12/03/2021

O constrangimento do batismo de Jesus por João Batista para os primeiros cristãos

Uma das coisas mais seguras historicamente sobre Jesus é o fato de ele ter iniciado sua carreira pública em próxima conexão com João Batista, provavelmente como seu discípulo. Um outro fato histórico altamente provável, ligado ao primeiro, é que Jesus foi batizado por João.

Em seus dias, João Batista foi o líder de um movimento que esperava o julgamento final de Deus sobre o mundo e a restauração do povo de Israel a um papel central de domínio mundial em uma Terra renovada. O Batista tinha discípulos, e usava um ritual simbólico que trazia tons de purificação e demonstrava uma inclinação, por parte do batizado, para uma atitude de espera e preparação (um sinal de arrependimento) em vista desse julgamento.

O fato de Jesus ter sido batizado por João e de ter vindo do seu círculo de discípulos pode ter sido problemático para quem afirmava a exaltação de Jesus de Nazaré e sua óbvia atuação como messias judeu. Como o messias poderia ter sido batizado por outra pessoa, ainda mais com um ritual que demonstrava arrependimento? Seria aquele outro superior ao batizado? É bem possível que essas e outras perguntas pairassem sobre os primeiros discípulos de Jesus, e estes talvez não estiveram fora de disputas com os antigos discípulos de João sobre quem seria o maior.

Os relatos sobre o batismo de Jesus nos evangelhos deixam transparecer o incômodo dos primeiros cristãos com essas perguntas, e os escritores demonstram tradições que buscaram se desvencilhar de uma questão que, de forma crescente com o passar dos anos, precisava ser respondida à luz do significado de quem era Jesus para eles. Em outras palavras, os evangelistas tentam explicar o assunto embaraçoso de como Jesus poderia ter sido batizado por João, mesmo sendo maior que ele.

O primeiro evangelho a ser escrito (Marcos) fala do batismo de Jesus de forma rápida, e não tenta explicar como foi possível o messias ter sido batizado por João, apesar de Marcos apresentar, logo no início de sua narrativa, uma tradição que coloca João Batista como percursor de Jesus, tradição esta que é comum a todos os evangelhos:

"Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galileia e por João foi batizado no rio Jordão." (Marcos 1:9).

É difícil determinar, entre Mateus e Lucas, qual foi escrito primeiro. Há divergências entre os estudiosos sobre esse assunto, mas é senso comum no mundo acadêmico o fato de que Marcos veio primeiro e foi usado como fonte pelos outros dois. Aqui, é interessante notar como Mateus e Lucas editam a tradição sobre o batismo de Jesus.

"Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galileia para o Jordão, a fim de que João o batizasse. Ele, porém, o dissuadia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por enquanto, porque, assim, nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o admitiu." (Mateus 3:13-15).

A intenção do escritor de Mateus é bem clara: ele modifica o texto de Marcos — ou usa uma outra tradição conhecida de sua comunidade — para explicar o embaraço que existe na ideia de Jesus ter sido batizado. O evangelista apresenta um João submisso e pronto a, ele mesmo, ser batizado por Jesus! E só o batiza porque lhe foi permitido pelo mestre.

No caso de Lucas, apesar de não termos um João que se recusa a batizar Jesus, nos é apresentada uma história do nascimento do próprio Batista, onde, ainda quando não nascido, ele reconhece a superioridade de Jesus.

"Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; (...) logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim." (Lucas 1:41-44).

"E aconteceu que, ao ser todo o povo batizado, também o foi Jesus; e, estando ele a orar, o céu se abriu..." (Lucas 3:21).

No caso do Evangelho Segundo João, escrito por último, o relato do batismo de Jesus é completamente omitido, e o escritor nos apresenta a história pela metade: o Batista dá testemunho sobre Jesus repetidas vezes e, numa alusão à cena do batismo, onde o espírito desce sobre Jesus, apenas dá a entender que ele é superior:

"Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo." (João 1:33).

Esse crescente de modificações na forma de falar sobre o batismo de Jesus por João — de precursor de Jesus (Marcos), para permissão de batismo (Mateus), reconhecimento ainda quando no ventre (Lucas), até omissão do batismo em si (João) — nos mostra que a tradição de Jesus ser batizado precisou ser explicada. Por que isso aconteceu? Como interpretar historicamente essa modificação na tradição e fazer jus ao fato de que os evangelistas editaram a história para colocar Jesus em evidência e mostrar que o batismo tinha um motivo específico diferente dos outros? Por que os evangelistas não admitiram que o batismo aconteceu como os outros que João realizou? 

Parece-me razoável afirmar que essa tradição tenha surgido do fato constrangedor de que Jesus havia sido batizado e de que, portanto, João era maior do que ele ou algo do tipo — ou talvez porque um batismo de arrependimento teria sido muito estranho para o messias. O fato de o batismo de Jesus ter que ser explicado, e o fato de que é preciso enfatizar tanto que o Batista era menor do que Jesus, sugere que houve um problema com isso na comunidade primitiva, principalmente se levarmos em conta que o Batista ainda tinha discípulos mesmo depois de sua morte e início do ministério de Jesus (veja Atos 18). 

A tradição sobre o batismo de Jesus por João estava muito bem estabelecida na comunidade primitiva. Todos sabiam que Jesus havia vindo do círculo de João. A ligação não poderia ser simplesmente ignorada: ela precisou ser explicada. A resposta foi evasiva (Mateus) ou a questão foi simplesmente varrida para baixo do tapete (João), tudo isso com uma ênfase crescente de que João era menor que Jesus e falou isso durante o seu ministério (note que o último evangelista já mostra um João negando peremptoriamente que é o messias).

Talvez tenha ficado estranho, para os primeiros discípulos de Jesus — ou para pelo menos alguns círculos da seita dos nazarenos —, ter que admitir que o seu mestre havia sido discípulo de alguém, ainda mais quando esse mestre foi reconhecido como o próprio logos divino. Como o messias poderia ter sido batizado para o arrependimento de pecados? Por isso, eles precisaram mostrar que João era menor que Jesus ("convém que ele cresça e que eu diminua" João 3:30) e que havia algo diferente no batismo do messias.