27/06/2020

R.I.P. James D. G. Dunn

I normally write in Portuguese on this blog. As it is my mother language, I feel way more comfortable using it. Besides, my objectives with this space are to try to informe my Brazilian friends about what I think is important. Today, though, I need to do something different. Last night, through a dear friend, I heard the sad news about the death of James D. G. Dunn. I got the news with a very heavy heart and decided to praise him with some words in his own language, the one which, without even knowing it, he used to form my understanding about one of my dearests interests.

Through his many books and articles, James Dunn has always been a mentor from afar for me. His understanding about the first century world, early judaism, Paul, the beginnings of Christianity and the Jesus tradition proved to be incredibly helpful to change my mind about everything I thought I knew regarding the New Testament and it's history of formation. It was mainly through Dunn's academic work that I could finally understand why there's such an amazing difference between the gospels, how the oral tradition makes sense of this difference and in what way we can approach the NT with a fair methodology, while his work on the new perspective on Paul made it possible for me to finally unite the loose ends my previous research had left behind.

Although I've never meet him, it always felt to me that he was like a friend and teacher. Having read more or less three thousand pages he wrote, Dunn normally was the last person to talk to me every night. Living in the UK for the last couple of years, one of my dreams was to meet him as I discovered he lived two and a half hours by train away from my house; I dreamed about having a cup of coffee with Dunn and thanking him personally for everything he had taught me, or maybe just to take a picture standing next to the legend. Unfortunately, this will not be possible anymore, at least not in this life.

This is now the only way I can express my gratitude to Professor Dunn and say that he is still teaching me loads and loads about one of the most important topics of my life as I'm right in the middle of Christianity In The Making Volume Two. May he rest in peace and his family be comforted. Maybe one day we can finally meet and have a good conversation. Thank you, Jimmy!

19/06/2020

Marcos 14:61-62 como exemplo da relação da tradição sinótica

Quem está mais familiarizado com o estudo dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas -- João fica fora da lista por ter uma natureza diferente dos outros três) sabe que o consenso acadêmico sobre a ordem de escrita dos Evangelhos coloca Marcos como o primeiro e como fonte para Mateus e Lucas, isto é, o texto de Marcos foi usado pelos outros dois. É por isso que temos tanta coisa parecida e até mesmo repetida nesses três documentos. Existem textos que são evidentemente os mesmos, mas não exatamente: algumas palavras/expressões/trechos são modificados, o que deixa transparecer a edição/alteração que os autores fizeram de sua fonte. Normalmente (e logicamente, com a proeminência marcana), as modificações são feitas por Mateus e Lucas, os quais frequentemente buscam dar a sua própria ênfase àquilo que copiaram de Marcos. Mas nem sempre isso acontece: às vezes, quem parece ter alterado a tradição de Jesus foi Marcos. Um exemplo disso são os textos paralelos de Mc. 14:61-62, Mt. 26:63-64 e Lc. 22.70:

Marcos: Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou.

Mateus: E o sumo sacerdote lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste.

Lucas: Então, disseram todos: Logo, tu és o Filho de Deus? E ele lhes respondeu: Vós dizeis que eu sou.

Quanto lemos esses textos, logo nos perguntamos qual era a intenção do evangelista em substituir as palavras de sua fonte. No caso de Marcos ter servido de fonte para os outros dois evangelhos sinóticos, normalmente se pergunta qual foi o motivo do texto de Marcos ter sido alterado. Se esse fosse o caso nesse exemplo, a alteração poderia ter sido apenas a forma que Mateus e Lucas usaram para deixar a resposta de Jesus menos brusca; apenas uma forma de mudar o estilo literário para transparecer algo mais suave. Isso, no entanto, é pouco provável, e por um motivo muito simples: por que Mateus e Lucas deixariam uma resposta tão afirmativa e clara sobre a messianidade de Jesus se tornar algo tão ambíguo? É mais provável que esse seja um exemplo de uma tradição modificada por Marcos, não por Mateus e Lucas, isto é, eles conheciam essa mesma história dentro de suas comunidades com essa outra ênfase e resolveram escrever a versão com a qual estavam mais familiarizados. Ou seja, é mais provável que Marcos tenha alterado uma tradição mais ambígua do que Mateus e Lucas terem alterado algo tão forte para algo mais brando. E é claro que, se Marcos foi escrito primeiro, não podemos dizer que o evangelista alterou uma fonte escrita, um texto, mas sim uma tradição oral, o produto da tradição sobre Jesus que se tornou a base para a escrita dos Evangelhos.

