“Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.” (Gênesis 1:24-25)
Uma das coisas que ficam claras com a leitura do primeiro relato da criação narrado em Gênesis (1:1 a 2:3) é que o autor (ou autores/editores) pretende explicar como o mundo que ele conhece veio a existir. Uma das características desse mundo é a divisão clara entre os tipos de animais que pode ser percebida em qualquer lugar da terra. Existem diferenças óbvias entre grupos de animais, e o autor de Gênesis, juntamente com a tradição teológica que herdou, percebeu isso e buscou explicar como Deus os havia criado.
Contudo, a tradução em português pode nos dar a impressão errada sobre como o autor pensava sobre esses grupos, porque as palavras usadas para descrever as diferenças já estão carregadas de um significado moderno que era desconhecido para o autor original. Por exemplo, quando ouvimos a palavra “espécie”, logo a interpretamos segundo o viés evolucionista que classifica animais em grupos e subgrupos segundo uma definição muito específica. Contudo, é claro que o autor de Gênesis não tinha conhecimento algum sobre os pensamentos de Darwin ou sobre a biologia moderna. A palavra hebraica traduzida por "espécie" em Gênesis tem a ver com "tipo", e não corresponde à definição que a biologia moderna traz dessa palavra. Ela reflete uma divisão superficial/simples/grosseira feita por alguém que observa o comportamento dos animais e procura explicar a sua origem levando em conta particularidades expressivas; alguém que olha para um morcego e o classifica como ave porque ele voa. Portanto o termo original jamais deveria ser traduzido como "espécie", pois isso só confunde o leitor, fazendo-o achar que o autor pensava como um biólogo do século XXI.
Uma clara divisão apresentada em Gn 1:24-25 são os animais domésticos, répteis e animais selváticos. Esses termos podem dar a impressão de que o autor estava falando das mesmas classes de animais que conhecemos e que aceitamos hoje. Por exemplo, animais domésticos são gatos, cachorros, hamsters, peixes dourados, etc.; répteis são jacarés, cobras, tartarugas, etc.; e animais selváticos (ou selvagens) são gorilas, cangurus, lobos, elefantes, girafas, etc. Contudo, não foi bem assim que o autor de Gênesis classificou os animais nesse texto.
A divisão tem mais a ver com animais que são "cultiváveis", como bois, porcos e cabras; animais não cultiváveis, como leões, ursos e tigres; e também animais que rastejam, um grupo que poderia abranger desde cobras e lagartas, até pequenos quadrúpedes e animais que classificaríamos como anfíbios. Deveria ser algo claro para o intérprete de Gênesis o fato de que o autor conhecia apenas os animais da sua região. Portanto, não se pode pensar que ele estaria falando de um alce, por exemplo, porque esse animal não existia no Oriente Próximo há cerca de 3 mil anos atrás, contexto de onde surgiu o livro de Gênesis.
Em seu comentário de Gênesis, John Skinner afirma que “a classificação dos animais é tripla: (1) animais selvagens (basicamente carnívoros); (2) animais domesticados (herbívoros); (3) répteis, incluindo talvez insetos rastejantes e quadrúpedes muito pequenos. Uma divisão tríplice um tanto semelhante aparece em uma tábua da Babilônia - ‘gado do campo, bestas do campo e criaturas da cidade.’” (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. v-vi).
Portanto, o autor era uma pessoa que estava tentando explicar o mundo como o enxergava, carregando consigo toda a sua ideia teológica pré-estabelecida. Ele não é um naturalista inglês do final do século XIX que estava catalogando animais com a teoria de Darwin na cabeça, mas um hebreu do Oriente Próximo que viveu há milênios atrás e que, com influências religiosas e culturais do seu contexto local e temporal, estava mostrando a sua visão de como Deus havia ordenado o mundo que esse autor conhecia.
Isso é algo muito óbvio, e só não o enxerga quem acredita que o relato da criação narrado em Gênesis é uma revelação direta de Deus sobre como as coisas são. A pessoa que acredita nisso faz a seguinte racionalização: Deus sabe de cada detalhe do mundo; em Gênesis, o próprio Deus revelou como esse mundo foi criado e como ele funciona; a ciência moderna mostra que existem vários animais na terra e os classifica de certa maneira; portanto, Gênesis está falando de todos esses animais, sem distinção alguma do contexto social e do horizonte de consciência do autor. Apesar de essa forma de pensar fazer sentido para a apologética cristã que mistura Gênesis com ciência moderna e que tenta comprovar a Bíblia usando o método científico, ela não funciona para a exegese sincera de quem quer apenas entender o texto por aquilo que ele é.