Artigo retirado do Dictionary of Late New Testament & Its
Developments, InterVarsity Press, Editores: Ralph P. Martin e Peter H. Davids,
pp. 91-95.
Tradução: Renan Rovaris
Arquitetura, Igreja
Antiga
Evidências literais e não
literais apontam para a residência doméstica como sendo a via para as reuniões
cristãs primitivas. Esse padrão é afirmado no Livro de Atos dos Apóstolos, onde
lemos que os primeiros crentes se reuniam em casas privadas, e nas cartas de
Paulo, onde vemos que as novas comunidades estabelecidas pelo apóstolo eram
centradas em casas. As reuniões de cristãos em casas privadas continuaram a ser
a norma até as primeiras décadas do século IV, quando Constantino (Imperador
Romano) começou a erguer as primeiras basílicas cristãs. Durante quase
trezentos anos, os crentes se reuniram em casas, não em sinagogas ou edifícios
construídos com o único propósito de reuniões religiosas.
- A Necessidade e Desenvolvimento de Casas-Igrejas
- A Casa-Igreja, 50-150
- Domus Ecclesiae, 150-250
- Aula Ecclesiae, 250-313
1. A Necessidade e o
Desenvolvimento das Casas-Igrejas
A reunião de cristãos em Casas-Igrejas
não ocorreu por acaso. Quatro razões se destacam para a escolha da casa como um
local de encontro. Primeiro, os “aposentos superiores” (At 1:13) e residências
domésticas estavam disponíveis imediatamente. Segundo, a estrutura doméstica
oferecia um local de encontro relativamente discreto. Embora o ambiente
doméstico não fosse uma garantia contra a perseguição, (veja At 8:3), nos
primeiros anos, quando a perseguição era uma ameaça, os cristãos eram discretos
ao fazer suas escolhas para locais de reunião. Terceiro, os judeus na Palestina
e na Diáspora se reuniam em Casas-Sinagogas. Visto que muitos dos crentes primitivos
eram judeus e prosélitos (gentios convertidos ao judaísmo), não é difícil
imaginar as comunidades cristãs adotando padrões judaicos, principalmente se
levarmos em conta a similaridade que havia entre as atividades da Casa-Igreja e
da Casa-Sinagoga. Quarto, a “casa” fornecia tudo o que era necessário para uma
reunião cristã e, o mais importante, também oferecia as instalações necessárias
para preparar, servir e tomar a Ceia do Senhor.
O período cristão primitivo de
50-313 pode ser dividido aproximadamente em três estágios de desenvolvimento.
Durante o primeiro estágio (c. 50-150), os cristãos se reuniam em casas
privadas que pertenciam a membros individuais, ou benfeitores, da comunidade. O
nome “Casa-Igreja” é mais apropriadamente aplicado a este período. A Casa-Igreja,
por definição, é uma casa, uma residência doméstica, que não teve sua
arquitetura alterada para a reunião cristã e era usada pelo menos
ocasionalmente pela comunidade cristã local ou por parte dela.
Durante o segundo estágio (c.
150-250), residências domésticas privadas foram renovadas para o uso exclusivo
de reuniões das comunidades cristãs. Em alguns casos, essas casas reformadas
haviam sido usadas anteriormente como um local de reunião pelos crentes durante
períodos mais antigos. Essas alterações arquitetônicas e mudança de função são
duas características da assim chamada domus
ecclesiae, apropriadamente traduzido ao português por “centro da
comunidade” ou “casa de reunião”.
Durante o terceiro e último período (c. 250-313), construções maiores e salões, privados e públicos, foram usados. Esses edifícios maiores precederam a arquitetura das basílicas da era de Constantino, e algumas delas podem ter funcionado como domus ecclesiae anteriormente. Tais construções tinham um formato retangular e não apresentavam nenhuma característica formal da arquitetura das basílicas posteriores.
Descobertas arqueológicas recentes
permitiram a reconstrução da história da arquitetura cristã. A discussão que se
segue aqui oferece os desenvolvimentos mais abrangentes da arquitetura das
igrejas anteriores à era de Constantino, juntamente com alguns exemplos
ilustrativos.
2. A Casa-Igreja
O Livro de Atos dos Apóstolos nos
apresenta uma imagem de crentes primitivos se reunindo regularmente em casas e
“aposentos superiores” (At 2:46; 5:42; cf. At 1:13, 15-16; 20:7-8). Duas
possibilidades se apresentam: a comunidade primitiva alugava um aposento que
era parte de uma residência doméstica (cf. P.Oxy 1129, 1036, 1038, 2190 e P.