Exceto por Marcos 14:62, todas as respostas são ambivalentes: "tu dizes (su eipas, su legeis)". Existe alguma dúvida sobre a exceção de Marcos, mas, mesmo que concluamos que o texto original de Marcos seja de fato o inequívoco 'eu sou (egō eimi)', é mais provável que Marcos tenha modificado um ambíguo 'tu dizes' (ou equivalente), fazendo da resposta de Jesus uma afirmação retumbante, e não que Mateus tenha transformado um "sim" tão inequívoco em um insatisfatório "você diz isso" = "essa é a sua maneira de expressar isso". (DUNN, Jesus Remembered).

Mateus e Lucas conheciam uma versão diferente da tradição e resolveram escrever o que conheciam, mesmo que essa versão fosse diferente de uma de suas fontes escritas. Isso significa que a tradição original provavelmente falava de Jesus se esquivando do título de messias-rei, porque o título de messias como o rei vencendor político não servia para Jesus se definir.

O ponto, então, é que a resposta que Jesus é lembrado como dando a Caifás e a Pilatos foi provavelmente a mesma: 'Você diz'. O que isso demostra sobre a intenção de Jesus ao dar essa resposta? Pelo menos uma falta de vontade de aceitar o título de Messias/rei, ou, para ser mais preciso, uma falta de vontade de aceitar o papel que o título indicava ao questionador. Isso implica, então, que Jesus aceitou o título em um sentido diferente? Todos, exceto Marcos, e apenas na resposta a Caifás, indicam que "Messias" era um termo que Jesus preferia não usar para seu próprio papel. Essas trocas são importantes, pois exemplificam um dilema que Jesus deve frequentemente ter enfrentado: ele poderia aceitar ou usar um título que implicava um papel que não estava disposto a aceitar?  (DUNN, Jesus Remembered).

O que isso nos diz sobre a origem dos evangelhos sinóticos? O material da tradição sinótica não surgiu num vácuo. Ele apresenta desenvolvimento e interpretação, mas a sua fonte foi o ensinamento de Jesus que perdurou através dos seus discípulos e das primeiras comunidades cristãs. Ou seja, através da tradição sobre Jesus registrada nos sinóticos, podemos chegar no Jesus conforme relembrado pelos discípulos, ainda que não tenhamos um registro exatamente perfeito do que realmente aconteceu. Jesus de Nazaré, através de sua vida, ensinamento e ações, impactou seus discípulos de forma duradoura. Ele causou uma forte reação nos discípulos, e essa reação começou ainda antes da Páscoa. Dito de outra maneira: a tradição sobre Jesus começou a se formar ainda durante a sua vida, e é por isso que podemos assumir que, dentro daquela sociedade oral, o serne, o núcleo de várias histórias sobre Jesus (que formam a tradição sinótica) foram contadas e recontadas desde o início e chagaram até nós na cristalização dessa tradição oral escrita nos evangelhos.

10/06/2020

Paulo, o judeu

Quando pensamos em Paulo no caminho para Damasco, imaginamos que o apóstolo dos gentios teve uma experiência de conversão, isto é, com a visão do Cristo Ressurreto, Paulo deixou de ser um judeu legalista para se tornar um cristão. Essa interpretação, além de antissemita em suas implicações, vai completamente contra aquilo que o próprio Paulo escreveu sobre a sua religião.

