as pessoas seculares não entendem mais o mundo
depois do terror de 11 de setembro. De acordo com a Time/CNN, 59% dos
americanos temem que as profecias apocalípticas da Bíblia estejam se tornando
realidade, e 25% até mesmo acredita que a Bíblia profetizou o ataque
terrorista ocorrido em Nova Iorque.
Qual é a origem do típico encanto americano com
o fim do mundo? Isso está fundamentado teologicamente desde 1860 no dispensacionalismo do evangelista inglês John Nelson Darby, e se tornou popular
através da Bíblia de Referência Scofield, de 1909. Aqui, a Bíblia não é lida
como um testemunho de fé, mas como um calendário divino codificado para a história
do mundo. O número 666, por exemplo, se torna a chave da história do mundo.
Essa leitura da Bíblia é chamada de "Biblicismo", uma conquista do
início da era do Iluminismo. Assim como Newton desmistificou a natureza através
da descoberta de leis naturais, os primeiros "intérpretes bíblicos
proféticos" queriam enxergar através dos mistérios da história, através do
conhecimento do fim planejado da história. A ideia básica é simples: assim como
Deus criou o mundo em sete dias, a história do mundo, chamada de dispensação,
terá sete eras. Com a aparição de Cristo, entramos na sexta era, a era cristã.
Hoje, a sétima e última era do mundo se aproxima. A profecia bíblica precisa
ser profecia histórica. A profecia sobre os últimos dias está no Apocalipse.
Portanto, o Apocalipse de João é o livro mais importante da Bíblia.
Também existem interpretações do Apocalipse
feitas por Sir Isaac Newton. O seu mundo-máquina era, em última instância, um
mundo-relógio. Através do estado ou condição do mundo, devemos entender qual é
a hora que está sendo marcada. Na era de euforia geral com o progresso, a
perspectiva apocalíptica para os iminentes horrores do fim dos tempos ganhou
importância na reação fundamentalista contra o modernismo e o liberalismo do
mundo protestante. Essa perspectiva advém da mesma raiz da era do Iluminismo, a
qual procurou transformar a fé em conhecimento.
Arrebatamento Piedoso
Esse cenário do fim dos tempos não se origina
com Cristo, já que "a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os
anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai" (Marcos 13:32). O “arrebatamento”
dos crentes, a respeito do qual Paulo fala em 1 Tessalonicenses 4:17, não é um
escapismo para zombar daqueles deixados para trás, mas sim uma imagem na qual
os habitantes de uma cidade vão encontrar seu rei para encaminharem-no até a
sua cidade. Nada aponta para os horrores daqueles que ficaram para trás. O
futuro de Cristo acontece na terra, não no céu. Assim, seria melhor se os
crentes permanecessem fiéis para com a terra, mesmo nas catástrofes, e não
fugissem para o mundo vindouro. Em contraste, o sonho piedoso do arrebatamento
contém uma resignação que abandona esta terra à destruição. Qualquer pessoa
que, em sua fé, "deixa os outros para trás", abandona-os. Isso não pode
ser uma bendita esperança ou uma expressão de amor. Um Deus que apenas aguarda
para "arrebatar" tripulantes cristãos de suas aeronaves para que o
avião caia e milhares de pessoas sejam mortas não pode ser um Deus no qual
alguém possa confiar. Na verdade, isso é o ídolo perverso de um desprezo
patológico contra o mundo.
Tais ideias sempre existiram em círculos
sectários, mas transformaram-se num fenômeno de massas na América
contemporânea. Mais e mais americanos leem e falam sobre o fim do mundo, ao
mesmo tempo em que esse assunto deixa o europeu bastante frio. Por quê? Uma
terra que justifica seu destino desde o princípio na providência divina tem uma
fraqueza natural pelos profetas. Uma nação que queria construir um “novo mundo”
contra um “velho mundo” está inclinada a pensar em categorias de batalha
dualistas: aqui o bem, lá o mal; e “quem não é por nós é contra nós”. No século
XIX, a crença no progresso mobilizou a ascensão da América. Entretanto, três
movimentos apocalípticos dos “últimos dias” levantaram-se também: as Testemunhas
de Jeová, os Mórmons e os Adventistas. Hoje, muitos estão cambaleando entre uma
consciência de missão messiânica para o império americano e os medos do fim do
mundo. Esses são os dois lados de uma mesma moeda chamada egomania. Em
contraste, a fé cristã é humilde, duradoura e uma constante paixão pela vida.
Traduzido por Renan Rovaris.
Publicado originalmente por Portland IMC.