Como "pois estavam com medo" se tornou o final de Marcos
Na maioria das traduções modernas, o texto de Marcos 16:9-20 é de alguma maneira separado do resto do evangelho. Isto é uma indicação de que estes versos não existem em alguns manuscritos e que o consenso entre os estudiosos é que eles foram adicionados posteriormente. Por este motivo, o mais antigo dos evangelhos surpreendentemente não termina com aparições do Jesus ressuscitado, mas com as mulheres mantendo silêncio sobre a tumba vazia, "pois estavam com medo." Como este consenso acadêmico surgiu?
Erasmo e Jerônimo
Em 1516, Erasmo fornece a primeira edição impressa do Novo Testamento Grego, com uma tradução em latim e Annotationes (notas). Nas notas de Marcos 16, Erasmo menciona uma intrigante observação feita pelo Pai da Igreja Jerônimo (c. 350-420 d.C.). Jerônimo diz em sua carta para Hebya que na maioria dos manuscritos de Marcos, o final (16:9-20) está faltando. Ele afirma que ignorar o final de Marcos resolve o problema da possível contradição entre Marcos 16:9 e Mateus 28:1 (quando Jesus ressuscitou?). A "solução" de Jerônimo leva Erasmo a pensar que nos dias do Pai da Igreja, o final de Marcos deve ter tido menos autoridade do que o resto do evangelho.
Sobre a autenticidade dos versos 9-20, Erasmo mantém silêncio. Mas obviamente, ele os coloca na sua edição, porque até então todos os manuscritos gregos conhecidos -"pelo menos eu tenho visto"- terminam com o verso 20. Em outras importantes edições do século XVI, como Stucina cum suis (Poliglota Complutense), Stephanus e Beza, não há menção de um manuscrito que termine no verso 8.
Textus Receptus
No final do século XVII, o texto do Novo Testamento Grego ganha uma forma fixa. Todas as edições que aparecem no mercado oferecem mais ou menos o mesmo texto, o qual é inspirado no texto de Erasmo. Este texto, chamado Textus Receptus, (TR) obviamente possui o final de Marcos sem reservas. Traduções para o vernáculo, como a King James (1611) e a King James Version (1637), não incomodam os leitores com notas de rodapé em Marcos 16, como estas encontradas em traduções modernas.
Mill
Enquanto a autoridade da palavra de Deus começava a se irradiar cada vez mais no Textus Receptus, na segunda metade do século XVII surge na Inglaterra um novo "recomeço" no campo da Crítica Textual do Novo Testamento. Muitos novos manuscritos "colados" (comparados com um texto padrão) aparecem, criando assim muitas novas variedades de texto. A paixão britânica por estas comparações culmina na edição monumental de John Mill (1707). O aparato crítico de mais de mil páginas do Novum Testamentum contém cerca de trinta mil diferenças com o Textus Receptus. Assim, ele descobre que Jerônimo não é o único que fala sobre manuscritos sem o final de Marcos. Ele encontra a mesma informação em um sermão que ele conhecia como sendo de Gregório de Nissa, mas que hoje é atribuído a Severus de Antioquia (465-534 d.C.). Também em Euthymius (século XII ou XIII) e em diferentes catenae, comentários bíblicos medievais em forma de extratos de Pais da Igreja, os quais apontam a mesma questão de crítica textual. Por outro lado, disse Mill, a passagem está em todos os manuscritos, sejam gregos ou traduções antigas. Além disso, ele lista um número de Pais de Igreja que "reconheceriam" a passagem. Para alguns deles, nós sabemos hoje, pode ser determinado cada caso em que citam o final de Marcos. Isto é extremamente interessante no caso de Irineu. Este, em sua obra Contra Heresias, cita uma passagem do final de Marcos que nós numeramos como 16:19. Isso significa que o final de Marcos, naquele tempo, estava em igual circulação. Mill acredita que o Evangelho de Marcos terminou com os versos 9-20. Ele suspeita que posteriormente este final foi omitido em uma parte da tradição porque foi percebido como contraditório em relação a outros evangelhos (e.g. Marcos 16:9 versus Mateus 28:1). A edição de Mill explode como uma bomba e vai marcar o início do fim para o Textus Receptus. Mas como os manuscritos permanecem em silêncio, o final de Marcos não está em uma zona de perigo. Na próxima maior edição de 1734, Bengel defendeu a autenticidade destes versos.
Tradição textual e Crítica Textual
O Novo Testamento, como todos os outros textos da antiguidade, foi transmitido através de cópias produzidas à mão. Por causa de adições deliberadas, exclusão ou correção, mas na maioria das vezes por simples erros, manuscritos contendo o mesmo texto apresentam mutuamente vários tipos de diferenças.Tanto na antiguidade, quanto na Idade Média, as pessoas estavam conscientes disso, e alguns acadêmicos tentaram restaurar o texto comparando manuscritos. Esta atividade de examinar os manuscritos com o objetivo de restaurar o texto original é chamada de Crítica Textual. "Crítica" aqui não quer dizer que algo esteja sendo demonstrado contra o texto. Crítica significa uma distinção entre textos primários e secundários. A partir do século XV, quando os livros foram impressos pela primeira vez de forma mecânica, a publicação de textos antigos tem sido de grande importância para o trabalho da Crítica Textual. A versão impressa de um texto antigo de fato funcionava como o texto padrão no meio acadêmico. Portanto, se possível, os acadêmicos queriam edições com o mínimo de "corrupções". Críticos textuais estudavam o Novo Testamento ao lado de manuscritos gregos, manuscritos de antigas versões (como latim, siríaco e copta) e citações dos Pais da Igreja.
Simon e Wettstein
Em 1751-1752, na cidade de Amsterdam, o Novum Testamentum aparece novamente, desta vez como o trabalho da vida de Johann Jakob Wettstein, professor do Seminário Arminiano da cidade. Wettstein colou dezenas de manuscritos gregos, incluindo alguns maiúsculos bem antigos, como o Codex Ephraemi Rescriptus, datado do século V. Mas ele encontra em todos os lugares Marcos 16:9-20. Entretanto, ele descobriu que em alguns manuscritos gregos estes versos são precedidos por avisos de que o que se segue não existe em todos os manuscritos. Wettstein também descobriu esta passagem separada do resto do evangelho em uma tradução armênia. Wettstein também fornece uma referência interessante a Hesychius de Jerusalém (morto por volta do ano 450 d.C.). Em sua Coleção de Problemas e Soluções, na questão 52, Hesychius afirma sem rodeios que Marcos finalizou o seu evangelho com o encontro entre o anjo e as mulheres (16:1-8).
Westtein também nota que existe ainda algo estranho acontecendo com as chamadas Seções de Eusébio. O famoso Pai da Igreja Eusébio de Cesareia (cerca de 260-350 d.C.) dividiu cada um dos evangelhos em centenas de seções. Em muitos manuscritos gregos, esta divisão é encontrada nas margens do texto. Westtein nota que o Evangelho de Marcos tem um número total de seções diferente. Em algumas cópias, Marcos termina no número 233, na margem de 16:8. Outras numeram 239 (em 16:9), enquanto outras têm até 241 seções numéricas (com os versos 16:9-20 divididos em oito seções).
Além disso, essas diferenças já haviam sido notadas meio século mais cedo pelo estudioso da Bíblia Francês Richard Simon, em seu Histoire Critique du Texte du Nouveau Testament (1689). Ele explicitamente associou isso com a natureza controversa do final de Marcos. Simon suspeitou que a ausência de seções numéricas para os versos 9-20 em alguns dos manuscritos é um traço do "Marcos curto" comentado por Jerônimo em sua carta a Hebya. E isto novamente corresponde a um comentário que Wettstein encontrou em um manuscrito do século XII: de acordo com este minúsculo, Eusébio tinha apenas os versos 1-8 "canonizados" (as seções eram ligadas a cânones, tabelas que tornavam possível a comparação de passagens paralelas entre os evangelhos).
Simon e Wetsttein não negam a autenticidade do final [9-20]. Mas diferente de Mill e Bengel, eles não levam isto para os versos finais, e o material que eles oferecem abre possibilidades para se pensar a respeito.