Mich. Inventory 319) ou um benfeitor cristão e proprietário de uma casa
separava um aposento, ou um andar inteiro de aposentos, para o uso da
comunidade primitiva. Existem evidências
do Farisaismo do Segundo Templo confirmando que salões de segundo andar e salas
de jantar (triclinium) eram usados
como um local de estudo e haburoth,
ou reuniões da “irmandade” (e.g., M. Sabb. 1:4).
Em Atos 12:12, Pedro, tendo
escapado da prisão, vai até a casa de Maria, mãe de João Marcos, onde muitos
dos crentes estavam reunidos orando. Presumivelmente, essa era uma casa
disponibilizada regularmente para a comunidade. Os detalhes incidentais sugerem
que essa casa não fazia parte de uma insulae,
ou complexo de “apartamentos”, mas era uma casa grande com um acesso ou portal
que servia de separação entre a rua e o pátio interior e os cômodos.
Lucas não nunca mostrou toda a
comunidade pós-pentecostes reunida em um local. Se nós temos que entender o
número três mil como uma contagem acurada desses crentes em algum sentido, (At
2:41; cf. At 4:4; 5:14; 6-7), eles obviamente não poderiam ter se reunido
debaixo de um único telhado. A própria instrução de Pedro para o grupo reunido
na casa de Maria sugere a realidade de múltiplos lugares de reunião: eles
deveriam comunicar a sua libertação do cárcere para Tiago e “os irmãos” (At
12:17), que estavam presumivelmente se reunindo em outro lugar.
O problema da comunidade cristã
primitiva em garantir um número suficiente de casas para as suas reuniões pode
encontrar a sua solução no judaísmo do mesmo período. A maioria das sinagogas
eram cômodos únicos de casas. A maioria dos crentes primitivos que residiam em
Jerusalém eram judeus, e o seu número incluía indivíduos que possuíam meios
financeiros. É plausível que alguns desses judeus cristãos houvessem aberto
suas casas anteriormente (ou parte delas) para a comunidade da sinagoga. Teria
sido natural para esses patronos, tendo agora se tornado seguidores de Jesus,
usar as mesmas instalações como um lugar de reunião para a comunidade cristã.
Arqueólogos descobriram ruínas de
residências domésticas em Jerusalém que nos permitem ter um relance das
condições sob as quais esses cristãos primitivos podem ter se reunido.
Escavações em uma área a oeste da cidade (Cidade Alta) revelaram um distrito
residencial que incluía algumas casas bastante grandes. As unidades de
habitação individuais eram extensas, com pátios interiores, característica de
vilas luxuosas construídas no estilo do período helenístico-romano. Esse era o
local onde viviam as famílias nobres de Jerusalém.
A assim chamada Mansão Palacial é
um exemplo de residência ostentosa que poderia facilmente ter acomodado os
tipos de atividades descritas em Atos. A casa media mais de 600 m² e incluía um
andar superior para habitação e um porão para instalações de água (piscinas,
banhos e cisternas). A estrutura provavelmente incluía um segundo andar, um
nível formado por quartos, mas a destruição de Jerusalém no ano 70 tornou a
reconstrução desse andar impossível.
Os numerosos cômodos dessa
espaçosa mansão eram agrupados ao redor de um pátio. Os afrescos ornamentados
encontrados em muitos cômodos testificam a forte influência helenista, como
também pode ser observado em Pompéia. Duas características proeminentes são
dignas de nota: primeiro, o grande salão de recepção medindo 6,5 metros de
largura e 11 metros de comprimento (71,5 m²). O acesso vindo do pátio era
através de uma sala de separação por meio da qual outras áreas também podiam
ser acessadas. Nossa estimativa é de que esse salão de recepção poderia ter
acomodado setenta e cinco pessoas. O acesso para outros três cômodos menores
era feito somente através desse salão. Os afrescos ornamentados (colunas
Jônicas contendo um friso Dórico esquematizado) nesses cômodos sugerem um
caráter público. Tomando como um todo, o salão e os cômodos adjacentes teriam
acomodado muito confortavelmente cerca de cem pessoas.
A segunda característica são as
instalações de água no andar inferior. Juntamente com um pequeno e lindo
banheiro decorado, havia dois banheiros maiores para a realização de rituais,
cada um com uma entrada dupla. N. Avigad sugere que a ênfase na purificação
ritualística nesse domicílio beira um “culto de imersão.”
