25/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 3) - Criação Ex Nihilo

Quando lemos o relato da criação de Gênesis 1, nossas pressuposições sobre o que é o universo (nossa cosmologia) levam a nossa mente a pintar o texto como um filme de ficção científica espacial. Imaginamos o escuro do vácuo espacial dando lugar à luz, com Deus criando o planeta Terra como o imaginamos hoje (redondo e com todos os continentes e oceanos), a atmosfera (que acreditamos ser chamada de firmamento), depois os outros astros e, finalmente, as plantas, os animais e o homem. As pontas soltas nessa imaginação -- por exemplo: como haveria dia e noite antes do Sol ser criado? Como Deus criou os céus e a Terra primeiro (Gn 1.1), para depois fazer surgir a terra seca e criar os mares? O que são as águas acima do firmamento? Etc. -- não nos causam muita preocupação, pois fazemos uma espécie de mix entre teoria do big-bang e texto bíblico que faz sentido em nossa mente.

Contudo, a imagem que criamos ao ler o texto é condicionada pela nossa concepção sobre como é o universo e como ele funciona, e essa não era a forma que o escritor de Gênesis entendia o mundo; afinal, como ele poderia pensar como nós sobre o universo se viveu milhares de anos antes da invenção do telescópio ou da primeira nave espacial? A verdade é que o autor desse texto enxergava universo de uma forma totalmente diferente. Ele não pensava em vácuo espacial, o nada, como o estado antes da criação; para ele, antes de Javé começar seu processo de criação do mundo, havia um caos aquático sem forma, sem distinção, sem ordem, sem separação entre seus elementos: o abismo.

Essa palavra é geralmente usada no AT para "oceano", o qual, segundo as ideias hebraicas, circundava o mundo e ocupava as vastas cavidades que estão debaixo da terra: cf. Gn 49:25. Aqui, ela é usada como um nome próprio, sem o artigo; e é muito provavelmente de origem babilônica. No presente verso, a palavra abismo denota a imensidão aquática caótica destinada a ser confinada dentro de certos limites definidos no segundo dia da criação. É concebível que, na mitologia hebraica primitiva, esse t'hôm, ou "abismo", cumprisse o mesmo papel que Tiamtu ou Tiamath tinha na cultura babilônica, "a Deusa do Grande Abismo", que tinha um corpo de dragão, e cuja destruição precedeu as ações criativas do deus supremo da Babilônia, Marduk ou Merodach. Marduk matou o dragão, dividiu seu corpo em duas partes e transformou o céu em uma porção e a terra na outra. (Herbert E. Ryle, The Book of Genesis In the Revised Version With Introduction and Notes). Aqui, vemos a grande semelhança entre o mito criacional babilônico e o relato de Gênesis: assim como o dragão de água teve seu corpo dividido para criar as águas de cima e debaixo da Terra, Javé separa o caos aquático primordial em dois; cf. Gn 1.6-7.

Gênesis 1.2 (e a terra era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo, e um vento/sopro/espírito de Deus pairava sobre a face das águas) descreve o estado pré-criação, ou seja, mostra o que existia antes de Javé começar a criar: essa cláusula descreve as coisas imediatamente antes do início do processo de criação. Para as pessoas modernas, o oposto da ordem criada é o "nada", isto é, um vácuo. Para os antigos, o oposto da ordem criada era algo muito pior que o "nada"; era uma força ativa e malévola que podemos chamar de "caos". Neste verso, o caos é encarado como uma massa escura e indiferenciada de água. Em Gn 1.9, Deus cria a terra seca (e os mares, que só podem existir quando a água é delimitada por terra seca). Mas em Gn 1.1-2.3, a própria água e as trevas também são primordiais (contraste com Isaías 45.7). No midrash, Bar Kappara mantém a noção preocupante de que a Torá mostra que Deus criou o mundo a partir de material preexistente. Outros rabinos, porém, temeram que reconhecer isso faria com que as pessoas comprassem Deus a um rei que construiu seu palácio em um depósito de lixo, opondo-se arrogantemente à sua majestade (Gen. Rab. 1.5). No antigo Oriente Próximo, no entanto, dizer que uma divindade havia subjugado o caos significava dar-lhe o maior louvor possível. (Jewish Study Bible).

A essa altura, você deve estar se perguntando: mas e Gn 1.1? Esse verso não mostra que Deus criou tudo do nada? Acontece que o problema com essa interpretação é que ela depende de uma tradução equivocada: uma tradição com mais de dois milênios de idade enxerga Gênesis 1.1 como uma frase completa: "No princípio, Deus criou os céus e a terra". No século 11, o grande comentarista judeu, Rashi, argumentou que o versículo funciona como uma cláusula temporal. De fato, é assim que algumas antigas histórias do Oriente Próximo que relatam a criação começam -- incluindo a segunda história da criação que está em Gênesis, a qual tem início em Gn 2.4b. Assim, talvez uma melhor tradução para Gênesis 1:1 seria: "Quando Deus começou a criar o céu e a terra..." (Jewish Study Bible). Mas mesmo que a sentença seja traduzida como normalmente é -- no princípio, Deus criou os céus e a terra -- ela não serve como um ato prévio à ordenação posterior, mas como um título ou descrição resumida do que acontece depois, pois a relação entre Gn 1.1 e 1.2 não é descritiva; o verso 2 não é a explicação/descrição dos céus e terra criados no versículo 1, porque o objeto do v. 1 (céus e terra) é usado, na língua hebraica, para descrever a criação já ordenada, e não um caos a ser ordenado posteriormente. Com isso, mantém-se a interpretação de que a criação parte de algo preexistente, com o verso 1 sendo o resumo/sumário de tudo o que será narrado posteriormente.

Por mais estranho que isso possa parecer para quem faz parte do universo exegético protestante brasileiro, o relato da criação de Gênesis 1 não descreve uma criação ex nihilo, do nada, mas a ordenação do caos primordial que é tido pelo autor, devido à influência cosmológica babilônica, como o estado do mundo antes da criação.