27/11/2020

"E quem é o meu próximo?”: O entendimento do mestre da lei em Lc 10.29 e o questionamento a Jesus - Por Giovane Vargas

Artigo escrito por Giovane Vargas

Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "E quem é o meu próximo?" (Lucas 10:29).

No diálogo entre Jesus e o doutor lei, uma questão extremamente relevante para os dias atuais é apresentada. Segundo o escritor da comunidade lucana, a pergunta estava baseada na intenção do doutor da lei ao justificar os seus atos. Esse personagem parece ter dado uma resposta satisfatória a Jesus anteriormente. Contudo, mesmo em meio ao elogio sobre a resposta anterior, ele recebeu uma ordem para praticar a sua resposta. Com base nessa ordem, a pergunta de Lc 10:29 é levantada pelo doutor da lei: “E quem é o meu próximo?”

Escrevendo sobre esse texto, Ibn al-Ṭayyib afirma: "A pergunta direcionada a Cristo 'Quem é o meu próximo?' é feita a fim de que ele responda: 'Os seus parentes e amigos'. Então o doutor da lei poderia seguir dizendo: 'Tenho amado plenamente essas pessoas'. Jesus teria de o exaltar e assumir: 'Verdadeiramente, você cumpriu a lei'. O Mestre da lei poderia ir embora exaltando-se diante do povo por suas obras e alegrando-se de uma honra nova e confiança, conseguidas com base nessa afirmação." (Kenneth Bailey, As Parábolas de Lucas, ed. São Paulo).

A pergunta “quem é meu próximo?” ou “quem devo amar realmente?” “quem devo servir?” “quem é digno da minha dedicação?” presente no diálogo de Jesus, é também fruto de um grande debate nos movimentos religiosos, políticos e geográficos da atualidade, e levanta a necessidade de um esclarecimento. Entretanto, o assunto geralmente é proposto por intenções similares àquelas atribuídas ao doutor da lei na narrativa da comunidade lucana.

Comentando o texto de maneira exegética, Rinaldo Fabris e Bruno Maggioni lançam luz sobre o real olhar em Levíticos que baseava o assunto segundo a palestina do primeiro século:

"É uma questão aberta nas discussões dos mestres judeus. A prática do amor a Deus pode ser inculcada, recomendada com exortações e exemplos, mas o amor ao próximo levanta todo tipo de perguntas ligadas às divisões e estratificações da vida social e religiosa. Até onde vai o amor ao próximo? No AT, 'próximo' era o compatriota, membro do povo de Deus, e também o imigrante inserido na comunidade israelita (Lv 19.33-34). No tempo de Jesus, tinham se acrescentado outras restrições e, portanto, o próximo era praticamente o membro da seita ou do grupo religioso (fariseus, essênios, zelotes, etc.)" (Os Evangelhos II, ed. São Paulo)

Diante desse contexto de discussão sobre quem, de fato, é o meu próximo e as visões usuais das diversas ramificações do judaísmo intermediário está o texto de Levítico:

“Não guardem ódio contra o seu irmão no coração; antes repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado. Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor. O estrangeiro residente que viver com vocês será tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.” (Levítico 19:17, 18, 34 - NVI).
 
Tendo esse texto como base, o máximo que um judeu palestino daqueles dias poderia chamar de 'próximo' eram os estrangeiros que habitavam a sua terra. Entretanto, esses judeus jamais achariam na lei um 'subterfúgio de amor' para todo ser humano, seja pagão, samaritano, romano, etc. A comunidade lucana, provavelmente gentílica em sua maioria, encontra, nesse diálogo, a acalentadora resposta de Jesus através de uma parábola -- provavelmente a mais conhecida daquelas atribuídas aos ensinos de Jesus: o samaritano da mensagem de Jesus teve piedade e tempo para parar os seus afazeres e cuidar de quem estava quase morto, sendo que, no contexto desse zelo, o amor a Deus era a base dessa ação, e amar a Deus dependia exclusivamente de acolher e cuidar do necessitado.

O doutor da lei teve uma ordem para proceder: "Vá e faça o mesmo" (Lc 10:37b). A comunidade do texto de Lucas encontrou o conforto de ser o próximo alcançado por esse amor que vai para além da lei e a tarefa de cuidar do sofredor pelo caminho. Amar o próximo, na mensagem do Evangelho Segundo Lucas, ganha um significado novo: olhar para os necessitados, independente do que creiam e de quem sejam.

22/11/2020

O surgimento da literatura apocalíptica

O Novo Testamento (NT) é repleto de imagens que remetem à ideia de uma mudança final que está próxima e será trazida por Deus. Durante os séculos anteriores à escrita dos documentos que compõem o NT, a terra de Israel havia sido dominada por sucessivos impérios mundiais que retiraram a independência política dos judeus. Para um povo que acreditava servir o único Deus supremo, essa situação não fazia sentido, e uma explicação para essa aflição precisava ser dada. A resposta foi encontrada na releitura de antigas profecias e no desenvolvimento de um novo tipo de literatura, os livros chamados de apocalipses, cujo representante cristão mais famoso fecha o canôn bíblico.

O nascimento do chamado apocalipticismo se deu quando profecias sobre a vitória política de Israel sobre seus inimigos foram reinterpretadas: num momento de angustia e desesperança sobre o futuro de Israel, antigas profecias que falavam sobre um dia de retribuição contra os inimigos de Israel foram lidas de acordo com uma esperança futura de libertação que viria por parte de Deus. Com isso, uma nova visão teológica sobre um dia de julgamento se desenvolveu, e um novo tipo de literatura foi criada. 

A literatura apocalíptica é uma forma de pensar que se desenvolve aos poucos e que surge em um momento de crise visando uma libertação final. No momento de dificuldade, da luta contra o império e a opressão -- até mesmo a opressão de judeus contra outros judeus --, os judeus olharam para Deus buscando uma intervenção final, o cumprimento de promessas antigas -- registradas em textos que já haviam perdido o seu apelo histórico e agora poderiam ser aplicados a situações presentes --, só que agora no tempo escatológico (do fim), no momento em que Deus mudaria e renovaria a criação, restabelecendo o paraíso que havia sido perdido com o pecado de Adão.

A pergunta era: por que o povo de Deus -- e aqui cada grupo específico de judeus poderia se entender como o verdadeiro povo --, que cumpre seus mandamentos e vive de acordo com a sua vontade segundo revelada na Lei (Torá), sofre na Terra, se sabemos que ele domina os céus e é Deus sobre todos os povos? A resposta -- provavelmente influenciada por outras culturas, cosmologias e teologias -- foi encontrada na dicotomia entre céu e terra, entre o governo de Deus e o governo de Satanás: este mundo é dominado por forças malignas -- encabeçadas pelo "deus deste século" (2 Coríntios 4:4); por isso, a presente era é má (Gálatas 1:4) -- as quais se opõem a Deus e ao seu povo, e o que acontece na Terra é reflexo de uma luta cósmica entre as forças de Deus e as forças do mal. É durante o desenvolvimento dessa mentalidade que a figura de Satanás surge na literatura como inimigo de Deus e do seu povo.

Um dos grandes exemplos dessa ideia de batalha no mundo espiritual contidos no NT é o que diz o autor da Carta de Judas: "Contudo, nem mesmo o arcanjo Miguel, quando estava disputando com o diabo acerca do corpo de Moisés, ousou fazer acusação injuriosa contra ele, mas disse: 'O Senhor o repreenda!'" (Judas 1:9 NVI).

Entretanto, Deus consertaria tudo: o sofrimento dos justos, dos filhos de Deus, terá um fim quando ele intervir sobre este mundo, trazendo finalmente a justiça e colocando Israel no seu lugar de direito como povo escolhido, inaugurando o reino de Deus na Terra, uma nova era que substituirá a presente era má. Mais uma vez, é o autor da Carta de Judas que nos oferece uma janela para esse aspecto do imaginário apocalíptico dos judeus daquela época, desta feita, citando diretamente um livro não canonizado, mas considerado o exemplo maior da literatura apocalíptica judaica: "Enoque, o sétimo a partir de Adão, profetizou acerca deles: 'Vejam, o Senhor vem com milhares de milhares de seus santos, para julgar a todos e convencer a todos os ímpios a respeito de todos os atos de impiedade que eles cometeram impiamente e acerca de todas as palavras insolentes que os pecadores ímpios falaram contra ele.'" (Judas 1:14-15).

Naturalmente, por fazerem parte de um contexto histórico onde essas ideias eram comuns, os primeiros cristãos -- todos eles judeus e discípulos de um profeta apocalíptico que pregava a vinda do reino de Deus -- eram apocalípticos e aguardavam ansiosos pela vinda do Reino de Deus, conforme haviam aprendido a orar com o seu mestre: "Venha o teu Reino e seja feita a tua vontade na Terra como é no céu."

Quando o reino viria? Alguns judeus calculavam a data do fim da história como a conhecemos usando as profecias de outro documento bíblico do gênero apocalíptico, o livro de Daniel e suas setenta semanas -- isso não é novidade dos evangélicos atuais. Segundo Jesus de Nazaré, porém, alguns daqueles que estavam ouvindo a sua pregação não morreriam sem antes verem o reino de Deus se manifestando (Marcos 9:1). Para ele, aquela geração não passaria antes que todo o abalo cósmico esperado para antes do fim acontecesse (Marcos 13:30).

16/11/2020

O que é o Reino de Deus?

O termo “reino de Deus”, apregoado por Jesus de Nazaré, conforme narrado na tradição sinótica, pode não ter um significado tão claro na mente de muitos leitores do Novo Testamento. O que Jesus queria dizer com “reino de Deus”? Durante muito tempo, essas palavras foram sinônimo de algo invisível que cresce no interior da sociedade humana à medida em que o cristianismo avança entre os homens. Ainda hoje, a expressão pode ser confundida com o crescimento de uma igreja específica, ou de um ramo particular do cristianismo. Contudo, apesar de esses serem possíveis desenvolvimentos de uma hermenêutica pós-moderna que busca o significado do texto para o leitor atual, as palavras “reino de Deus” foram proferidas em um momento histórico específico e por uma pessoa que tinha convicções particulares sobre a sociedade e o mundo ao seu redor.

O primeiro estudioso do Novo Testamento a se atentar ao contexto em que Jesus proferiu a expressão “reino de Deus” foi o alemão Johannes Weiss. À época, a teologia era dominada pelo entendimento liberal de que o reino de Deus era algo espiritual que crescia no coração dos homens e os impelia a se conformarem com a vontade de Deus. Conforme a influência dessas pessoas crescia no mundo, o reino de Deus se expandia até alcançar toda a Terra. Em seu livro “A Pregação de Jesus Sobre o Reino de Deus”, Weiss notou que a expressão não tinha nada a ver com os ideais religiosos da teologia liberal da Europa do século XIX, mas com a visão escatológica de um judeu apocalíptico do começo do primeiro século da era comum.

Weiss traçou a origem da noção que Jesus tinha sobre o Reino de Deus principalmente para o chamado apocalipticismo judaico tardio. Nesse ambiente de pensamento, havia um dualismo de mundos, um acima e outro aqui abaixo. O que acontece aqui simplesmente reflete o que já aconteceu decisivamente lá em cima. Uma das consequências dessa linha de pensamento é que um dualismo agudo aparece não apenas entre o mundo de cima e este mundo de baixo, mas também entre o governo de Deus e o governo de Satanás.” [Jesus' Proclamation of the Kingdom of God, Johannes Weiss, edited by Richard Hyde Hiers and David Larrimore Holland, Fortress Press, 1971.]

Durante a história do desenvolvimento teológico dos judeus, a ideia de vitória nacional sobre outros povos foi transformada em algo escatológico que chegaria no fim dos tempos, onde Deus julgaria as nações e exaltaria (justificaria) os seus filhos, trazendo finalmente a vitória final de Israel. Para os judeus apocalípticos, que desenvolveram esse pensamento, este mundo, dominado por Satanás, chegaria a um fim com uma intervenção diretamente divina: as forças do mal seriam destruídas e Deus finalmente governaria toda a Terra com seu povo. Quando Jesus falava da aproximação do reino de Deus, era exatamente isso que ele queria dizer: o governo (reino) de Deus está chegando à Terra, um tempo onde os maus serão destruídos e os filhos de Deus serão recompensados por seus sofrimentos; onde aqueles que choram serão consolados; onde aqueles que formam o último estrato da sociedade serão exaltados e os ricos e poderosos serão humilhados; onde a ordem do mundo seria invertida; onde os últimos serão os primeiros; onde a vontade de Deus seria feita assim como é feita no céu. Portanto, o reino (ou reinado) de Deus é algo supramundano, algo que vem de fora e é trazido sem o esforço humano, mas exclusivamente por Deus.

Segundo pontuou Rudolf Bultmann ao avaliar o impacto de Johannes Weiss para o entendimento desse tema, no livro de Weiss, “uma compreensão consistente e abrangente do caráter escatológico da pessoa e da proclamação de Jesus foi alcançada e o curso de novas pesquisas foi definitivamente indicado.” Para Bultmann, o trabalho de Weiss e de seus colegas trouxe à luz a estranheza do Novo Testamento para a mente moderna; nos fez perceber que nossos conceitos não são exatamente os mesmos dos escritores; mostrou que expressões tomadas por nós como certas em seus significados na realidade carregavam ideias muito diferentes para aqueles que as proclamaram pela primeira vez.

09/11/2020

Como o autor de Gênesis entendia a divisão entre os animais terrestres, ou: Gênesis não é um livro de biologia escrito por um naturalista vitoriano

“Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.” (Gênesis 1:24-25)

Uma das coisas que ficam claras com a leitura do primeiro relato da criação narrado em Gênesis (1:1 a 2:3) é que o autor (ou autores/editores) pretende explicar como o mundo que ele conhece veio a existir. Uma das características desse mundo é a divisão clara entre os tipos de animais que pode ser percebida em qualquer lugar da terra. Existem diferenças óbvias entre grupos de animais, e o autor de Gênesis, juntamente com a tradição teológica que herdou, percebeu isso e buscou explicar como Deus os havia criado.

Contudo, a tradução em português pode nos dar a impressão errada sobre como o autor pensava sobre esses grupos, porque as palavras usadas para descrever as diferenças já estão carregadas de um significado moderno que era desconhecido para o autor original. Por exemplo, quando ouvimos a palavra “espécie”, logo a interpretamos segundo o viés evolucionista que classifica animais em grupos e subgrupos segundo uma definição muito específica. Contudo, é claro que o autor de Gênesis não tinha conhecimento algum sobre os pensamentos de Darwin ou sobre a biologia moderna. A palavra hebraica traduzida por "espécie" em Gênesis tem a ver com "tipo", e não corresponde à definição que a biologia moderna traz dessa palavra. Ela reflete uma divisão superficial/simples/grosseira feita por alguém que observa o comportamento dos animais e procura explicar a sua origem levando em conta particularidades expressivas; alguém que olha para um morcego e o classifica como ave porque ele voa. Portanto o termo original jamais deveria ser traduzido como "espécie", pois isso só confunde o leitor, fazendo-o achar que o autor pensava como um biólogo do século XXI.

Uma clara divisão apresentada em Gn 1:24-25 são os animais domésticos, répteis e animais selváticos. Esses termos podem dar a impressão de que o autor estava falando das mesmas classes de animais que conhecemos e que aceitamos hoje. Por exemplo, animais domésticos são gatos, cachorros, hamsters, peixes dourados, etc.; répteis são jacarés, cobras, tartarugas, etc.; e animais selváticos (ou selvagens) são gorilas, cangurus, lobos, elefantes, girafas, etc. Contudo, não foi bem assim que o autor de Gênesis classificou os animais nesse texto.

A divisão tem mais a ver com animais que são "cultiváveis", como bois, porcos e cabras; animais não cultiváveis, como leões, ursos e tigres; e também animais que rastejam, um grupo que poderia abranger desde cobras e lagartas, até pequenos quadrúpedes e animais que classificaríamos como anfíbios. Deveria ser algo claro para o intérprete de Gênesis o fato de que o autor conhecia apenas os animais da sua região. Portanto, não se pode pensar que ele estaria falando de um alce, por exemplo, porque esse animal não existia no Oriente Próximo há cerca de 3 mil anos atrás, contexto de onde surgiu o livro de Gênesis.

Em seu comentário de Gênesis, John Skinner afirma que “a classificação dos animais é tripla: (1) animais selvagens (basicamente carnívoros); (2) animais domesticados (herbívoros); (3) répteis, incluindo talvez insetos rastejantes e quadrúpedes muito pequenos. Uma divisão tríplice um tanto semelhante aparece em uma tábua da Babilônia - ‘gado do campo, bestas do campo e criaturas da cidade.’(John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. v-vi).

Portanto, o autor era uma pessoa que estava tentando explicar o mundo como o enxergava, carregando consigo toda a sua ideia teológica pré-estabelecida. Ele não é um naturalista inglês do final do século XIX que estava catalogando animais com a teoria de Darwin na cabeça, mas um hebreu do Oriente Próximo que viveu há milênios atrás e que, com influências religiosas e culturais do seu contexto local e temporal, estava mostrando a sua visão de como Deus havia ordenado o mundo que esse autor conhecia.

Isso é algo muito óbvio, e só não o enxerga quem acredita que o relato da criação narrado em Gênesis é uma revelação direta de Deus sobre como as coisas são. A pessoa que acredita nisso faz a seguinte racionalização: Deus sabe de cada detalhe do mundo; em Gênesis, o próprio Deus revelou como esse mundo foi criado e como ele funciona; a ciência moderna mostra que existem vários animais na terra e os classifica de certa maneira; portanto, Gênesis está falando de todos esses animais, sem distinção alguma do contexto social e do horizonte de consciência do autor. Apesar de essa forma de pensar fazer sentido para a apologética cristã que mistura Gênesis com ciência moderna e que tenta comprovar a Bíblia usando o método científico, ela não funciona para a exegese sincera de quem quer apenas entender o texto por aquilo que ele é.

07/11/2020

O fundamentalismo evangélico e a autoria mosaica do pentateuco

Qualquer fundamentalista evangélico não veria problema em aceitar que, segundo os parâmetros e métodos acadêmicos de análise textual e histórica, a história dos gêmeos Rômulo e Remo sendo alimentados por uma loba não reflete a realidade histórica sobre o nascimento de Roma, mas que essa é uma lenda fundadora que surgiu durante os séculos de formação do povo que veio a se tornar o Império Romano. Contudo, quando se trata da narrativa bíblica sobre a formação de Israel, o método histórico é completamente colocado de lado por essas pessoas.

Um exemplo disso é a autoria mosaica do pentateuco. Segundo a narrativa bíblica, Moisés teria vivido muito tempo depois do dilúvio, e a pergunta a ser feita sobre ele ter sido o autor de Gênesis e dos outros livros que formam a Torá é como as histórias pré-diluvianas e dos patriarcas de Israel chegaram até ele para que o mesmo pudesse escrever sobre elas. Por exemplo, como Moisés ficou sabendo sobre o momento da criação do mundo, onde não haviam testemunhas; sobre os pensamentos íntimos de Deus acerca da Torre de Babel ou da sua decisão de ter expulsado Adão e Eva do paraíso; sobre a vida de Abraão, Isaque e Jacó, pessoas que teriam vivido séculos antes dele?

A resposta padrão do fundamentalismo evangélico que acredita que a Bíblia é um relato histórico fidedigno das origens do mundo e do povo hebreu é que tradições orais foram transmitidas de geração em geração durante milênios até que chegassem a Moisés. Isso significa que a tradição oral passou de Adão para Noé, sobreviveu o dilúvio, percorreu por todos os descendentes de Cam, Sem e Jafé até alcançar Abraão, Isaque e Jacó, seus doze filhos e finalmente chegar aos ouvidos de Moisés, que registrou tudo por escrito após centenas de anos de escravidão do povo judeu no Egito. E isso tudo com listas de nomes, descendentes, anos de vida de cada um e até a profundidade das águas do dilúvio. Trata-se de simples tradição oral transmitida de uma pessoa para a outra que sobreviveu virtualmente sem mudanças importantes durante milênios.

É claro que o método histórico não apoia tal explicação. Para dar um pequeno exemplo de como essa seria uma hipótese muito difícil de ter acontecido, basta perguntar por que existem histórias que vão do começo do mundo até o final da vida dos doze filhos de Jacó, enquanto não existe nada importante ou elaborado sobre os quatrocentos anos que se passaram no Egito antes do nascimento de Moisés. Como um povo que preservou milênios de tradições orais sobre o início de sua história de repente anula quatro séculos para, de forma mágica, começar a falar sobre a vida de Moisés, o qual finalmente resolveu narrar a origem de tudo? Por que existe esse espaço em branco que vai do fim de Gênesis até o começo de Êxodo, sendo que toda a história anterior foi guardada em pequenos detalhes pela tradição? 

Quase dois séculos de crítica redacional do pentateuco demonstram que esses livros se originaram através da edição e compilação de várias fontes que surgiram em épocas diversas e que apresentam opiniões teológicas diferentes. O início de Gênesis, por exemplo, até o surgimento do personagem Abraão, é um compilado de mitos especialmente mesopotâmicos e babilônicos sobre a origem do mundo que foram profundamente editados durante os séculos de formação do povo hebreu com o objetivo de mostrar a teologia distinta que se desenvolveu no meio desse povo. As histórias sobre os patriarcas de Israel são basicamente lendas sobre cidades, povos e tribos que foram personificados e deram origem aos heróis apresentados como fundadores da nação de Israel. Tudo isso foi finalmente compilado em um único volume já em um período muito avançado da história do povo judeu. A forma com que o texto foi construído deixa transparecer a união de várias explicações sobre a origem do universo e dos povos advindas do mundo do Oriente Próximo que foram modificadas para apresentarem a linguagem e as opiniões específicas da teologia hebraica que se formou durante séculos. Já a moral do povo judeu e a sua lei refletem uma forte influência do Código de Hamurabi e da justiça moral dos egípcios, indícios claros de que isso tudo se formou pelo contato com outros povos e pelo desenvolvimento natural do pensamento de uma (ou várias) grande(s) comunidade(s).

Quando confrontados com essa proposta acadêmica de explicação para a autoria da Torá e percebem a dificuldade que existe na possibilidade da realização prática de sua versão sobre a origem e autoria desses textos; quando se dão conta de que suas crenças sobre como o pentateuco surgiu têm uma probabilidade muito pequena de serem verdadeiras segundo o método histórico e a análise textual, os fundamentalistas logo apelam ao milagre para explicar o problema: mesmo que tudo isso seja muito difícil de ter acontecido, nada é impossível para Deus. Ele preservou as histórias de forma milagrosa e elas chegaram até nós. Afinal, Jesus acreditava na autoria mosaica do pentateuco.

É muito interessante notar como o fundamentalismo aceita a explicação crítica para origem das lendas sobre o surgimento do império romano, mas se recusa a usar o mesmo critério quando se trata da Bíblia. Os evangélicos estão tão acostumados a ver o texto bíblico como fonte de autoridade divina, que qualquer explicação serve para aceitarem a historicidade do relato bíblico, pois o pressuposto é de que a Bíblia é a inerrante palavra de Deus e, portanto, não poderia conter qualquer irrealidade histórica. Se Rômulo e Remo estivessem na Bíblia, certamente seriam tidos como personagens históricos pelos mesmos evangélicos que afirmam a origem mitológica dessa história. 

Com esse peso de autoridade divina sobre um texto antigo e essa fortíssima ligação emocional e cultural com a Bíblia, os fundamentalistas não deixam nada passar pela esfera da análise crítica racional quando o assunto são as histórias bíblicas: é tudo uma questão de fé. Isso pode servir para o ambiente das igrejas evangélicas, mas não serve para o mundo real.

05/11/2020

Moisés realmente escreveu o Livro de Gênesis? - Por Hermann Gunkel

Nota: trecho retirado do livro "The Legends of Genesis", de Hermann Gunkel.


Como Gênesis obteve a honra imerecida de ser considerado uma obra de Moisés? 

Desde os tempos primitivos, existia uma tradição em Israel afirmando que as ordenanças divinas relativas ao culto, à lei e à moralidade, conforme proclamadas pela boca dos sacerdotes, derivavam de Moisés. Quando, então, essas ordenanças, que originalmente circulavam oralmente, foram escritas e transformadas em livros maiores ou menores, naturalmente foram atribuídas ao nome de Moisés.

O nosso Pentateuco consiste, além das coleções de lendas, desses livros de leis de vários períodos e de espírito muito diverso. E visto que as lendas da época do Êxodo também têm a ver principalmente com Moisés, foi muito fácil combinar as lendas e as leis em um único livro. Assim aconteceu que Gênesis se tornou a primeira parte de uma obra cujas partes seguintes falam principalmente de Moisés e contêm muitas leis que afirmam vir de Moisés. 

Contudo, em seu conteúdo, Gênesis não tem conexão com Moisés. Essas narrativas, entre elas tantas de caráter humorístico, artístico ou sentimental, estão muito distantes do espírito de um Titã tão vigoroso e colérico como Moisés, segundo a tradição, deve ter sido.

01/11/2020

Abraão: personagem histórico ou reflexo da religião judaica?

