27/11/2020
"E quem é o meu próximo?”: O entendimento do mestre da lei em Lc 10.29 e o questionamento a Jesus - Por Giovane Vargas
22/11/2020
O surgimento da literatura apocalíptica
16/11/2020
O que é o Reino de Deus?
O termo “reino de Deus”, apregoado por Jesus de Nazaré, conforme narrado na tradição sinótica, pode não ter um significado tão claro na mente de muitos leitores do Novo Testamento. O que Jesus queria dizer com “reino de Deus”? Durante muito tempo, essas palavras foram sinônimo de algo invisível que cresce no interior da sociedade humana à medida em que o cristianismo avança entre os homens. Ainda hoje, a expressão pode ser confundida com o crescimento de uma igreja específica, ou de um ramo particular do cristianismo. Contudo, apesar de esses serem possíveis desenvolvimentos de uma hermenêutica pós-moderna que busca o significado do texto para o leitor atual, as palavras “reino de Deus” foram proferidas em um momento histórico específico e por uma pessoa que tinha convicções particulares sobre a sociedade e o mundo ao seu redor.
O primeiro estudioso do Novo Testamento a se atentar ao contexto em que Jesus proferiu a expressão “reino de Deus” foi o alemão Johannes Weiss. À época, a teologia era dominada pelo entendimento liberal de que o reino de Deus era algo espiritual que crescia no coração dos homens e os impelia a se conformarem com a vontade de Deus. Conforme a influência dessas pessoas crescia no mundo, o reino de Deus se expandia até alcançar toda a Terra. Em seu livro “A Pregação de Jesus Sobre o Reino de Deus”, Weiss notou que a expressão não tinha nada a ver com os ideais religiosos da teologia liberal da Europa do século XIX, mas com a visão escatológica de um judeu apocalíptico do começo do primeiro século da era comum.
“Weiss traçou a origem da noção que Jesus tinha sobre o Reino de Deus principalmente para o chamado apocalipticismo judaico tardio. Nesse ambiente de pensamento, havia um dualismo de mundos, um acima e outro aqui abaixo. O que acontece aqui simplesmente reflete o que já aconteceu decisivamente lá em cima. Uma das consequências dessa linha de pensamento é que um dualismo agudo aparece não apenas entre o mundo de cima e este mundo de baixo, mas também entre o governo de Deus e o governo de Satanás.” [Jesus' Proclamation of the Kingdom of God, Johannes Weiss, edited by Richard Hyde Hiers and David Larrimore Holland, Fortress Press, 1971.]
Durante a história do desenvolvimento teológico dos judeus, a ideia de vitória nacional sobre outros povos foi transformada em algo escatológico que chegaria no fim dos tempos, onde Deus julgaria as nações e exaltaria (justificaria) os seus filhos, trazendo finalmente a vitória final de Israel. Para os judeus apocalípticos, que desenvolveram esse pensamento, este mundo, dominado por Satanás, chegaria a um fim com uma intervenção diretamente divina: as forças do mal seriam destruídas e Deus finalmente governaria toda a Terra com seu povo. Quando Jesus falava da aproximação do reino de Deus, era exatamente isso que ele queria dizer: o governo (reino) de Deus está chegando à Terra, um tempo onde os maus serão destruídos e os filhos de Deus serão recompensados por seus sofrimentos; onde aqueles que choram serão consolados; onde aqueles que formam o último estrato da sociedade serão exaltados e os ricos e poderosos serão humilhados; onde a ordem do mundo seria invertida; onde os últimos serão os primeiros; onde a vontade de Deus seria feita assim como é feita no céu. Portanto, o reino (ou reinado) de Deus é algo supramundano, algo que vem de fora e é trazido sem o esforço humano, mas exclusivamente por Deus.
Segundo pontuou Rudolf Bultmann ao avaliar o impacto de Johannes Weiss para o entendimento desse tema, no livro de Weiss, “uma compreensão consistente e abrangente do caráter escatológico da pessoa e da proclamação de Jesus foi alcançada e o curso de novas pesquisas foi definitivamente indicado.” Para Bultmann, o trabalho de Weiss e de seus colegas trouxe à luz a estranheza do Novo Testamento para a mente moderna; nos fez perceber que nossos conceitos não são exatamente os mesmos dos escritores; mostrou que expressões tomadas por nós como certas em seus significados na realidade carregavam ideias muito diferentes para aqueles que as proclamaram pela primeira vez.