Birch e Vaticanus
Durante todo este tempo, existia um manuscrito na Biblioteca do Vaticano esperando para ser reconhecido como algo vital para o texto do Novo Testamento. O Codex Vaticanus é um dos poucos manuscritos restantes que originalmente continham a Bíblia Grega completa (embora algumas partes foram perdidas neste códice). Além do Novo Testamento Grego, este manuscrito também contém a Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento. O Codex Vaticanus foi a base do texto da influente edição da Septuaginta que foi publicada em 1587 por ordem do Papa Sixtus V. No prefácio desta edição, o bibliotecário Caraffa fornece a data do "manuscrito de nossa casa". A avaliação de que o manuscrito provem do século IV é surpreendentemente próxima ao que se avalia hoje, tendo em vista que a paleografia ainda estava na sua infância. Mas a parte do Novo Testamento deste manuscrito é inicialmente estimada como de um valor substancialmente mais baixo do que a parte contendo o Antigo Testamento. Ocasionalmente, o manuscrito é estudado por um acadêmico ou bibliotecário de fora do Vaticano. Nota-se então que o texto do manuscrito é muito diferente do Textus Receptus. Mas precisamente por isso, o Codex Vaticanus, a despeito de sua idade, é considerado um manuscrito grandemente corrompido, sem valor para o estabelecimento do texto original. Somente em 1788, variações do Vaticanus são publicadas pela primeira vez em uma larga escala. Andreas Birch edita, em Copenhague, uma edição dos Evangelhos que foi o resultado de uma expedição dinamarquesa em busca de manuscritos, custeada pelo Rei Christian VII. Birch colou os textos dos evangelhos de Mateus e Marcos do Codex Vaticanus. A variação mais chocante que ele encontra é no final de Marcos. As últimas palavras de Marcos no Codex Vaticanus são de fato ephobounto gar, "pois estavam com medo".
Mudança de Paradigma
Se o Codex Vaticanus fosse ainda hoje considerado um manuscrito com uma escrita inferior, como os estudiosos haviam afirmado nos séculos passados, talvez o final de Marcos (16:9-20) tivesse permanecido até hoje. Mas devido a uma mudança de paradigma na teoria da Crítica Textual do Novo Testamento que teve início no século XIX, o status do Codex Vaticanus começou a mudar radicalmente por volta do ano 1800. Os estudiosos passaram a entender que uma variante textual testemunhada por uma vasta maioria de manuscritos mais novos pode perder para uma variante que seja testemunhada por alguns manuscritos mais antigos ou até mesmo um único manuscrito mais antigo. Além disso, eles também perceberam que o Codex Vaticanus estava cheio de leituras "difíceis", as quais diferiam do Textus Receptus. De fato, é mais lógico pensar que uma variante problemática foi mudada para uma não problemática do que vice-versa.
Reconstrução
O surgimento do final de Marcos formou a seguinte visão no século XIX: depois que Marcos escreveu o seu evangelho, os outros três surgiram. Todos os três se conectavam com uma passagem que realmente parece um final: o Cristo Ressuscitado aparece aos seus discípulos. Quando os quatro evangelhos foram compilados na primeira metade do segundo século, se percebeu que o final de Marcos tinha um contraste um pouco forte com os outros três evangelhos. Portanto, um final foi adicionado, os atuais versos 9-20, escritos ou não para esta ocasião (a infeliz transição do verso 8 para o verso 9 poderia indicar o uso de material já existente). Então, existiam duas versões de Marcos em circulação. Posteriormente, o final curto sucumbiu ao final longo. De fato, não existia nada de errado com os versos 9-20, e o credo de muitos copistas parece ter sido: quando existe dúvida, inclua; se necessário, acompanhado de uma nota.
Em Alexandria, um centro intelectual, existia a tradição de textos antigos. Entretanto, lá se buscava algo de "científico" para isto. De fato, no início do século III a.C., a Crítica Textual nasceu nesta cidade, quando houve a tentativa de recuperar o estado original de textos de Homero e outros autores clássicos. Em Alexandria, nos primeiros séculos depois de Cristo, os escritos que posteriormente se tornariam o Novo Testamento se multiplicaram através de um senso mais crítico. No século XIX, o Codex Vaticanus obteve o status de representante por excelência desta tradição alexandrina acurada. E aparentemente os alexandrinos tinham preferência pelo final curto de Marcos com base nesta tradição de Crítica Textual.