Ao contrário do que o mundo evangélico fundamentalista possa imaginar, a historicidade do personagem biblico Abraão não é algo certo apenas porque a sua vida está descrita na Bíblia. É muito difícil chegar à origem das narrativas que falam sobre Abraão. Elas são fruto de anos e anos de tradições e histórias passadas em forma oral entre várias gerações, e só Deus sabe o quanto foram modificadas até chegar à forma que conhecemos hoje e de onde realmente surgiram.

Em seu livro "The Legends of Genesis", Hermann Gunkel sugere que muitos dos nomes dos patriarcas na realidade eram nomes de tribos e cidades que foram personificados:

“Nos períodos mais antigos da história humana, o homem individual contava muito pouco. Existia muito mais interesse nos destinos da raça: a tribo, a nação, são consideradas entidades reais muito mais do que nos dias atuais. Por isso, em histórias primitivas, o destino de uma raça é descrito como o destino de uma pessoa: a raça suspira, triunfa, é abatida, revolta-se, morre, revive, etc. Assim, também, as relações das raças são consideradas como as relações entre indivíduos."

Contudo, quando essa forma de falar sobre uma tribo, povo ou raça se modificou, a linguagem antropomórfica para falar sobre famílias tribais foi esquecida e transformou-se em histórias sobre a vida de patriarcas:

"À medida em que o mundo se tornava mais prosaico e essas expressões não eram mais compreendidas na narrativa simples, perguntou-se quem essas pessoas, Jacó, Judá, Simeão, realmente eram, e a resposta dada foi que eles eram os patriarcas, e as raças e tribos posteriores, seus filhos; uma resposta que parece ser natural, uma vez que era costume referir-se aos israelitas e amonitas individuais como 'Filhos de Israel' e 'Filhos de Amon'."

Quanto a Abraão, Gunkel levanta a hipótese de que a lenda de da vida de Abraão poderia ter se originado como relatos mitológicos de deuses que posteriormente foram modificados com o passar dos milênios até chegar àquela forma que pode ser lida em Gênesis, isto é, mitos sobre a vida de deuses pagãos, com o passar dos anos, foram adotadas, editadas e transformadas pelo povo de Israel:

"Sara e Milca são, como sabemos, nomes das deusas de Harã, com as quais as figuras bíblicas de Sara e Milca talvez tenham alguma conexão. Isso sugere muito facilmente o pensamento de que Abraão, o marido de Sara, foi substituído pelo deus (lua) de Harã."

Gunkel admite que isso são apenas especulações, e realmente não podemos passar disso, pois as histórias são tão antigas e passaram por tantas camadas de edição e compilação que fica muito difícil bater o martelo quanto ao significado original de cada história. Contudo, isso mostra que a real historicidade de Abraão não é algo tão simples a ser afirmado, e uma coisa é clara. Para Gunkel,

"Alguns deles [patriarcas] são realmente nomes de países, ou raças, e de tribos, como por exemplo, Israel, Ismael, Amon, Moabe, Raquel, Lia, Agar, Cetura e as tribos de Israel. [...] Com essa evidência, devemos concluir que Jacó era originalmente o nome de um distrito cananita que existia em Canaã antes da imigração israelita."

É claro que, como dito acima, não é tudo preto no branco. Cada narrativa precisa ser analisada com cuidado, e não tem como definir nada ao ponto da certeza, pelo menos em vários casos. Mas a verdade é que, se realmente existiu como pessoa, a vida de Abraão não se deu exatamente como descrita pelo texto, porque é possível perceber inúmeras modificações e influências externas nas histórias, o que sugere que elas são tradição oral modificada, editada e compilada com o passar dos anos.

"A apologética meditativa costuma dar grande importância à verdade histórica de Abraão; em nossa opinião, não há mais lugar para essa suposição e, além disso, é difícil ver qual significado essa posição possa ter para a religião e para a história da religião, pois, mesmo que tivesse existido um líder com o nome de Abraão que conduziu a migração de Harã para Canaã, como geralmente se acredita, todos aqueles que sabem alguma coisa sobre a história das lendas concordam que não se pode esperar que uma lenda preserve, ao longo de tantos séculos, uma imagem da piedade pessoal de Abraão. A religião de Abraão é, na realidade, a religião dos narradores das lendas atribuídas por eles a Abraão."

A vida de Abraão é uma lenda que foi formada pela cultura judaica, e a religião dele reflete aquilo que a sociedade judaica da época pensava sobre Deus. Se existiu ou não, dificilmente o relato que temos dele é algo fidedigno quanto a sua real personalidade.