Atos fala sobre um número significativo
de sacerdotes que creram na pregação dos apóstolos (At 6:7). Embora Atos não
faça uma correlação entre esses sacerdotes e as reuniões domésticas, nós
encontramos um padrão consistente de convertidos que poderiam ter sido
benfeitores significativos, incluindo a provisão de casas para a comunidade se
reunir. Instalações com água como aquelas na Mansão Palacial poderiam ter sido
aproveitadas para batismos cristãos.
Vários textos em Atos (do capítulo 13 ao 18) e nas
epístolas paulinas fazem referência a residências privadas que eram usadas como
lugares para os cristãos reunirem-se e que eram onde o apóstolo encontrava
hospitalidade em suas viagens (veja 1 Co 16:19; Cl 4:15; Fl 2; Rm 16:5).
Na narrativa seletiva que Lucas
faz das missões de Paulo e do estabelecimento de igrejas pelo Império Romano,
encontramos Paulo convertendo consistentemente proprietários capazes de ser
benfeitores, incluindo o oferecimento de uma casa para a reunião dos cristãos
(e.g. Lídia, At 16, e Tito, o Justo, At 18). Isso era importante porque o
domicílio predominante em áreas urbanas era a insula, ou um complexo de
apartamentos: somente 3% da população viviam em um domus, ou casa. O número
desproporcional de insulae é
provavelmente uma evidência do alto custo de moradia. Ter uma casa e
propriedade era um dos indicadores principais de riqueza e status. Assim, a
conversão de uma família ou chefe de família era um meio estratégico de
estabelecer um novo culto em um ambiente desconhecido, e a família permaneceria
como a base mais forte para as reuniões dos cristãos.
É razoável assumir que, em Corinto,
por exemplo, Áquila e Priscila teriam aberto a sua casa para a comunidade
cristã. Quando se mudam para Éfeso com Paulo (At 18:18), eles estão com uma
“igreja em sua casa” (1 Co 16:19 e também algumas testemunhas apócrifas), e
quando mais tarde restabelecem sua residência em Roma (At 18:1-2), novamente
eles têm uma “igreja em sua casa” (Rm 16:3-5).
Visto que as Casas-Igrejas não
demandavam alterações arquitetônicas, seus restos arqueológicos são
indetectáveis, a menos que elas fossem posteriormente incorporadas a uma domus ecclesiae e/ou uma aula ecclesiae. Em Corinto, as
escavações das ruínas da vila romana nas imediações do Portão de Sicião (Sicyonian Gate), a casa nas mediações do
Templo E e a suntuosa vila em Anaploga são exemplos de residências nas quais a
comunidade primitiva teria se reunido.
3. Domus Ecclesiae, 150-250
A mudança radical na posição
social e na composição das comunidades cristãs demandou mudanças nos locais de
reunião. Mais precisamente, comunidades mais pobres continuaram a se reunir em
residências domésticas, mas em muitas áreas os cristãos começaram a adquirir
propriedade, talvez por meio de procurações através de um membro ou do bispo.
3.1. Cafarnaum, Galiléia. As escavações arqueológicas em Cafarnaum
sugerem que a antiga casa de Pedro foi transformada posteriormente em uma domus ecclesiae e pode ser a evidência
mais antiga do que foi originalmente uma Casa-Igreja. Diferente das ruínas em
Dura-Europos, as ruínas em Cafarnaum não permitem uma reconstrução perfeita do
edifício original e de sua história de desenvolvimento estrutural porque uma
igreja bizantina octogonal do século V foi construída no mesmo local e porque a
subsequente invasão persa de 614 resultou no fim do domínio cristão bizantino e
na demolição dos locais cristãos. Entretanto, com o renovado interesse na
Galiléia e com detalhados relatórios arqueológicos, uma reconstrução
satisfatória é possível.
Debaixo da igreja bizantina
octogonal estão os restos de duas construções mais antigas. Os restos mais
antigos testificam sobre uma insula
comum, ou construções acopladas, que eram habitações domésticas próprias da
pequena comunidade de pescadores de Cafarnaum. Dentro desse complexo, datando
do primeiro século d.C., há um grande salão (7x6.5 m = c. 45.5 m²) que foi
venerado por cristãos como sendo a casa de Pedro. Este salão provavelmente foi
usado pela comunidade local de cristãos judeus enquanto outros cômodos da
insula continuaram a funcionar como parte da residência doméstica. Essa adaptação parcial da casa, com os
cômodos circundantes continuando a fazer parte da vida do dia a dia, continuou
até o período romano tardio, quando a comunidade aumentou a antiga casa
adicionando ao salão um átrio ao leste e dependências ao norte e fechando toda
a pequena insula da casa de Pedro dentro de um recinto sagrado para servir às
necessidades da comunidade e dos peregrinos. Subsequentemente, esse complexo
inteiro foi suplantado pela igreja octogonal do século V.