A teologia paulina protestante no ocidente foi totalmente desenvolvida dentro de uma perspectiva de culpa interior e arrependimento, desde Agostinho, passando por Lutero e chegando até mesmo a Bultmann; isto é, aquilo que Paulo escreveu foi interpretado à luz da experiência pessoal de Agostinho e, principalmente, Lutero. O reformador alemão achava que Paulo, o judeu, lutava com seus pecados internos como ele, Lutero, lutava; achava que Paulo era como um católico atribulado pela culpa trazida pela lei que, ao encontrar o cristianismo, deixou o seu antigo eu para trás (junto com todo o sistema judaico, o qual ele interpretava como sendo legalista e exterior), e se libertou da condenação da lei através da graça do evangelho.

"A interpretação que os reformadores fizeram de Paulo repousa sobre um analogismo onde as declarações paulinas sobre fé e obras, lei e evangelho, judeus e gentios são lidas no quadro da piedade medieval tardia. A Lei, a Torá, com seus requisitos específicos de circuncisão e restrições alimentares, torna-se um princípio geral de "legalismo" em assuntos religiosos. Onde Paulo estava preocupado com a possibilidade doa gentios serem incluídos na comunidade messiânica, suas declarações agora são lidas como respostas à busca de segurança sobre a salvação do homem." (Krister Stendahl (1963), The Apostle Paul and the Introspective Conscience of the West. Harvard  Theological Review, 56, pp 199-215).

Contudo, ao lermos as cartas de Paulo, percebemos que ele nunca teve problemas com seus pecados quando ainda era um adepto da seita dos fariseus. O apóstolo afirma que era perfeito em seu judaísmo, e isso com certeza envolvia o sacrifício no Templo para perdão de pecados. O que Paulo mudou foi sua visão sobre a vinda do Messias e o que isso significava para a lei na inclusão de gentios dentro do povo de Deus. O que Paulo jogou fora não foi a lei em si, mas o papel que a lei tinha na separação étnica entre judeus gentios. Contudo, ao falar de sua conduta no farisaísmo antes de virar um adepto da seita dos nazarenos, Paulo afirma que era exemplar, e não demonstra nenhum problema com culpa interior por causa de uma consciência pesada devido aos seus pecado:

"Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível." (Filipenses 3:4-6 NVI)

Mesmo em Romanos 7, o assunto não é o sentimento de culpa interior causado pela lei, mas a razão pela qual a lei não pôde livrar o homem do pecado de Adão.

Paulo nunca deixou de ser judeu; nunca abandonou a sua religião; nunca se viu saindo de uma religião e indo para outra. Tudo o que ele via como importante no judaismo continuou sendo importante, com uma diferença de perspectiva sobre um ponto muito específico: o papel da lei como identificação étnica dos judeus não era mais o que marcava o povo de Deus. Com a vinda do Messias Jesus, a crença nele e em tudo o que isso envolvia era suficiente para se dizer povo da aliança; é daí que deriva a sua teologia sobre a participação dos gentios nas promessas que eram para os judeus: como fica a situação de quem não é judeu à luz da chegada do Messias Jesus? 

Assim, Paulo não viu o seu judaísmo como ficando para trás com a vinda de Jesus. Na realidade, o surgimento do Messias era justamente o cumprimento de toda a expectativa de Paulo quanto ao seu judaísmo. Especificamente sobre o Templo, me parece que Paulo, apesar de toda a sua teologia sobre a redenção e ablação na morte de Jesus, ainda via o Templo como algo extremamente importante, e Jerusalém como central para a sua fé. Paulo não joga a lei fora, ele apenas diz que um aspecto dela já não valia mais porque o Messias havia chegado, e isso atualizava algumas coisas.

08/06/2020

A Tradição Oral dos Evangelhos (Parte 4) -- por James D. G. Dunn

Tenho me convencido cada vez mais de que o melhor ponto de partida para o estudo da maior parte da tradição sinótica é enxergá-la como as memórias sobre Jesus que as igrejas mais antigas tinham e que eram recontadas e reutilizadas por essas igrejas. A importância dos mestres e da tradição é muito bem atestada pelos documentos mais antigos do Novo Testamento (por exemplo: mestres -- At 13:1, 1Co 12:28, Gl 6:6; tradição -- 1Co 11:2, Cl 2:6, 1Ts 4:1, 2Ts 2:15 e 3:6). Os próprios evangelhos sinóticos são surpreendentemente semelhantes às biografías antigas (não às modernas); e a probabilidade a priori de que os primeiros grupos estimavam e recontavam entre si as memórias daquele que agora tinham como Senhor, isto é, as tradições que lhes deram motivos para sua existência distinta, deve ser considerada como algo forte. Essa perspectiva difere significativamente do modelo caracteristicamente literário, o qual exerceu demasiada influência na análise da história da tradição do material sinótico, e também difere da tarefa de análise como algo que busca traçar a descendência linear de uma tradição ao longo de camadas elaboradas de maneira sucessiva, com cada nova camada dependendo da camada anterior -- muito parecido com o que se faz na crítica textual ou ao se traçar a história das traduções da Bíblia. Esse modelo é inapropriado para ser aplicado em tradições orais, pois, numa tradição oral, lidanos com temas, fórmulas e material de núcleo que, frequentemente, permanecem constantes enquanto uma grande gama de variações são misturadas a esse material temático/central. O ponto é que uma variação não precisa necessariamente levar à outra; variações subsequentes podem derivar diretamente do tema central ou núcleo. Consequente, a análise da história da tradição que está buscando chegar no Jesus como ele era não precisa se consistir somente de uma reversão através de diferentes variações, mas essa análise pode se focar imediatamente no material que é mais constante, porque a probabilidade é que o material mais constante é o núcleo vivo das recordações mais antigas sobre Jesus, o qual manteve a vitalidade da tradição dentro de todas as suas formas variantes.

Em resumo, eu vejo os oradores/mestres/transmissores mais antigos dentro das igrejas cristãs mais como preservadores do que inovadores, como pessoas buscando transmitir, recontar, explicar, interpretar, elaborar, mas não buscando criar do zero. Eu creio que, através da tradição sinótica, temos, na maioria dos casos, acesso direto ao ensino e ministério de Jesus conforme relembrados desde o início do processo de transmissão (o qual frequentemente inicia antes da Páscoa), e, assim, também temos acesso suficientemente direto ao ministério e ensino de Jesus através dos olhos e ouvidos daqueles que andavam com ele.

Fonte: James D. G. Dunn, "Messianic Ideas and Their Influence on the Jesus of History", em The Messiah, ed. James H. Charlesworth, pp. 371-2.

05/06/2020

A inimizade entre o homem e a serpente

"Então, o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que toda besta e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás e pó comerás todos os dias da tua vida.
E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar." 
Gênesis 3:14-15 ARC.

"O significado geral da frase é claro: na guerra entre homens e serpentes, o primeiro esmagará a cabeça do inimigo, enquanto o último só pode ferir no calcanhar... A tentativa da serpente de estabelecer uma comunhão profana com a mulher é punida através de uma inimizade implacável e eterna entre elas." John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p. 79.

Nos capítulos iniciais de seu livro, o autor (editor?) de Gênesis está tentando responder como o homem chegou no estado em que está. Por que existe dor, sofrimento, morte? Por que a mulher sente dores de parto e precisa depender dos homens? Para responder isso, ele usa uma lenda antiga que afirmava que a desobediência/pecado/erro/mal surgiu ou foi instigado por uma serpente (literal), uma versão mais antiga da narrativa da queda que foi reeditada em Gênesis 3. Nessa versão mais antiga, a serpente possivelmente era retratada como um deus ou demônio. Isso explica por que, no texto editado de Gênesis 3, a serpente é apenas mais um dos animais criados por Deus, mas tem astúcia e pode falar; dito de outra forma: o autor de Gênesis reescreveu um mito antigo para explicar como o homem se meteu nessa enrascada na qual nos encontramos.

