Quem está mais familiarizado com o estudo dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas -- João fica fora da lista por ter uma natureza diferente dos outros três) sabe que o consenso acadêmico sobre a ordem de escrita dos Evangelhos coloca Marcos como o primeiro e como fonte para Mateus e Lucas, isto é, o texto de Marcos foi usado pelos outros dois. É por isso que temos tanta coisa parecida e até mesmo repetida nesses três documentos. Existem textos que são evidentemente os mesmos, mas não exatamente: algumas palavras/expressões/trechos são modificados, o que deixa transparecer a edição/alteração que os autores fizeram de sua fonte. Normalmente (e logicamente, com a proeminência marcana), as modificações são feitas por Mateus e Lucas, os quais frequentemente buscam dar a sua própria ênfase àquilo que copiaram de Marcos. Mas nem sempre isso acontece: às vezes, quem parece ter alterado a tradição de Jesus foi Marcos. Um exemplo disso são os textos paralelos de Mc. 14:61-62, Mt. 26:63-64 e Lc. 22.70:
Marcos: Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou.
Mateus: E o sumo sacerdote lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste.
Lucas: Então, disseram todos: Logo, tu és o Filho de Deus? E ele lhes respondeu: Vós dizeis que eu sou.
Quanto lemos esses textos, logo nos perguntamos qual era a intenção do evangelista em substituir as palavras de sua fonte. No caso de Marcos ter servido de fonte para os outros dois evangelhos sinóticos, normalmente se pergunta qual foi o motivo do texto de Marcos ter sido alterado. Se esse fosse o caso nesse exemplo, a alteração poderia ter sido apenas a forma que Mateus e Lucas usaram para deixar a resposta de Jesus menos brusca; apenas uma forma de mudar o estilo literário para transparecer algo mais suave. Isso, no entanto, é pouco provável, e por um motivo muito simples: por que Mateus e Lucas deixariam uma resposta tão afirmativa e clara sobre a messianidade de Jesus se tornar algo tão ambíguo? É mais provável que esse seja um exemplo de uma tradição modificada por Marcos, não por Mateus e Lucas, isto é, eles conheciam essa mesma história dentro de suas comunidades com essa outra ênfase e resolveram escrever a versão com a qual estavam mais familiarizados. Ou seja, é mais provável que Marcos tenha alterado uma tradição mais ambígua do que Mateus e Lucas terem alterado algo tão forte para algo mais brando. E é claro que, se Marcos foi escrito primeiro, não podemos dizer que o evangelista alterou uma fonte escrita, um texto, mas sim uma tradição oral, o produto da tradição sobre Jesus que se tornou a base para a escrita dos Evangelhos.
Exceto por Marcos 14:62, todas as respostas são ambivalentes: "tu dizes (su eipas, su legeis)". Existe alguma dúvida sobre a exceção de Marcos, mas, mesmo que concluamos que o texto original de Marcos seja de fato o inequívoco 'eu sou (egō eimi)', é mais provável que Marcos tenha modificado um ambíguo 'tu dizes' (ou equivalente), fazendo da resposta de Jesus uma afirmação retumbante, e não que Mateus tenha transformado um "sim" tão inequívoco em um insatisfatório "você diz isso" = "essa é a sua maneira de expressar isso". (DUNN, Jesus Remembered).
Mateus e Lucas conheciam uma versão diferente da tradição e resolveram escrever o que conheciam, mesmo que essa versão fosse diferente de uma de suas fontes escritas. Isso significa que a tradição original provavelmente falava de Jesus se esquivando do título de messias-rei, porque o título de messias como o rei vencendor político não servia para Jesus se definir.
O ponto, então, é que a resposta que Jesus é lembrado como dando a Caifás e a Pilatos foi provavelmente a mesma: 'Você diz'. O que isso demostra sobre a intenção de Jesus ao dar essa resposta? Pelo menos uma falta de vontade de aceitar o título de Messias/rei, ou, para ser mais preciso, uma falta de vontade de aceitar o papel que o título indicava ao questionador. Isso implica, então, que Jesus aceitou o título em um sentido diferente? Todos, exceto Marcos, e apenas na resposta a Caifás, indicam que "Messias" era um termo que Jesus preferia não usar para seu próprio papel. Essas trocas são importantes, pois exemplificam um dilema que Jesus deve frequentemente ter enfrentado: ele poderia aceitar ou usar um título que implicava um papel que não estava disposto a aceitar? (DUNN, Jesus Remembered).
O que isso nos diz sobre a origem dos evangelhos sinóticos? O material da tradição sinótica não surgiu num vácuo. Ele apresenta desenvolvimento e interpretação, mas a sua fonte foi o ensinamento de Jesus que perdurou através dos seus discípulos e das primeiras comunidades cristãs. Ou seja, através da tradição sobre Jesus registrada nos sinóticos, podemos chegar no Jesus conforme relembrado pelos discípulos, ainda que não tenhamos um registro exatamente perfeito do que realmente aconteceu. Jesus de Nazaré, através de sua vida, ensinamento e ações, impactou seus discípulos de forma duradoura. Ele causou uma forte reação nos discípulos, e essa reação começou ainda antes da Páscoa. Dito de outra maneira: a tradição sobre Jesus começou a se formar ainda durante a sua vida, e é por isso que podemos assumir que, dentro daquela sociedade oral, o serne, o núcleo de várias histórias sobre Jesus (que formam a tradição sinótica) foram contadas e recontadas desde o início e chagaram até nós na cristalização dessa tradição oral escrita nos evangelhos.