Consenso
O século XIX, além de ter sido o século em que o Textus Receptus caiu, foi o século no qual um consenso estava emergindo: Marcos 16:9-20 foi adicionado posteriormente. Birch e Griesbach, na segunda edição do seu Novum Testamentum Graece (parte 1, 1796), estão na frente. A evidência na qual eles baseiam a sua conclusão é então significantemente expandida. Assim, em 1825, é publicada uma carta de Eusébio para um certo Marinus. Nesta carta, posteriormente pouco conhecida, Eusébio diz que "cópias exatas" não contêm o final de Marcos. Provavelmente, Eusébio de fato não incluiu este final na seção correspondente. E para aqueles que ainda não estavam convencidos, em 1844, Constantin Von Tischendorf encontra um Manuscrito Grego da mesma idade do Codex Vaticanus (cerca de 350 d.C.) em um monastério no Deserto do Sinai. O Codex Sinaiticus - que hoje forma a base para o texto crítico do Novo Testamento junto com o Vaticanus - também termina no verso 8. Isto finalmente encerra a questão. Todas as grandes edições do século XIX (Lachmann, Tischendorf, Tregelles, Westcott & Hort) marcam os versos 9-20 como uma adição posterior. Mas ainda assim, sempre permaneceu uma minoria de estudiosos que advogam a autenticidade do final [v. 9-20] de Marcos. A maioria deles desaprova a mudança de paradigma ocorrida no século XIX. No lugar do Texto Alexandrino (que é o texto de alguns manuscritos mais antigos), eles dão preferência ao assim chamado Texto Bizantino (o texto de milhares de manuscritos medievais), crendo que Deus cuida de sua palavra.
Outras Duas Variantes
Existem duas variantes notáveis em Marcos 16, as quais são consideradas secundárias desde o início. Primeiro, alguns manuscritos possuem entre os versos 8 e 9 uma descrição extremamente curta das mulheres contando aos discípulos e de Jesus dando a missão aos apóstolos. Somente o códice latino Bobiensis (cerca de 400) possui o bem conhecido "final curto" sem o "final longo".
Menos conhecida é a misteriosa adição entre os versos 14 e 15 no códice grego Washingtonianus (cerca de 400 d.C.). O assim chamado Freer Logion, que Jerônimo conhecia parcialmente, pode ser traduzido como segue:
E eles se desculparam dizendo: "esta era sem lei e sem fé está sob Satanás, o qual não permite que o verdadeiro poder de Deus prevaleça sobre as coisas impuras dos espíritos [ou: não permite que aquilo que está debaixo dos espíritos impuros compreenda o verdadeiro poder de Deus]. Portanto, revele agora a tua justiça", disseram eles para Cristo. E Cristo lhes disse, "O término dos anos do poder de Satanás se completou, mas outras coisas terríveis se aproximam; e por aqueles que pecaram, eu fui entregue à morte, para que se voltem para a verdade e não pequem mais, para que herdem a glória espiritual e incorruptível da justiça, a qual está no céu.
Conclusão
Há muito mais para ser dito sobre a crítica textual do final de Marcos nos últimos dois séculos. Surgiram manuscritos de várias traduções antigas que terminam no verso 8, incluindo dezenas de manuscritos armênios, como também o antigo Sinaiticus Siríaco (cerca de 400 d.C.). Além disso, análises estilísticas conseguiram mostrar que 16:9-20 não foi escrito pelo mesmo autor que escreveu 1:1-16:8. Eu não posso lidar aqui com as questões que foram levantadas depois que se estabeleceu o consenso de que os versos 16:9-20 são secundários. Marcos realmente quis terminar em 16:8? Se não, então o que aconteceu? Ele não pôde terminar o seu trabalho? O final original que Marcos escreveu foi perdido? Também é preciso observar que em décadas recentes, muitos autores têm defendido que 16:8 foi o final pretendido por Marcos. Se este é um consenso com a mesma força do consenso sobre a crítica textual, o tempo dirá.
Bibliografia
– Andreas Birch, Variae Lectiones ad Textum IV Evangeliorum, Kopenhagen 1801 (uitgebreide editie van Quatuor Evangelia Graece uit 1788), disponível em archive.org;
– Desiderius Erasmus, Novum instrumentum omne (…) cum annotationibus, Basel 1516, disponível em e-rara.ch;
– John Mill, Novum Testamentum, Oxford 1707, disponível em archive.org;
– Richard Simon, Histoire critique du texte du Nouveau Testament, Rotterdam 1689, disponível em books.google.nl;
– Johann Jakob Wettstein, Novum Testamentum Graecum, Amsterdam 1751-1752, disponível em archiv.ub.uni-marburg.de.