10/05/2020

Apocalipticismo e as origens do cristianismo

O problema essencial de quem, dentro do movimento reformado e evangélico em geral, tenta entender o NT é um só: a total ignorância sobre o que era o judaísmo do primeiro século depois de Cristo. Sem essa peça do quebra-cabeça, tudo fica desconexo, e então surgem todos os malabarismos filosóficos e hermenêuticos criados para tentar explicar coisas que seriam muito simples de ser compreendidas dentro do contexto correto.

Um exemplo prático: se o exegeta não conhece um tópico central do judaísmo do segundo templo, o apocalipticismo, ele nunca, nunca, nunca entenderá Marcos 13: a expectativa de intervenção divina iminente acarretando na possível destruição do templo de Jerusalém e na reconstrução de um novo templo que não teria fim; os últimos dias chegando ao seu momento derradeiro; o julgamento de Deus finalmente acontecendo; a justificação dos filhos de Deus diante das nações.

O termo apocalipticismo é uma designação moderna amplamente utilizada para se referir a uma visão de mundo que caracterizou segmentos do judaísmo primitivo de c. 200 a.C. a d.C. 200, e que se centrou na expectativa da intervenção iminente de Deus na história humana de maneira decisiva para salvar seu povo e punir os inimigos desse povo, destruindo a ordem cósmica caída existente e restaurando ou recriando o cosmo em sua perfeição original. O conhecimento dos segredos cósmicos (uma das contribuições da tradição da literatura de sabedoria para o apocalipticismo) e os iminentes planos escatológicos de Deus eram revelados aos apocalipticistas através de sonhos e visões, e os livros que eles escreveram (os apocalipses) eram primariamente narrativas das visões que tinham recebido e que foram explicadas a eles por um anjo que servia de intérprete (Dictionary of New Testament Background, p. 46).

Outro exemplo: João Batista era um profeta apocaliptico judaico que se destacou por mergulhar/lavar pessoas no rio Jordão como um ritual/ato simbólico que demonstrava arrependimento pelos pecados e intenção de preparação para o dia no qual o Deus de Israel finalmente se manisfetaria visivelmente sobre a Terra, trazendo seu domínio sobre todos os povos e colocando o reino de Israel no centro de tudo. "João certamente se coloca nessa tradição profética e apocalíptica ao advertir todo o povo de Israel que, apesar de todos os mecanismos externos da religião, eles estão sujeitos a um julgamento feroz." (Meier, Marginal Jew, vol. 2, p. 28).

A "ira vindoura", apregoada por João, só pode ser entendida dentro do contexto da cosmovisão dos judeus apocalipticos, pessoas que esperavam uma intervenção divina final sobre a terra para separar o povo de Deus dos demais. Eles chegaram a essa conclusão ao reinterpretar vários textos dos profetas judaicos, entendendo que as profecias sobre essa intervenção divina se tratavam também do final da história presente e começo da história futura, "talvez como resultado da desilusão do período pós-exílico, que incluía sujeição a nações estrangeiras e tensão dentro da comunidade judaica" (Dictionary of New Testament Background, p. 47). Em outras palavras, eles esperavam a vinda do reino de Deus e diziam: arrependei-vos, pois o reino de Deus está próximo. Nossas fontes históricas indicam que Jesus começou seu ministério dentro do círculo de João, saindo posteriormente desse grupo para iniciar o seu próprio círculo de discípulos, fazendo e falando o mesmo que João com algumas modificações de ênfase e entendimento sobre a natureza dessa intervenção divina.

"O apocalipticismo é a principal fonte das narrativas e sistemas simbólicos que inspiraram João Batista, Jesus, a primeira comunidade pós-Páscoa e Paulo. Se estivermos certos em incluir Jesus aqui, poderíamos parafrasear Käsemann e concluir que "o apocalipticismo é a mãe do cristianismo". Para cada um deles, no entanto, especialmente Jesus e Paulo, outras tradições também eram importantes. Jesus se baseou na sabedoria escatológica e até aforística em seus ensinamentos. Ele também era um intérprete da Torá e, aparentemente, um curandeiro e exorcista. Paulo baseou-se na retórica grega e na filosofia popular. Todos esses elementos são importantes. No entanto, as tradições apocalípticas não devem ser ignoradas ou rejeitadas, uma vez que fornecem a estrutura e a lógica para os outros elementos" (The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature, p. 338).

Sem isso em mente, o exegeta usará a sua própria imaginação/racionalização filosófica para entender o texto, deixando, assim, de ser um intérprete para se tornar um teólogo--sim, essa distinção, que raramente passa pela cabeça de renomados protestantes brasileiros, deveria estar bem clara. Uma coisa é ler um texto antigo para entender o que ele significou para o autor e seus receptores; outra coisa completamente diferente é usar esse texto como base para um desenvolvimento de pensamento teológico, criando conceitos e definições que ainda não existiam. Não entender o mundo dos primeiros cristãos e não perceber a importância dessa distinção faz com que esses intérpretes importem conceitos teológicos pré-formulados para o NT sem nem perceber. Ao fazer esse enxerto forçado de perguntas que nunca passaram pela cabeça de Jesus ou de Paulo, acreditam que Jesus pensava como eles e que o cristianismo dos autores do NT é o mesmíssimo que o seu. As consequências disso, de acreditar que detêm a revelação de Deus nas mãos, de achar que podem demandar ações de indivíduos por ter a autorização de Deus para isso como receptores da verdade divina, são perigosas--principalmente quando esses intérpretes estão ligados à política, mas isso é assunto para outro texto.