Existe uma pergunta que
me incomoda há algum tempo: Se os autores do Novo Testamento enxergavam os
escritos do próprio Novo Testamento como os enxergamos hoje (palavra escrita de
Deus intocável e imutável), por que Lucas e Mateus pegaram o Evangelho de
Marcos e editaram, mudando palavras e acrescentando ou retirando trechos? Será
que isso não é um indício de que a forma como lidamos com o texto escrito,
cuidando de palavra por palavra, fazendo estudos filológicos quase
intermináveis, não era algo tão importante para os primeiros cristãos? Isso não
nos mostra que as palavras não eram tão importantes quando o significado da
mensagem? Para compreender melhor essa questão, precisamos entender como os
primeiros cristãos transmitiram a mensagem de Jesus de forma não escrita e ver
como essa atitude de transmissão se refletiu no texto que veio a ser escrito
posteriormente. A atitude dos primeiros cristãos em relação ao texto pode mudar
a nossa atitude se percebermos que estamos focando em coisas que eles não
focaram, como, por exemplo, mais nas palavras do que na mensagem em si. Um dos
estudiosos do Novo Testamento que mais me ajudaram a entender um pouco melhor
essa questão foi James D. G. Dunn. Abaixo, apresento a tradução, transcrição e
adaptação de uma entrevista que Dunn concedeu a Eerdmans Publishing.
A
Tradição Oral do Evangelho
Noventa por cento da
análise da tradição dos evangelhos tem assumido material escrito, que é algo editado.
A meu ver, não tem havido uma avaliação adequada dos trinta ou quarenta anos anteriores
à escrita dos evangelhos, onde tudo era predominantemente tradição oral. Quando
você levanta esse ponto para as pessoas, algumas dizem que não podemos voltar
nesse período, pois só conseguimos entender o processo como edição de alguma
fonte escrita. Eu me recuso a aceitar isso, porque esses primeiros trinta anos
são realmente importantes.
Algo importante para
mim é que podemos assumir que Jesus causou um impacto. Em outras palavras, por
trás de toda essa tradição sobre Jesus, não está simplesmente um carinha que
não casou nenhum impacto, onde tudo que foi dito sobre ele surgiu depois e foi
colocado na sua conta. Ele claramente causou um impacto, e eu estou satisfeito
em assumir isso. Sou bastante cuidadoso com os fatos que assumo, pois quero que
eles estejam muito bem estabelecidos.
Quando olhamos para os
evangelhos sinóticos (os primeiros a serem escritos), temos uma imagem bem
clara do resultado desse impacto nos trinta anos antes da tradição escrita. A
característica impressionante dos evangelhos sinóticos é que eles são muito do
mesmo, mas diferentes. Com isso, podemos ter uma imagem bem clara do impacto que
Jesus causou e como isso foi recebido. Nesse espaço de trinta anos antes de
surgirem os materiais escritos, temos uma grande quantidade de material (histórias
sobre cura, parábolas etc.) que os escritores dos evangelhos puderam usar, mas
eles contaram essas histórias de maneiras diferentes. Não é a mesma história. O
importante era o significado que estava tentando ser transmitido, não as
palavras.
Portanto, toda essa
questão que existe, principalmente com os cristãos conservadores, sobre a importância
das palavras escritas nos evangelhos está mal direcionada, porque o sentido, o
impacto que está sendo feito por meio dessas histórias, é o importante. Podemos
dizer que a tradição oral dos evangelhos é confiável em um sentido, mas não em outro?
Sim, mas depende de que sentido estamos falando. A tradição oral é confiável,
mas não no sentido de palavra por palavra, como se a única forma que os
escritores poderiam transmitir a história de maneira confiável fosse repetir as
palavras exatamente como foram ditas.
Quando eu estava no
começo de minha carreira, uma das coisas que surgiram sobre os evangelhos foi a
questão da história da cura do servo do centurião. Quando olhamos para essa
história, as duas versões não podem estar corretas ao mesmo tempo, porque, em
uma versão, o centurião vai pessoalmente falar com Jesus, mas, na outra, ele se
recusa a ir pessoalmente porque é humilde demais para fazê-lo, e pede para que
seus amigos chamem Jesus. Bem, essas duas versões não podem ter acontecido ao
mesmo tempo, porque são diferentes. O que deduzimos disso? Deduzimos que essas
versões não são confiáveis? Não! Deduzimos que não era importante escrever
exatamente palavra por palavra. Quando olhamos para o material dos evangelhos
sinóticos, vemos que as versões se assemelham mais em palavra por palavra na
parte do diálogo entre Jesus e o centurião. O antes e o depois do diálogo são
bem diferentes nas duas versões. Existe uma parte central da história onde a
questão de palavra por palavra era importante porque é esse diálogo que mostra
o sentido da história, mas a forma como a história foi construída para chegar a
esse diálogo e como podemos retirar ensinamentos dessa história foram
diferentes nas duas versões.
Isso se tornou um
modelo, para mim, de como compreender o período oral, antes de tudo ter sido
escrito. Eu diria que devemos considerar o período oral de forma muito mais
séria do que muitos estudiosos têm feito. Parte disso se dá pelo fato histórico
de que não existiam muitas pessoas que sabiam ler nos dias de Jesus. Apenas dez por cento da
população era letrada. Isso seria muitos dos fariseus, os escribas e provavelmente
mais ninguém. Portanto, aquelas pessoas não podiam fazer como nós, que
dependemos dos livros, que vamos a uma biblioteca para retirar dúvidas. Então,
todo o período da tradição oral precisa ser pensado de maneira diferente. Eu
acho que a ênfase das histórias se tornou uma questão nesse período, e podemos
ver isso nos evangelhos. É por isso que é bom ter os três evangelhos sinóticos
para podermos comparar, onde as histórias são as mesmas, mas diferentes.
Frequentemente, as histórias estão fazendo o mesmo ponto, ou um ponto similar
de maneira um pouco diferente. É assim que funcionava. Podemos, então, entrar
nesses trinta anos de espaço entre Jesus e a tradição escrita e ter uma imagem
bem clara sobre o impacto que Jesus causou, mas é uma imagem flexível de como
esse impacto chegou nos diferentes grupos de cristãos que produziram a tradição
escrita.
Uma das coisas que me
impressiona é como as pessoas não conseguem sair do período de tradição escrita
e voltar para o período da tradição oral. Se ficarmos no período escrito, então
nos limitamos a entender o que aconteceu do ano 50 d.C. para frente, vinte ou trinta
anos depois de Jesus, e não entenderemos o período anterior corretamente. Se
conseguirmos entender essa sociedade oral, compreenderemos melhor as coisas.
Uma característica que surge claramente no período oral é que o importante é o
cerne da história, o coração da história, a essência, o ponto que está sendo
feito pelo autor. O que vem antes e depois pode ser apresentado de forma
diferente, porque é o ponto central da história que precisa ser transmitido. O
resto pode ser diferente. Para mim, portanto, não importa se as duas versões da
história da cura do servo do centurião são contraditórias, porque esse não é o
ponto da história, e se você fizer disso o ponto da história, então não terá
entendido o que a história quer dizer. Precisamos distinguir entre a essência,
a substância da história, e a sua forma. Precisamos reconhecer que a essência é
a mesma, mas pode ser formulada, transmitida, de maneira diferente. Com isso,
começamos a compreender o que realmente importava para esses primeiros
discípulos. Isso nos previne de ter prioridades erradas, de depender demais da
palavra escrita como o mais importante no sentido de precisar estar totalmente
correta palavra por palavra, do que da substância da história que está sendo
contada.