Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro Jesus, escrito por Marcus J. Borg e publicado no Brasil pela Globo Livros.
Há, assim, pelo menos duas camadas de tradição, ou dois tipos de materiais, nos Evangelhos. Parte do material remonta ao Jesus pré-Páscoa, e é produto do movimento cristão primitivo. Ou, em outras palavras, os Evangelhos contêm pelo menos duas vozes — a voz do Jesus pré-Páscoa e a voz da comunidade no contexto pós-Páscoa. Construir a imagem do Jesus pré-Páscoa implica separar essas duas camadas, essas duas vozes.
O trabalho de um grupo de acadêmicos do qual faço parte, conhecido como Seminário de Jesus, ilustra esse processo muito bem. Desde que começamos em 1985, nos reunimos duas vezes por ano para decidirmos a precisão das falas de Jesus. Para muitas pessoas, a ideia de votar assuntos ligados a Jesus pode parecer bizarra e, para outras, blasfêmia. Entretanto, nossa votação tem um único propósito: medir o grau de consenso entre os acadêmicos sobre quanto desse material remonta ao próprio Jesus. Votamos sobre cada uma de suas falas ao escolhermos uma entre quatro pedrinhas coloridas e a depositarmos numa urna. As diversas cores — vermelho, rosa, cinza e preto — representam um espectro descendente de probabilidade histórica. Um voto vermelho quer dizer “tenho quase certeza de que Jesus disse isso”; o rosa, algo entre “provavelmente” e “mais provável que seja sim do que não”; cinza, algo entre “mais provável que seja não do que sim” e “provavelmente não”; e preto “tenho quase certeza de que Jesus não disse isso”.
Para referir o trabalho do grupo quanto ao entendimento dos Evangelhos como tendo pelo menos duas camadas, ou vozes, consideramos: um voto vermelho quer dizer “essa é uma parte do Evangelho que se aproxima muito da voz do Jesus pré-Páscoa”; um voto rosa quer dizer “sim, a voz de Jesus ainda está presente, mas está começando a ser afetada cada vez mais forte pela voz da comunidade”; um voto cinza implica dizer que o que foi dito é muito mais uma voz da comunidade; e o voto preto quer dizer que “isso é quase exclusivamente (e talvez completamente) a voz da comunidade”.
Se separarmos essas vozes, qual imagem de Jesus pré-Páscoa aparece? Nossas fontes escritas para lidar com essa questão têm pelo menos dois aspectos. A primeira (e mais importante) fonte são as camadas mais antigas de Mateus, Marcos e Lucas (os Evangelhos Sinóticos, também conhecidos simplesmente como os Sinóticos), que contêm as falas de Jesus, suas ações mais comuns e um arcabouço básico de seu ministério depois de adulto. Nossa segunda fonte são as camadas mais antigas do recém-descoberto Evangelho de Tomé, encontrado no Alto Egito em 1945. Esse Evangelho consiste apenas em falas de Jesus (114 ao todo), e pode-se defender que algumas delas remontam ao próprio Jesus.
Ausente em nossa lista de fontes está o Evangelho de João. Apesar de ser um testemunho poderoso e verdadeiro da experiência da comunidade do Jesus pós-Páscoa, ele não reflete muito precisamente o Jesus pré-Páscoa. Para usar o código de cores do Seminário de Jesus, quase tudo de João só recebeu votos pretos.