3.2. Dura-Europos, Síria. A evidência de Dura-Europos, uma cidade
de guarnição do século III na Síria, provê o testemunho arqueológico mais
convincente de uma domus ecclesiae
cristã. De forma conservadora, estima-se que a casa privada foi construída em
232/33 e renovada (de uma só vez) em cerca de 240/41. Embora seja um pouco
maior do que a maioria das habitações privadas em Dura, a sua aparência
exterior não teria sugerido algo além de uma habitação privada.
Os restos foram descobertos em um
estado de conservação relativamente bom em 1931, e o edifício cristão foi
escavado de 1932 a 1933. A boa qualidade das ruínas se deve ao fato de que Dura
foi destruída em 236 pelos Sassânidas e não foi mais repovoada.
Quando a casa foi reformada pelos
cristãos, três mudanças maiores foram introduzidas. Primeiro, a parede
dividindo o divã e o cômodo adjacente foi removida, criando com isso um grande
salão de reunião medindo 12.9 x 5.15 m (c. 66.5 m²). À ponta leste do cômodo,
havia uma pequena plataforma, ou estrado (trono), que provavelmente foi usado
durante a leitura e o ensino. Um cômodo menor foi transformado em um
batistério. Essa parece ser a evidência mais antiga de uma adaptação estrutural
com o propósito de construir uma fonte batismal. Uma marquise também foi
instalada, e as paredes foram decoradas com afrescos. O pátio central foi
coberto com azulejos (mosaicos) e bancos (50 cm de comprimento e 42 cm de
altura) foram construídos ao redor das paredes. Todas essas renovações sugerem
uma comunidade cristã desenvolvida e organizada. É difícil determinar, porém,
se os jantares comunais eram realizados nesta domus ecclesiae em particular.
Dentre as razões para a transição
da Casa-Igreja para a domus ecclesiae
estão o tamanho da comunidade e a diversidade das atividades. Em meados do ano 250,
por exemplo, os crentes em Roma eram cerca de três mil. Tal crescimento tornou
necessária a remodelação de estruturas existentes. A necessidade de acomodar
atividades diversas deixou sua marca nas características arquitetônicas. Por
exemplo, a separação da Eucaristia da Festa do Amor (Jantar Ágape) significava
que um local para jantar e para cozinhar não era mais necessário. Ao invés
disso, um local formal foi implementado (incluindo um “trono”, Didascalia Apostolorum 12) com a
comunidade virada para o estrado, ou trono. Uma distinção foi feita entre os
catecúmenos e os membros, e características particulares, como as fontes
batismais, foram adicionadas. Deste modo, foi realizada a transição da Casa-Igreja
para a domus ecclesiae.
4. Aula Ecclesiae, 250-313
Certas ruínas preservadas debaixo
de algumas igrejas em Roma mostram antigas estruturas usadas por comunidades
cristãs. Muitas dessas antigas tituli
(um termo legal relacionado ao estabelecimento de propriedade, ou título) de
Roma se tornaram locais de basílicas, preservando uma tradição de um “local
sagrado” (loca sancta). A Basílica S.
Crisogono (Titulus Chrysogoni) é um
exemplo incontestável de uma aula
ecclesiae em Roma. Ela está localizada na antiga Via Aurelia, e a basílica foi construída através da incorporação de
um grande salão retangular preexistente (29.5 x 15.25 m). Esse salão em
particular data do início do século IV (c. 310).
Essa estrutura pré-Constantiniana
foi usada como uma construção da igreja, mas o salão não era reconhecido como
tal. Ele era um tipo comum de salão de reuniões romano encontrado em construções
administrativas e outras. As únicas indicações que podem ser reconhecidas do
seu uso pelos cristãos são o anteparo para o coro e cômodos laterais que
poderiam ter sido reservados para os catecúmenos.
Embora o uso da domus ecclasiae tenha continuado até o
século IV, no início desse mesmo século, os cristãos começaram a usar
construções públicas como locais de reunião. Essa mudança acompanhou o colapso
das perseguições periódicas (e.g., Diocleciano em 303-5) e o reconhecimento do
cristianismo por Constantino, o que culminou no Édito de Milão em 313.