09/11/2020
Como o autor de Gênesis entendia a divisão entre os animais terrestres, ou: Gênesis não é um livro de biologia escrito por um naturalista vitoriano
“Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.” (Gênesis 1:24-25)
Uma das coisas que ficam claras com a leitura do primeiro relato da criação narrado em Gênesis (1:1 a 2:3) é que o autor (ou autores/editores) pretende explicar como o mundo que ele conhece veio a existir. Uma das características desse mundo é a divisão clara entre os tipos de animais que pode ser percebida em qualquer lugar da terra. Existem diferenças óbvias entre grupos de animais, e o autor de Gênesis, juntamente com a tradição teológica que herdou, percebeu isso e buscou explicar como Deus os havia criado.
Contudo, a tradução em português pode nos dar a impressão errada sobre como o autor pensava sobre esses grupos, porque as palavras usadas para descrever as diferenças já estão carregadas de um significado moderno que era desconhecido para o autor original. Por exemplo, quando ouvimos a palavra “espécie”, logo a interpretamos segundo o viés evolucionista que classifica animais em grupos e subgrupos segundo uma definição muito específica. Contudo, é claro que o autor de Gênesis não tinha conhecimento algum sobre os pensamentos de Darwin ou sobre a biologia moderna. A palavra hebraica traduzida por "espécie" em Gênesis tem a ver com "tipo", e não corresponde à definição que a biologia moderna traz dessa palavra. Ela reflete uma divisão superficial/simples/grosseira feita por alguém que observa o comportamento dos animais e procura explicar a sua origem levando em conta particularidades expressivas; alguém que olha para um morcego e o classifica como ave porque ele voa. Portanto o termo original jamais deveria ser traduzido como "espécie", pois isso só confunde o leitor, fazendo-o achar que o autor pensava como um biólogo do século XXI.
Uma clara divisão apresentada em Gn 1:24-25 são os animais domésticos, répteis e animais selváticos. Esses termos podem dar a impressão de que o autor estava falando das mesmas classes de animais que conhecemos e que aceitamos hoje. Por exemplo, animais domésticos são gatos, cachorros, hamsters, peixes dourados, etc.; répteis são jacarés, cobras, tartarugas, etc.; e animais selváticos (ou selvagens) são gorilas, cangurus, lobos, elefantes, girafas, etc. Contudo, não foi bem assim que o autor de Gênesis classificou os animais nesse texto.
A divisão tem mais a ver com animais que são "cultiváveis", como bois, porcos e cabras; animais não cultiváveis, como leões, ursos e tigres; e também animais que rastejam, um grupo que poderia abranger desde cobras e lagartas, até pequenos quadrúpedes e animais que classificaríamos como anfíbios. Deveria ser algo claro para o intérprete de Gênesis o fato de que o autor conhecia apenas os animais da sua região. Portanto, não se pode pensar que ele estaria falando de um alce, por exemplo, porque esse animal não existia no Oriente Próximo há cerca de 3 mil anos atrás, contexto de onde surgiu o livro de Gênesis.
Em seu comentário de Gênesis, John Skinner afirma que “a classificação dos animais é tripla: (1) animais selvagens (basicamente carnívoros); (2) animais domesticados (herbívoros); (3) répteis, incluindo talvez insetos rastejantes e quadrúpedes muito pequenos. Uma divisão tríplice um tanto semelhante aparece em uma tábua da Babilônia - ‘gado do campo, bestas do campo e criaturas da cidade.’” (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. v-vi).
Portanto, o autor era uma pessoa que estava tentando explicar o mundo como o enxergava, carregando consigo toda a sua ideia teológica pré-estabelecida. Ele não é um naturalista inglês do final do século XIX que estava catalogando animais com a teoria de Darwin na cabeça, mas um hebreu do Oriente Próximo que viveu há milênios atrás e que, com influências religiosas e culturais do seu contexto local e temporal, estava mostrando a sua visão de como Deus havia ordenado o mundo que esse autor conhecia.
Isso é algo muito óbvio, e só não o enxerga quem acredita que o relato da criação narrado em Gênesis é uma revelação direta de Deus sobre como as coisas são. A pessoa que acredita nisso faz a seguinte racionalização: Deus sabe de cada detalhe do mundo; em Gênesis, o próprio Deus revelou como esse mundo foi criado e como ele funciona; a ciência moderna mostra que existem vários animais na terra e os classifica de certa maneira; portanto, Gênesis está falando de todos esses animais, sem distinção alguma do contexto social e do horizonte de consciência do autor. Apesar de essa forma de pensar fazer sentido para a apologética cristã que mistura Gênesis com ciência moderna e que tenta comprovar a Bíblia usando o método científico, ela não funciona para a exegese sincera de quem quer apenas entender o texto por aquilo que ele é.