24/08/2020

O apocalipticismo de Jesus e João Batista

Nota: trecho retirado do artigo "Apocalypticism and Christian Origins", de Adela Yarbro Collins. O artigo é parte do livro "The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature", editado por John J. Collins.

A evidência deixa claro que Jesus falou em uma parte significativa de seu ensino como um profeta apocalíptico. Além disso, sua proclamação do reino de Deus certamente estava relacionada a uma estrutura apocalíptica de significado. A evidência também apoia a conclusão de que os primeiros seguidores de Jesus após a Páscoa tinham uma orientação e perspectiva apocalípticas. A atividade de João Batista, à qual se relacionava a vida pública de Jesus, também teve um caráter apocalíptico. O ritual administrado por João, a imersão no rio Jordão, teve seu modelo formal na prática da imersão ordenada no Livro de Levítico para vários tipos de impurezas rituais. João deu a esse ritual um novo significado, no entanto, associando-o ao arrependimento e à remissão de pecados e ao transformá-lo em uma ação simbólica profética. O propósito desse ritual aparentemente único pode ter sido sugerido por Ezequiel 36:25-28, onde Deus, diz o profeta, promete purificar as pessoas com água e espírito para que sejam transformadas e, finalmente, capazes de cumprir os mandamentos de Deus. Essa passagem aparece nos Manuscritos do Mar Morto como uma profecia da renovação escatológica de toda a criação pelo poder de Deus. Marcos claramente apresenta João como um profeta, descrevendo suas vestimentas como pêlo de camelo e um cinto de couro, lembrando Elias. De acordo com Marcos 11:32, as pessoas consideravam João como um profeta. Mateus (3:7–12) e Lucas (3:7–9) incluem alguns dos pronunciamentos proféticos apocalípticos de João. Ele falou da “ira vindoura”, que se refere ao tema escatológico apocalíptico da grande tribulação precedendo o fim (Dn 12:1) ou, mais provavelmente, ao julgamento divino (final). Uma metáfora apocalíptica também é usada: o machado está na raiz das árvores; aquelas árvores que não dão bons frutos serão cortadas e jogadas no fogo. O fogo evoca a ideia de punição após a morte (cf. Is 66:24, que é uma raiz dessa tradição apocalíptica). Josefo omite essa dimensão escatológica apocalíptica em seu relato de João Batista porque ela não se encaixa em seus preconceitos.

A relação de Jesus com o apocalipticismo

Nota: trecho retirado do artigo "Apocalypticism and Christian Origins", de Adela Yarbro Collins. O artigo é parte do livro "The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature", editado por John J. Collins.

A atividade de Jesus estava intimamente relacionada a João Batista, que parece ter sido um profeta apocalíptico. As ações e o ensino de Jesus resultaram em outro fenômeno apocalíptico: as primeiras comunidades cristãs, o que é atestado especialmente pelas cartas de Paulo e os Evangelhos de Marcos e Mateus. Seria historicamente duvidoso concluir que Jesus não falava e agia de maneira apocalíptica, visto que reconheceu a autoridade de João ao ser batizado por ele e que o movimento surgido após a Páscoa se caracterizava pela expectativa iminente da vinda do filho do Homem e a manifestação do reino de Deus na terra. Como E. P. Sanders colocou: “A questão é se a ressurreição é a única explicação do movimento cristão, ou se há também uma conexão mais do que acidental entre a própria obra de Jesus e o surgimento da igreja cristã.” Argumentar que foi apenas com as aparições da ressurreição que os seguidores de Jesus começaram a pensar nele como o Messias e filho do Homem e a assumir uma postura de expectativa iminente parece colocar um peso muito grande nessas aparições. Essas consequências são mais facilmente explicáveis se a questão do messiado de Jesus já tivesse surgido de alguma forma durante sua vida e se ele tivesse falado da vinda daquele como um filho do homem de Daniel 7 em seus ensinamentos.

Embora Sanders evite usar o grupo de palavras “apocalipse”, “apocalíptico” e “apocalipticismo”, ele conclui que é certo ou virtualmente certo que “Jesus compartilhou a visão de mundo que chamei de 'escatologia da restauração judaica'”. As principais evidências para essa conclusão incluem “seu início sob João Batista, o chamado dos doze, sua expectativa de um novo (ou pelo menos renovado) templo e o cenário escatológico da obra dos apóstolos.” Em uma nota de rodapé, ele sugere que “apocalíptico” e “escatológico” são intercambiáveis. Ele usa “escatologia” “para se referir à expectativa de um fim iminente para a ordem atual”. Por “escatologia da restauração” ele parece querer dizer “o Messias veio; todo o povo de Deus, tanto judeus como gentios, está sendo reunido; o fim está próximo”. A restauração inclui julgamento: o filho do Homem se assentará no trono de sua glória e os doze julgarão as doze tribos de Israel. “A maioria dos estudiosos concorda que Jesus não tinha em vista a vitória militar e a autonomia política.” “Jesus afirmou que Deus estava para estabelecer o seu reino, que aqueles que respondessem a ele seriam incluídos, e (pelo menos por implicação) que ele reinaria”.

