02/06/2020

A diferença entre história e teologia -- por Paula Fredriksen

O pensamento crítico pode transformar aquilo que é familiar em algo estranho; ou -- para reformular essa observação em uma linguagem talvez mais atraente -- ele atualiza o material, tornando o velho, o familiar, em novo. Esse exercício intelectual é o primeiro passo necessário para encontrar a figura histórica de Jesus. O medo da falsa familiaridade é o começo da sabedoria histórica. Insista para que Jesus faça sentido imediato para nós, e o passado se transforma em um espelho, uma superfície refletora que só mostra nós mesmos. Reconheça -- não tenha medo! -- a enorme distância entre nós e Jesus (como entre nós e qualquer pessoa antiga), e os textos podem se tornar janelas, não espelhos. Podemos examiná-los para vislumbrar, ainda que imperfeitamente, as realidades humanas que estão, de forma última, por trás deles.

Se assim o fizermos, o que veremos nesses textos a respeito de Jesus? O ser humano que até a forte metafísica da alta teologia antiga insistia que estava lá. A tentativa exige um certo tipo de coragem religiosa, porque significa separar a história da teologia e permitir que cada uma, com integridade, faça o seu respectivo trabalho. A história requer o reconhecimento da diferença e a prioridade do contexto antigo. Isso significa que, se começamos a procurar o Jesus de Nazaré histórico, a pessoa que procuramos fica de costas para nós, com o rosto voltado para os rostos de sua própria geração.

Se, como crentes modernos, ainda assim exigimos que Jesus seja moralmente inteligível e religiosamente relevante para nós, recai sobre nós o trabalho necessário de reinterpretação criativa. Esse projeto não é histórico (a construção crítica de uma figura antiga), mas teológico (a geração de significado contemporâneo dentro de determinadas comunidades religiosas). Inevitavelmente, múltiplas e conflitantes reivindicações teológicas surgirão, tão diversas quanto as diferentes comunidades que estão por trás delas. Nesse sentido, a tolerância cristã moderna da diferença doutrinária entre igrejas, seu princípio ecumênico, também é um bom modelo emocional e ético para tolerar a diferença histórica. Manter em vista as distinções entre pessoas antigas e modernas pode impedir o uso da pseudo-história como uma espécie de suporte empírico para os compromissos teológicos modernos (por exemplo, Jesus, o agitador antitemplo, endossando o anti-hierarquicalismo moderno). A história interpreta o passado. A teologia reinterpreta, não o passado, mas a tradição religiosa.

Mas a reinterpretação teológica não deve ser confundida com (nem apresentada como) descrição histórica. Considerar Jesus historicamente exige liberá-lo do serviço a nossas preocupações modernas ou identidade confessional; significa permitir-nos vê-lo em sua alteridade irredutível, como o Estranho da descrição poética que Schweitzer usou para finalizar seu livro sobre a busca do Jesus Histórico: "Ele chega até nós como um desconhecido, sem nome, como vindo de antigamente, à beira do lago." Quando renunciarmos a falsa familiaridade proferida a nós pelos anjos das trevas chamados relevância e anacronismo, poderemos ver Jesus, seus contemporâneos e talvez até nós mesmos mais claramente em nossa humanidade comum.

Fonte: Paula Fredriksen, Jesus: “Who Do You Say That I Am?”