Dentro dessa lenda está a ideia de que a serpente e o homem se tornaram inimigos porque a serpente tentou manipular o homem contra Deus numa espécie de aliança profana. O criador descobriu tudo e, como punição, fez com que toda a espécie humana e todas as serpentes (a semente da mulher e a semente da serpente) se tornassem inimigos para sempre. Isso, para o autor, explica por que existe uma contenda entre os homens e as cobras, e também por que as cobras não andam eretas.

Por mais incrível que isso pareça para nós depois de tantos séculos de desenvolvimento teológico que nos fazem ler esse texto de forma tão diferente e até extremamente alegórica, o fato é que o autor usa uma mentalidade antiga onde as serpentes eram vistas com certa aura sobrenatural para explicar os problemas da humanidade: Deus sentenciou o homem ao sofrimento por causa de uma desobediência incitada por um animal; mas não foi apenas o homem que sofreu as consequências: as serpentes também foram condenadas a comer poeira e rastejar no chão, além de terem uma inimizade eterna com a humanidade; assim como todos os homens receberam as penas de Adão, assim também todas as serpentes receberam as penas da serpente do jardim, a serpente arquétipa.

Com o passar dos milênios, as teologias judaica e cristã colocaram muito mais coisas nesse texto, mas nada disso está lá; é apenas desenvolvimento teológico em cima da narrativa original.

04/06/2020

A evolução do pensamento religioso no Antigo Testamento

Para o pensamento religioso antigo, o mundo era cheio de divindades e outras entidades sobre-humanas. Esses seres invisíveis estavam trabalhando no mundo, moldando a história e influenciando a humanidade. Os poderes invisíveis controlavam a sorte dos indivíduos, às vezes para o benefício, e às vezes para o dano de uma pessoa. A ascensão e queda das nações estavam sujeitas a decisões e ações tomadas por deidades. Os autores das escrituras hebraicas compartilharam esse entendimento do mundo.

A literatura das escrituras hebraicas centra-se na atividade de Javé, o Deus de Israel, no mundo, especialmente no que se refere ao povo de Israel. Enquanto numerosas passagens reconhecem a existência de outros seres divinos, apenas um pequeno número de passagens sugere que uma divindade estrangeira ou um deus que não seja Javé possa abençoar ou criar problemas para Israel.

Embora outras divindades que não sejam o Deus de Israel estejam presentes nas escrituras hebraicas, mais tipicamente é dito que somente Javé pode controlar o destino de Israel. Frequentemente, no entanto, as escrituras hebraicas falam de vários seres sobre-humanos que servem como agentes divinos para cumprir os propósitos de Deus entre a humanidade. Enquanto alguns desses seres são agentes de Deus para abençoar os justos, alguns deles são agentes de Deus para julgar os iníquos. Esses agentes de julgamento incluem seres "angelicais" que levam a morte aos inimigos de Deus e "espíritos" que, de várias formas, afligem e enganam os iníquos. (Ryan E. Stokes, The Satan: How God’s Executioner Became the Enemy.)

Os estudiosos têm confirmado que a concepção de universo difundida entre os povos antigos afirmava que as várias forças naturais eram entendidas imbuídas de poder divino, como sendo, de certo modo, divindades. A terra era uma divindade, o céu era uma divindade, a água era uma divindade ou possuía poder divino. Em outras palavras, os deuses eram idênticos ou imanentes às forças da natureza. Havia, portanto, muitos deuses, e nenhum deus era todo poderoso.

Existem fortes evidências sugerirndo que a maioria dos israelitas antigos compartilhava essa visão de mundo. Eles participaram, nos estágios iniciais de sua história, da cultura religiosa e cultual mais ampla do antigo Oriente Próximo. Ao longo do tempo, no entanto, alguns israelitas antigos, não todos de uma só vez, nem de forma unânime, romperam com essa visão e articularam uma visão diferente segundo a qual existia apenas um poder divino, um deus. Mais importante que a singularidade desse deus era o fato de ele estar fora e acima da natureza. Esse deus não era identificado com a natureza; ele transcendia a natureza. Esse deus não era conhecido através da natureza ou dos fenômenos naturais; ele era conhecido através da história e de um relacionamento particular com a humanidade.