15/08/2020

O desenvolvimento do pensamento teológico da Igreja - por Paula Fredriksen

Nota: trecho retirado do livro "Pecado: a história primitiva de uma ideia", de Paula Fredriksen, publicado no Brasil pela Editora Vozes.


Jesus de Nazaré anunciou a boa-nova de que Deus estava prestes a redimir o mundo. Cerca de 350 anos mais tarde, a Igreja ensinou que a maior parte da humanidade estava condenada por toda a eternidade. A comunidade mais primitiva começou preservando a memória e a mensagem de Jesus; alguns decênios após sua morte, alguns cristãos afirmavam que Jesus nunca tivera um corpo humano carnal. A Igreja que reivindicava as escrituras judaicas como suas insistia também que o deus que disse “Sede fecundos e multiplicai-vos” queria realmente dizer “Sede sexualmente castos”. Cerca de quatro séculos após a morte de Paulo, sua convicção de que “Todo o Israel será salvo” (Rm 11:26) servia para apoiar a crença cristã de que os judeus estavam condenados.

O que explica esta grande variedade nos ensinamentos cristãos antigos? A resposta concisa é: mudanças dramáticas nas ideias cristãs sobre o pecado. Assim como estas ideias cresceram e mudaram na turbulência dos quatro primeiros séculos de cristianismo, também cresceram e mudaram outras: ideias sobre Deus, sobre o universo físico, sobre a relação da alma com o corpo, sobre a relação da eternidade com o tempo; ideias sobre Cristo redentor – e, por conseguinte, ideias sobre aquilo de que as pessoas são redimidas.

12/08/2020

Paulo adorava Jesus como Deus? Por James D. G. Dunn

Nota: trecho retirado do livro Beginning from Jerusalem, de James D. G. Dunn, p. 579.


A confissão de Jesus como Senhor trazia consigo a implicação de que Paulo adorava Jesus como Deus e esperava que seus convertidos também o fizessem? A pergunta é mais complexa do que pode ser respondido com um simples Sim ou Não. Certamente, Paulo não hesitou em usar textos que falavam de Javé para se referir a Jesus; podemos notar particularmente o uso do fortemente monoteísta Isaías 45:23 no reconhecimento universal antecipado do senhorio de Cristo (Filipenses 2:11), e a maneira notável como Paulo parece incorporar Cristo dentro do Shemá de Israel (Deuteronômio 6:4) em 1 Coríntios. 8:6. O que não está claro, no entanto, é até onde Paulo concebia que o Jesus exaltado compartilhava a divindade de Deus em vez de simplesmente (!) compartilhar o (exercício de) senhorio. Sua conversa bastante frequente de Deus como "o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" é igualmente notável, assim como sua elaboração mais explícita da relação entre Deus e o Cristo exaltado em 1 Coríntios 15:24–28. É certamente verdade que Paulo descreveu os cristãos como 'aqueles que invocam o nome do Senhor' (1Co 1:2), invocaram a Cristo (1Co 16:22), suplicaram sua ajuda na oração (2Co 12:8) e que ele não hesitou em ligar Deus Pai e o Senhor Jesus Cristo nas suas bênçãos em suas cartas. Mas também é verdade que Paulo nunca dirige sua oração de agradecimento (eucharisteō, eucharistia) ou suas petições normais (deomai, deēsis) a Cristo; ele nunca 'glorifica (doxazō)' Cristo, cultualmente 'serve (latreuō, latreia)' a Cristo, ou 'adora (proskyneō)' Cristo. Mais típico é que seus agradecimentos e orações sejam oferecidos 'por meio' de Cristo a Deus. Igualmente significativo, dado que toda a sua missão estava sob constante crítica de judeus crentes mais tradicionalistas, é que nunca há qualquer indício de que tais judeus encontraram qualquer motivo para crítica na cristologia de Paulo sobre o senhorio de Jesus, isto é, não vemos judeus criticando Paulo porque o ensino dele era considerado uma violação à unidade de Deus e do direito de ser adorado que só Deus tinha. Visto que a hostilidade judaica à atitude de Paulo para com a lei, embora refletida pelos crentes judeus, é tão clara, é estranho imaginar que tenha existido uma objeção mais séria à sua cristologia (além daquela implícita em 1 Coríntios 1:23 e Gal. 3:13) que não foi refletida de uma forma equivalente a 1 Coríntios 1:23. 

09/08/2020

O que são os Evangelhos? por Marcus Borg

Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro Jesus, escrito por Marcus J. Borg e publicado no Brasil pela Globo Livros.

Os Evangelhos não são documentos históricos diretos, mas sim tradições em desenvolvimento do movimento cristão registradas por escrito no último terço do século I. Nos 47 anos entre o ministério de Jesus e a redação dos Evangelhos, os primeiros cristãos não apenas adaptaram as tradições sobre Jesus a novas circunstâncias como também continuaram a experimentar Jesus como uma realidade viva após sua morte. Os Evangelhos contêm tanto as memórias de Jesus de Nazaré quanto a experiência subsequente do Jesus pós-Páscoa.

Há, assim, pelo menos duas camadas de tradição, ou dois tipos de materiais, nos Evangelhos. Parte do material remonta ao Jesus pré-Páscoa, e é produto do movimento cristão primitivo. Ou, em outras palavras, os Evangelhos contêm pelo menos duas vozes — a voz do Jesus pré-Páscoa e a voz da comunidade no contexto pós-Páscoa. Construir a imagem do Jesus pré-Páscoa implica separar essas duas camadas, essas duas vozes.

O trabalho de um grupo de acadêmicos do qual faço parte, conhecido como Seminário de Jesus, ilustra esse processo muito bem. Desde que começamos em 1985, nos reunimos duas vezes por ano para decidirmos a precisão das falas de Jesus. Para muitas pessoas, a ideia de votar assuntos ligados a Jesus pode parecer bizarra e, para outras, blasfêmia. Entretanto, nossa votação tem um único propósito: medir o grau de consenso entre os acadêmicos sobre quanto desse material remonta ao próprio Jesus. Votamos sobre cada uma de suas falas ao escolhermos uma entre quatro pedrinhas coloridas e a depositarmos numa urna. As diversas cores — vermelho, rosa, cinza e preto — representam um espectro descendente de probabilidade histórica. Um voto vermelho quer dizer “tenho quase certeza de que Jesus disse isso”; o rosa, algo entre “provavelmente” e “mais provável que seja sim do que não”; cinza, algo entre “mais provável que seja não do que sim” e “provavelmente não”; e preto “tenho quase certeza de que Jesus não disse isso”.

Para referir o trabalho do grupo quanto ao entendimento dos Evangelhos como tendo pelo menos duas camadas, ou vozes, consideramos: um voto vermelho quer dizer “essa é uma parte do Evangelho que se aproxima muito da voz do Jesus pré-Páscoa”; um voto rosa quer dizer “sim, a voz de Jesus ainda está presente, mas está começando a ser afetada cada vez mais forte pela voz da comunidade”; um voto cinza implica dizer que o que foi dito é muito mais uma voz da comunidade; e o voto preto quer dizer que “isso é quase exclusivamente (e talvez completamente) a voz da comunidade”.

Se separarmos essas vozes, qual imagem de Jesus pré-Páscoa aparece? Nossas fontes escritas para lidar com essa questão têm pelo menos dois aspectos. A primeira (e mais importante) fonte são as camadas mais antigas de Mateus, Marcos e Lucas (os Evangelhos Sinóticos, também conhecidos simplesmente como os Sinóticos), que contêm as falas de Jesus, suas ações mais comuns e um arcabouço básico de seu ministério depois de adulto. Nossa segunda fonte são as camadas mais antigas do recém-descoberto Evangelho de Tomé, encontrado no Alto Egito em 1945. Esse Evangelho consiste apenas em falas de Jesus (114 ao todo), e pode-se defender que algumas delas remontam ao próprio Jesus.

Ausente em nossa lista de fontes está o Evangelho de João. Apesar de ser um testemunho poderoso e verdadeiro da experiência da comunidade do Jesus pós-Páscoa, ele não reflete muito precisamente o Jesus pré-Páscoa. Para usar o código de cores do Seminário de Jesus, quase tudo de João só recebeu votos pretos.

03/08/2020

Teologia não é história

Como todo jovem evangélico aficcionado por Bíblia, eu comecei meus estudos teológicos com a sistemática, e passei muitos anos pensando na Bíblia com o pressuposto da sistematização de seus ensinos, isto é, acreditando que os livros que compõem a Bíblia devem ser analisados como um todo coerente e sem contradições que é completo em si mesmo, onde cada texto pode e deve ser explicado à luz dos outros.

A minha intenção por trás de toda a incessante leitura da teologia sistemática sempre foi entender aquilo que os autores bíblicos queriam dizer, e isso, com o passar do tempo, me fez deixar a sistemática de lado porque percebi que, com ela, eu não estava entendendo o que os autores bíblicos pensavam, mas aquilo que os teólogos sistemáticos e suas diversas correntes pensavam. Com essa percepção, acabei dando mais atenção à exegese e história, que são a base para a sistemática, mas que, a meu ver, são mais seguras quando o assunto é entender aquilo que os autores bíblicos disseram.

Teologia não é história, e as duas não podem ser misturadas ou confundidas. O que percebi é que, em seu esforço para compreender o todo do pensamento de Deus na Escritura Sagrada, os teólogos sistemáticos não conseguem separar bem as coisas e acham que a teologia de sua tradição é a mesma teologia de Jesus e os apóstolos. Em outras palavras, eles cometem anacronismo quando não entendem que a sua teologia é desenvolvimento e não representa exatamente aquilo que os escritores bíblicos pensavam. Isso acaba causando confusão de método na leitura e interpretação dos textos, pois a sistemática pretende fazer algo com a Bíblia que a própria Bíblia não pretende fazer com ela mesma, isto é, a teologia sistemática acaba unindo a diversidade da Bíblia de uma maneira forçada, o que gera tradições, mas acaba traindo o sentido original dos textos. Não digo que isso não é legítimo, nem que está errado, só não acho que seja o caminho para entender os textos.

O fazer teologia em cima de textos antigos, por mais que eles falem de teologia, é algo diferente de apenas tentar entender esses textos por aquilo que eles são em si mesmos. Apesar de ser importante e válida, a sistemática não se preocupa essencialmente em explicar a intenção dos autores, mas com a criação de um sistema de pensamento bíblico global que não parece ter sido a intenção dos autores. Além de gerar tradição, a sistemática é resultado de tradição: ela faz algo que não é simplesmente entender o texto, mas interpretá-lo dentro do desenvolvimento de pensamento teológico da igreja como um todo e de cada corrente específica. O problema que vejo nas sistemáticas é que os autores não foram suficientemente a fundo na base exegética para depois tentar desenvolver uma sistematização, e a maioria deles é inclinada a ler nos textos aquilo que a sua tradição diz. 

Um bom exemplo da confusão entre teologia e história é o debate sinergismo vs. monergismo e a interpretação da Carta de Tiago à luz das cartas de Paulo ou vice-versa. Tentando achar uma solução bíblica para questões modernas, o teólogo sistemático usa os textos biblicos para responder perguntas que nunca foram feitas pelos autores. Em sua ânsia para provar um ponto de sua tradição teológica, ele então coloca na cabeça dos autores pensamentos que eles nunca tiveram, simplesmente porque não conhece o contexto histórico da época e porque não fez uma exegese precisa. Com isso, dependendo de sua corrente teológica, o teólogo sistemático pensa que Paulo e Tiago eram monergistas ou sinergistas, sendo que isso nunca passou pela mente dos dois. Não que não ache que essas perguntas não podem ser feitas: elas podem e devem. Só não acho que Paulo ou Tiago as tenham feito, pois o que eles debatiam não era aquilo que Lutero debateu.

Minha pergunta seria: será que Paulo e Tiago estavam escrevendo em conjunto? Escreveram para serem lidos e sistematizados? Eu acredito que não, e não consigo mais ler a Bíblia assim, apesar de saber que é uma forma válida de fazê-lo. Essa leitura, no entanto, precisa ser feita de forma consciente: o teólogo sistemático deve entender seu papel e não misturar a sua sistematização com história. Uma coisa é ler a Bíblia com o pressuposto de que ela é a palavra de Deus e pode ser sistematizada, outra coisa é fazer exegese para entender o que cada texto significou para o autor na sua época e contexto. O meu grande problema com a sistemática é que ela confunde tradição com método histórico e coloca palavras na boca dos autores. O que notei é que se você faz a exegese corretamente, percebe que a sistemática não era a intenção dos autores.

A teologia sistemática é um tipo de filosofia; é desenvolvimento de pensamento em cima de textos que foram escritos sem a intenção de serem desenvolvidos. Visto que minha intenção sempre foi entender aquilo que os autores estavam dizendo, e não o que uma corrente de desenvolvimento teológico tem a dizer, acabei focando minha atenção no estudo da base exegética e histórica. Isso tem me trazido problemas de sistemática, mas ainda não me preocupei em resolvê-los.