A Inglaterra que deu à luz os puritanos passava por embates políticos sérios. Os puritanos queriam reformar a igreja do seu país, mas isso, naquele tempo, também significava reformar a ordem social. Uma característica comum do movimento puritano do século XVII foi a ideia de traçar uma linha divisória entre os cristãos nominais e os cristãos de verdade. Para os puritanos, essa pressuposição de separação entre santos e incrédulos mesmo dentro do espectro mais específico do cristianismo protestante legitimava o movimento na busca para implantar a teologia reformada na sociedade inglesa. Eles fizeram isso primeiramente pelo exemplo pessoal e, depois, através da luta política, o que, no final, gerou revolta social e acabou derrubando o governo puritano.
É inegável que existiram pontos positivos no movimento -- a busca por uma exegese mais precisa da Bíblia foi um deles --, e também temos algo a aprender com a introspecção da mentalidade puritana, tão bem exemplificada na obra e na vida de Baxter e Sibbes -- a teologia puritana é linda em muitos aspectos. Contudo, precisamos avaliar um movimento não apenas pelo que ele afirmou, mas também pelo que realizou e pelos resultados gerados por suas convicções. Existiram grandes problemas com os puritanos, e um deles é quase sempre negligenciado pelos admiradores desses homens: o controle social acarretado por essa visão sectária.
Quando os puritanos conquistaram o poder político depois de matar o rei Charles I, criminalizaram quem não pensava como eles. Não apenas obrigaram as pessoas a ver a igreja como eles viam, mas também impuseram regras de conduta a todos os cidadãos. Na Inglaterra puritana, o parlamento criou uma espécie de polícia civil que era encarregada de cuidar da vida privada das pessoas e punir quem se envolvia em atividades que eram consideradas pecaminosas pelos puritanos, como, por exemplo, praticar esportes no domingo ou apostar nos jogos de cartas. Fazendo isso, achavam que estavam cumprindo a vontade de Deus para a sociedade, o que pode ser exemplificado na crença de serem os responsáveis por trazer o reino milenar à Terra: eles acreditavam que a revolução puritana que ocorrera na Inglaterra com a decapitação do rei seria algo que traria o reino de mil anos do Apocalipse; muitos deles viam a Nova Inglaterra (EUA) como um tipo de Nova Jerusalém.
Ditar quem pode fazer o que na esfera privada é uma atitude temerária, e não está longe de um governo totalitário. No momento em que pessoas pensam que a sua versão de cristianismo é a única possível e, julgando-se autorizados pelo mandamento divino, buscam implementar o ideal do seu grupo na vida privada de terceiros; ou quando, em outras palavras, surge "a vontade férrea de impor seu próprio critério grupal de justiça acima de toda consideração pelos direitos dos outros"*, então "o universo real foi deixado para trás em troca de um 'contraverso'—um reino gnostizado de 'conspirologia'; e em troca daquilo que Eric Voegelin chamou de 'escatologia imanentizada': o momento quando grupos de homens possuídos de uma ideologia gnóstica tentam refazer o mundo para que ele se conforme às suas fantasias."**
Não deveria nos causar espanto, pois, o fato de que entre aqueles que buscam inspiração na história dos puritanos estão muitos que se julgam representantes da vontade de Deus na Terra e se veem no direito de controlar a vida particular dos seus concidadãos pois acreditam que a sociedade ideal deve ser constituída de cristãos que pensam exatamente como eles porque a sua teologia é sinônimo de cristianismo e todo o resto é heresia -- e talvez também estejam dispostos a arrogar ao Estado o poder de punir aquilo que consideram pecado.
* Olavo de Carvalho, Apoteose da Vigarice.
** James D. Heiser, “The American Empire Should Be Destroyed”: Aleksandr Dugin and the Perils of Immanentized Eschatology.
** James D. Heiser, “The American Empire Should Be Destroyed”: Aleksandr Dugin and the Perils of Immanentized Eschatology.