27/11/2020

"E quem é o meu próximo?”: O entendimento do mestre da lei em Lc 10.29 e o questionamento a Jesus - Por Giovane Vargas

Artigo escrito por Giovane Vargas

Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "E quem é o meu próximo?" (Lucas 10:29).

No diálogo entre Jesus e o doutor lei, uma questão extremamente relevante para os dias atuais é apresentada. Segundo o escritor da comunidade lucana, a pergunta estava baseada na intenção do doutor da lei ao justificar os seus atos. Esse personagem parece ter dado uma resposta satisfatória a Jesus anteriormente. Contudo, mesmo em meio ao elogio sobre a resposta anterior, ele recebeu uma ordem para praticar a sua resposta. Com base nessa ordem, a pergunta de Lc 10:29 é levantada pelo doutor da lei: “E quem é o meu próximo?”

Escrevendo sobre esse texto, Ibn al-Ṭayyib afirma: "A pergunta direcionada a Cristo 'Quem é o meu próximo?' é feita a fim de que ele responda: 'Os seus parentes e amigos'. Então o doutor da lei poderia seguir dizendo: 'Tenho amado plenamente essas pessoas'. Jesus teria de o exaltar e assumir: 'Verdadeiramente, você cumpriu a lei'. O Mestre da lei poderia ir embora exaltando-se diante do povo por suas obras e alegrando-se de uma honra nova e confiança, conseguidas com base nessa afirmação." (Kenneth Bailey, As Parábolas de Lucas, ed. São Paulo).

A pergunta “quem é meu próximo?” ou “quem devo amar realmente?” “quem devo servir?” “quem é digno da minha dedicação?” presente no diálogo de Jesus, é também fruto de um grande debate nos movimentos religiosos, políticos e geográficos da atualidade, e levanta a necessidade de um esclarecimento. Entretanto, o assunto geralmente é proposto por intenções similares àquelas atribuídas ao doutor da lei na narrativa da comunidade lucana.

Comentando o texto de maneira exegética, Rinaldo Fabris e Bruno Maggioni lançam luz sobre o real olhar em Levíticos que baseava o assunto segundo a palestina do primeiro século:

"É uma questão aberta nas discussões dos mestres judeus. A prática do amor a Deus pode ser inculcada, recomendada com exortações e exemplos, mas o amor ao próximo levanta todo tipo de perguntas ligadas às divisões e estratificações da vida social e religiosa. Até onde vai o amor ao próximo? No AT, 'próximo' era o compatriota, membro do povo de Deus, e também o imigrante inserido na comunidade israelita (Lv 19.33-34). No tempo de Jesus, tinham se acrescentado outras restrições e, portanto, o próximo era praticamente o membro da seita ou do grupo religioso (fariseus, essênios, zelotes, etc.)" (Os Evangelhos II, ed. São Paulo)

Diante desse contexto de discussão sobre quem, de fato, é o meu próximo e as visões usuais das diversas ramificações do judaísmo intermediário está o texto de Levítico:

“Não guardem ódio contra o seu irmão no coração; antes repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado. Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor. O estrangeiro residente que viver com vocês será tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.” (Levítico 19:17, 18, 34 - NVI).
 
Tendo esse texto como base, o máximo que um judeu palestino daqueles dias poderia chamar de 'próximo' eram os estrangeiros que habitavam a sua terra. Entretanto, esses judeus jamais achariam na lei um 'subterfúgio de amor' para todo ser humano, seja pagão, samaritano, romano, etc. A comunidade lucana, provavelmente gentílica em sua maioria, encontra, nesse diálogo, a acalentadora resposta de Jesus através de uma parábola -- provavelmente a mais conhecida daquelas atribuídas aos ensinos de Jesus: o samaritano da mensagem de Jesus teve piedade e tempo para parar os seus afazeres e cuidar de quem estava quase morto, sendo que, no contexto desse zelo, o amor a Deus era a base dessa ação, e amar a Deus dependia exclusivamente de acolher e cuidar do necessitado.

O doutor da lei teve uma ordem para proceder: "Vá e faça o mesmo" (Lc 10:37b). A comunidade do texto de Lucas encontrou o conforto de ser o próximo alcançado por esse amor que vai para além da lei e a tarefa de cuidar do sofredor pelo caminho. Amar o próximo, na mensagem do Evangelho Segundo Lucas, ganha um significado novo: olhar para os necessitados, independente do que creiam e de quem sejam.