07/11/2020

O fundamentalismo evangélico e a autoria mosaica do pentateuco

Qualquer fundamentalista evangélico não veria problema em aceitar que, segundo os parâmetros e métodos acadêmicos de análise textual e histórica, a história dos gêmeos Rômulo e Remo sendo alimentados por uma loba não reflete a realidade histórica sobre o nascimento de Roma, mas que essa é uma lenda fundadora que surgiu durante os séculos de formação do povo que veio a se tornar o Império Romano. Contudo, quando se trata da narrativa bíblica sobre a formação de Israel, o método histórico é completamente colocado de lado por essas pessoas.

Um exemplo disso é a autoria mosaica do pentateuco. Segundo a narrativa bíblica, Moisés teria vivido muito tempo depois do dilúvio, e a pergunta a ser feita sobre ele ter sido o autor de Gênesis e dos outros livros que formam a Torá é como as histórias pré-diluvianas e dos patriarcas de Israel chegaram até ele para que o mesmo pudesse escrever sobre elas. Por exemplo, como Moisés ficou sabendo sobre o momento da criação do mundo, onde não haviam testemunhas; sobre os pensamentos íntimos de Deus acerca da Torre de Babel ou da sua decisão de ter expulsado Adão e Eva do paraíso; sobre a vida de Abraão, Isaque e Jacó, pessoas que teriam vivido séculos antes dele?

A resposta padrão do fundamentalismo evangélico que acredita que a Bíblia é um relato histórico fidedigno das origens do mundo e do povo hebreu é que tradições orais foram transmitidas de geração em geração durante milênios até que chegassem a Moisés. Isso significa que a tradição oral passou de Adão para Noé, sobreviveu o dilúvio, percorreu por todos os descendentes de Cam, Sem e Jafé até alcançar Abraão, Isaque e Jacó, seus doze filhos e finalmente chegar aos ouvidos de Moisés, que registrou tudo por escrito após centenas de anos de escravidão do povo judeu no Egito. E isso tudo com listas de nomes, descendentes, anos de vida de cada um e até a profundidade das águas do dilúvio. Trata-se de simples tradição oral transmitida de uma pessoa para a outra que sobreviveu virtualmente sem mudanças importantes durante milênios.

É claro que o método histórico não apoia tal explicação. Para dar um pequeno exemplo de como essa seria uma hipótese muito difícil de ter acontecido, basta perguntar por que existem histórias que vão do começo do mundo até o final da vida dos doze filhos de Jacó, enquanto não existe nada importante ou elaborado sobre os quatrocentos anos que se passaram no Egito antes do nascimento de Moisés. Como um povo que preservou milênios de tradições orais sobre o início de sua história de repente anula quatro séculos para, de forma mágica, começar a falar sobre a vida de Moisés, o qual finalmente resolveu narrar a origem de tudo? Por que existe esse espaço em branco que vai do fim de Gênesis até o começo de Êxodo, sendo que toda a história anterior foi guardada em pequenos detalhes pela tradição? 

Quase dois séculos de crítica redacional do pentateuco demonstram que esses livros se originaram através da edição e compilação de várias fontes que surgiram em épocas diversas e que apresentam opiniões teológicas diferentes. O início de Gênesis, por exemplo, até o surgimento do personagem Abraão, é um compilado de mitos especialmente mesopotâmicos e babilônicos sobre a origem do mundo que foram profundamente editados durante os séculos de formação do povo hebreu com o objetivo de mostrar a teologia distinta que se desenvolveu no meio desse povo. As histórias sobre os patriarcas de Israel são basicamente lendas sobre cidades, povos e tribos que foram personificados e deram origem aos heróis apresentados como fundadores da nação de Israel. Tudo isso foi finalmente compilado em um único volume já em um período muito avançado da história do povo judeu. A forma com que o texto foi construído deixa transparecer a união de várias explicações sobre a origem do universo e dos povos advindas do mundo do Oriente Próximo que foram modificadas para apresentarem a linguagem e as opiniões específicas da teologia hebraica que se formou durante séculos. Já a moral do povo judeu e a sua lei refletem uma forte influência do Código de Hamurabi e da justiça moral dos egípcios, indícios claros de que isso tudo se formou pelo contato com outros povos e pelo desenvolvimento natural do pensamento de uma (ou várias) grande(s) comunidade(s).

Quando confrontados com essa proposta acadêmica de explicação para a autoria da Torá e percebem a dificuldade que existe na possibilidade da realização prática de sua versão sobre a origem e autoria desses textos; quando se dão conta de que suas crenças sobre como o pentateuco surgiu têm uma probabilidade muito pequena de serem verdadeiras segundo o método histórico e a análise textual, os fundamentalistas logo apelam ao milagre para explicar o problema: mesmo que tudo isso seja muito difícil de ter acontecido, nada é impossível para Deus. Ele preservou as histórias de forma milagrosa e elas chegaram até nós. Afinal, Jesus acreditava na autoria mosaica do pentateuco.

É muito interessante notar como o fundamentalismo aceita a explicação crítica para origem das lendas sobre o surgimento do império romano, mas se recusa a usar o mesmo critério quando se trata da Bíblia. Os evangélicos estão tão acostumados a ver o texto bíblico como fonte de autoridade divina, que qualquer explicação serve para aceitarem a historicidade do relato bíblico, pois o pressuposto é de que a Bíblia é a inerrante palavra de Deus e, portanto, não poderia conter qualquer irrealidade histórica. Se Rômulo e Remo estivessem na Bíblia, certamente seriam tidos como personagens históricos pelos mesmos evangélicos que afirmam a origem mitológica dessa história. 

Com esse peso de autoridade divina sobre um texto antigo e essa fortíssima ligação emocional e cultural com a Bíblia, os fundamentalistas não deixam nada passar pela esfera da análise crítica racional quando o assunto são as histórias bíblicas: é tudo uma questão de fé. Isso pode servir para o ambiente das igrejas evangélicas, mas não serve para o mundo real.