01/11/2020

Abraão: personagem histórico ou reflexo da religião judaica?

Ao contrário do que o mundo evangélico fundamentalista possa imaginar, a historicidade do personagem biblico Abraão não é algo certo apenas porque a sua vida está descrita na Bíblia. É muito difícil chegar à origem das narrativas que falam sobre Abraão. Elas são fruto de anos e anos de tradições e histórias passadas em forma oral entre várias gerações, e só Deus sabe o quanto foram modificadas até chegar à forma que conhecemos hoje e de onde realmente surgiram.

Em seu livro "The Legends of Genesis", Hermann Gunkel sugere que muitos dos nomes dos patriarcas na realidade eram nomes de tribos e cidades que foram personificados:

“Nos períodos mais antigos da história humana, o homem individual contava muito pouco. Existia muito mais interesse nos destinos da raça: a tribo, a nação, são consideradas entidades reais muito mais do que nos dias atuais. Por isso, em histórias primitivas, o destino de uma raça é descrito como o destino de uma pessoa: a raça suspira, triunfa, é abatida, revolta-se, morre, revive, etc. Assim, também, as relações das raças são consideradas como as relações entre indivíduos."

Contudo, quando essa forma de falar sobre uma tribo, povo ou raça se modificou, a linguagem antropomórfica para falar sobre famílias tribais foi esquecida e transformou-se em histórias sobre a vida de patriarcas:

"À medida em que o mundo se tornava mais prosaico e essas expressões não eram mais compreendidas na narrativa simples, perguntou-se quem essas pessoas, Jacó, Judá, Simeão, realmente eram, e a resposta dada foi que eles eram os patriarcas, e as raças e tribos posteriores, seus filhos; uma resposta que parece ser natural, uma vez que era costume referir-se aos israelitas e amonitas individuais como 'Filhos de Israel' e 'Filhos de Amon'."

Quanto a Abraão, Gunkel levanta a hipótese de que a lenda de da vida de Abraão poderia ter se originado como relatos mitológicos de deuses que posteriormente foram modificados com o passar dos milênios até chegar àquela forma que pode ser lida em Gênesis, isto é, mitos sobre a vida de deuses pagãos, com o passar dos anos, foram adotadas, editadas e transformadas pelo povo de Israel:

"Sara e Milca são, como sabemos, nomes das deusas de Harã, com as quais as figuras bíblicas de Sara e Milca talvez tenham alguma conexão. Isso sugere muito facilmente o pensamento de que Abraão, o marido de Sara, foi substituído pelo deus (lua) de Harã."

Gunkel admite que isso são apenas especulações, e realmente não podemos passar disso, pois as histórias são tão antigas e passaram por tantas camadas de edição e compilação que fica muito difícil bater o martelo quanto ao significado original de cada história. Contudo, isso mostra que a real historicidade de Abraão não é algo tão simples a ser afirmado, e uma coisa é clara. Para Gunkel,

"Alguns deles [patriarcas] são realmente nomes de países, ou raças, e de tribos, como por exemplo, Israel, Ismael, Amon, Moabe, Raquel, Lia, Agar, Cetura e as tribos de Israel. [...] Com essa evidência, devemos concluir que Jacó era originalmente o nome de um distrito cananita que existia em Canaã antes da imigração israelita."

É claro que, como dito acima, não é tudo preto no branco. Cada narrativa precisa ser analisada com cuidado, e não tem como definir nada ao ponto da certeza, pelo menos em vários casos. Mas a verdade é que, se realmente existiu como pessoa, a vida de Abraão não se deu exatamente como descrita pelo texto, porque é possível perceber inúmeras modificações e influências externas nas histórias, o que sugere que elas são tradição oral modificada, editada e compilada com o passar dos anos.

"A apologética meditativa costuma dar grande importância à verdade histórica de Abraão; em nossa opinião, não há mais lugar para essa suposição e, além disso, é difícil ver qual significado essa posição possa ter para a religião e para a história da religião, pois, mesmo que tivesse existido um líder com o nome de Abraão que conduziu a migração de Harã para Canaã, como geralmente se acredita, todos aqueles que sabem alguma coisa sobre a história das lendas concordam que não se pode esperar que uma lenda preserve, ao longo de tantos séculos, uma imagem da piedade pessoal de Abraão. A religião de Abraão é, na realidade, a religião dos narradores das lendas atribuídas por eles a Abraão."

A vida de Abraão é uma lenda que foi formada pela cultura judaica, e a religião dele reflete aquilo que a sociedade judaica da época pensava sobre Deus. Se existiu ou não, dificilmente o relato que temos dele é algo fidedigno quanto a sua real personalidade.