Essa idéia -- que parece a princípio parece simples e não tão revolucionária -- afetou todos os aspectos da cultura israelita, e de certa forma garantiu a sobrevivência dos antigos israelitas como uma entidade étnico-religiosa. A visão de um deus totalmente transcendente com controle absoluto sobre a história tornou possível para alguns israelitas interpretar até os eventos mais trágicos e catastróficos, como a destruição de sua capital e o exílio da nação, não como uma derrota do deus de Israel ou mesmo a rejeição deles por parte desse deus, mas como uma parte necessária do propósito ou plano maior da divindade para Israel. (Christine Hayes, Introduction to the Bible).

02/06/2020

A diferença entre história e teologia -- por Paula Fredriksen

O pensamento crítico pode transformar aquilo que é familiar em algo estranho; ou -- para reformular essa observação em uma linguagem talvez mais atraente -- ele atualiza o material, tornando o velho, o familiar, em novo. Esse exercício intelectual é o primeiro passo necessário para encontrar a figura histórica de Jesus. O medo da falsa familiaridade é o começo da sabedoria histórica. Insista para que Jesus faça sentido imediato para nós, e o passado se transforma em um espelho, uma superfície refletora que só mostra nós mesmos. Reconheça -- não tenha medo! -- a enorme distância entre nós e Jesus (como entre nós e qualquer pessoa antiga), e os textos podem se tornar janelas, não espelhos. Podemos examiná-los para vislumbrar, ainda que imperfeitamente, as realidades humanas que estão, de forma última, por trás deles.

Se assim o fizermos, o que veremos nesses textos a respeito de Jesus? O ser humano que até a forte metafísica da alta teologia antiga insistia que estava lá. A tentativa exige um certo tipo de coragem religiosa, porque significa separar a história da teologia e permitir que cada uma, com integridade, faça o seu respectivo trabalho. A história requer o reconhecimento da diferença e a prioridade do contexto antigo. Isso significa que, se começamos a procurar o Jesus de Nazaré histórico, a pessoa que procuramos fica de costas para nós, com o rosto voltado para os rostos de sua própria geração.

Se, como crentes modernos, ainda assim exigimos que Jesus seja moralmente inteligível e religiosamente relevante para nós, recai sobre nós o trabalho necessário de reinterpretação criativa. Esse projeto não é histórico (a construção crítica de uma figura antiga), mas teológico (a geração de significado contemporâneo dentro de determinadas comunidades religiosas). Inevitavelmente, múltiplas e conflitantes reivindicações teológicas surgirão, tão diversas quanto as diferentes comunidades que estão por trás delas. Nesse sentido, a tolerância cristã moderna da diferença doutrinária entre igrejas, seu princípio ecumênico, também é um bom modelo emocional e ético para tolerar a diferença histórica. Manter em vista as distinções entre pessoas antigas e modernas pode impedir o uso da pseudo-história como uma espécie de suporte empírico para os compromissos teológicos modernos (por exemplo, Jesus, o agitador antitemplo, endossando o anti-hierarquicalismo moderno). A história interpreta o passado. A teologia reinterpreta, não o passado, mas a tradição religiosa.

Mas a reinterpretação teológica não deve ser confundida com (nem apresentada como) descrição histórica. Considerar Jesus historicamente exige liberá-lo do serviço a nossas preocupações modernas ou identidade confessional; significa permitir-nos vê-lo em sua alteridade irredutível, como o Estranho da descrição poética que Schweitzer usou para finalizar seu livro sobre a busca do Jesus Histórico: "Ele chega até nós como um desconhecido, sem nome, como vindo de antigamente, à beira do lago." Quando renunciarmos a falsa familiaridade proferida a nós pelos anjos das trevas chamados relevância e anacronismo, poderemos ver Jesus, seus contemporâneos e talvez até nós mesmos mais claramente em nossa humanidade comum.

Fonte: Paula Fredriksen, Jesus: “Who Do You Say That I Am?”