21/05/2020

Quem é a serpente de Gênesis 3?

A história sobre uma serpente falante em Gênesis 3 sempre me tirou o sono. Quem era a serpente? O que ela fazia ali? De onde ela veio? Ela é literal ou deve ser interpretada como uma alegoria para o mal? Para Satanás? O grande problema não está no texto em si, mas na concepção que temos dele. Explico: o pressuposto de que a narrativa da criação em Gênesis deve ser entendida como algo que realmente aconteceu na história nos causa problemas que não existiriam se abordassemos o Livro de Gênesis por aquilo que ele é: um texto escrito há milhares de anos, com uma linguagem e imaginário específicos e que tinha o objetivo de explicar como o mundo e seus problemas surgiram. Se entendermos isso, narrativas como essa da serpente--e também do dilúvio, da Torre de Babel e muitas outras--se tornarão mais fáceis de ser compreendidas. Mas, afinal, o que diabos (com o perdão do trocadilho infame) é a serpente de Gênesis?

O que está por trás da ideia do autor usar uma serpente que fala é uma versão mais antiga dessa mesma narrativa; uma história mitológica na qual a serpente aparecia como um demônio ou deus. Essa lenda ou mito fazia parte do imaginário do autor de Gênesis, e foi utilizada por ele para explicar o que aconteceu de errado com o homem que o fez estar na situação em que se encontra. Em outras palavras, o escritor fez uso de uma versão mais primitiva da história da tentação, na qual a serpente tinha o papel de um ser sobrenatural, mas retirou (não completamente) alguns elementos dessa versão antiga e a atualizou para que se conformasse com a sua perspectiva teológica. Envolvendo tudo isso, está a ideia, representada em várias culturas durantes os milênios, de que a serpente possuia algum tipo de poder, o que provavelmente deu origem a esse tipo de mito/lenda. Essa ideia se infiltrou na cosmologia hebraica antiga e foi adotada pelo autor de Gênesis, que pensava dessa forma. Para falar sobre tudo isso, ninguém melhor do que o meu herói da exegese de Gênesis, John Skinner:

A sabedoria da serpente era proverbial na antiguidade, uma crença provavelmente fundada menos na observação das qualidades reais da criatura do que na ideia geral de sua natureza divina ou demoníaca. Nessa passagem, a serpente pertence à categoria de 'animais do campo' e é uma criatura de Javé; e parece haver um esforço para manter essa visão ao longo da narrativa. Ao mesmo tempo, é um ser que possui conhecimento sobrenatural, com o poder da fala, e animado pela hostilidade em relação a Deus. É esse último recurso que causa certa perplexidade. É mais provável que, por trás da descrição sóbria da serpente como uma mera criatura de Javé, houvesse uma forma anterior da lenda na qual ela figurava como um deus ou um demônio.

A atribuição de características sobrenaturais à serpente apresenta pouca dificuldade até para a mente moderna. A maravilhosa agilidade da cobra, apesar da ausência de órgãos motores visíveis, seus movimentos furtivos, seu rápido ataque mortal e seu poder misterioso de fascinar outros animais e até homens, são suficientes para justificar a consideração supersticiosa da qual ela tem sido objeto entre todos os povos. Assim, entre os árabes, toda cobra é a morada de um espírito, às vezes ruim e às vezes bom. O que é mais surpreendente para nós é o fato de que, na esfera da religião, a serpente era geralmente adorada como um  demônio bom. Traços dessa concepção podem ser detectados na narrativa diante de nós. O caráter demoníaco da serpente aparece no fato de ela possuir conhecimento divino oculto sobre as propriedades da árvore no meio do jardim, e no uso desse conhecimento para seduzir o homem de sua lealdade ao seu Criador. 

A serpente é vista de uma forma que nós, pessoas do século 21, não vemos. Existe algo nela (a mitologia antiga de que ela era algo a mais do que um animal) que faz com que seja inimiga do homem. Para compreender isso melhor, a pergunta que precisamos fazer é a seguinte: como o autor de Gênesis entendia uma serpente (ou essa serpente especificamente) e qual é, para ele, o papel dela no processo que levou o mundo a estar ruim do jeito que está? Apesar de o autor colocá-la como um mero animal, por trás disso tudo está essa versão mais antiga, onde a serpente era algo a mais, e o autor explica o problema do homem como vindo desse animal. Skinner continua:

A inimizade entre a raça dos homens e a raça das serpentes é explicada como uma punição por sua tentação bem-sucedida; originalmente, a serpente deve ter sido representada como um ser hostil, de fato, a Deus, mas amigável à mulher, um ser que lhe diz a verdade que a Deidade reteve do homem. Tudo isso pertence ao pano de fundo da mitologia pagã da qual os materiais da narrativa foram extraídos; e é a eliminação incompleta do elemento mitológico, sob a influência de uma religião monoteísta e ética, que faz com que a função da serpente em Gn. 3 fique tão difícil de entender.

Obviamente, essa narrativa (e sua explicação/interpretação) foi desenvolvida ainda mais pela tradição judaica posterior e herdada pelo cristianismo, que a desenvolve até hoje:

Na teologia judaica posterior, a dificuldade foi resolvida, como é sabido, pela doutrina de que a serpente do Éden era o porta-voz ou a representação do diabo. A doutrina judaica e cristã é uma extensão natural e legítima do ensino de Gn. 3, quando o problema do mal passou a ser apreendido em sua verdadeira magnitude; mas é estranho ao pensamento do escritor, embora não se possa negar que esse pensamento possa ter alguma afinidade com o pano de fundo mitológico de sua narrativa. O ensino religioso da passagem nada conhece sobre um princípio maligno externo à serpente, mas a considera o sujeito de quaisquer poderes ocultos que ela mostre: ela é simplesmente uma criatura de Javé que se distingue dos demais por sua sutileza superior. O autor javista não especula sobre a origem última do mal; foi suficiente para o seu propósito ter analisado o processo da tentação de modo que o começo do pecado pudesse ser atribuído a uma fonte que não está na natureza do homem nem em Deus.

Eu sei. Entender a Bíblia dessa forma é muito difícil para quem vem de um ambiente fundamentalista--talvez impossível para alguns. Para aceitar essa interpretação, precisamos mudar totalmente a nossa forma de ver o(s) relato(s) da criação registrado(s) em Gênesis; entender a cultura da qual esse texto saiu. Nós temos tantas e tantas pressuposições teológicas sobre essa narrativa, que para tirar tudo isso da cabeça e tentar entender o que o autor pensava, o que ele realmente queria dizer, se torna uma tarefa complicada. Lemos a palavra serpente e, imediatamente, associamos com Satanás e o mal; pensamos em Jesus como a semente da mulher e no animal sacrificado por Deus para cobrir o homem como o proto-evangelho de Lutero. Mas isso não está no texto; é desenvolvimento teológico posterior. O ponto é que essa interpretação faz sentido do texto; ela explica as coisas; nos faz entrar no horizonte de percepção do autor e entender o que ele queria dizer com essas histórias que parecem tão estranhas para nós; qual era o seu modo de pensar; como ele enxergava a realidade; qual era o imaginário que usou para explicar o mundo e seus problemas.

Fonte das citações: John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis.