22/12/2020

A natureza multifacetada do cristianismo primitivo (James D. G. Dunn)

“Talvez — repito, talvez — certas manifestações da vida cristã que os autores da igreja renunciam como "heresias" originalmente não foram consideradas como tal de maneira alguma, mas, pelo menos aqui e ali, eram a única forma da nova religião  isto é, para aquelas regiões, eles eram simplesmente ‘Cristianismo’”. — Walter Bauer



Walter Bauer foi o primeiro historiador do cristianismo primitivo que chegou no meio cristão e disse que o rei estava sem roupas. Ele apontou o óbvio: vocês estão fazendo história da igreja desde uma perspectiva da fé e do cânon. 

A igreja, desde Eusébio, olha para a sua história inicial como se tudo o que é diferente daquilo que foi posteriormente tido como ortodoxia fosse uma corrupção da verdadeira fé. Eles já têm o cânon e o credo. Por isso, olham para trás como se esses elementos da ortodoxia tivessem surgido desde o começo; como se existisse uma igreja já oficial fluindo de Jesus e passando pelos apóstolos até chegar na Bíblia; como se nenhum deles tivesse divergido; como se os autores do Novo Testamento tivessem uma visão unificada sobre tudo o que escreveram. 

Certamente, não foi isso que aconteceu, e Bauer foi o primeiro a pontuar esse detalhe em seu livro “Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity”, de onde retirei a citação acima.

No entanto, não são as palavras de Bauer que desejo compartilhar hoje com vocês. Nos parágrafos finais do seu segundo volume da série "Christianity in the Making" ("Beginning in Jerusalem"), James D. G. Dunn aponta algumas conclusões a respeito da diversidade do cristianismo primitivo. O trecho abaixo foi retirado das páginas 1175-6.



A natureza multifacetada do cristianismo primitivo (James D. G. Dunn)

O fato um tanto quanto desconfortável é que o Cristianismo de primeira geração nunca foi a igreja ideal pura que as gerações subsequentes imaginaram como "a era apostólica" ou por cujo retorno os reformadores radicais ansiavam. Como já indicado, é provável que o extremo judaico conservador tenha alimentado o que veio a ser designado como seitas cristãs judaicas (heréticas). E é igualmente tentador igualar esse desenvolvimento ligando a outra extremidade do espectro ao gnosticismo que surgiria com força crescente no segundo século. (...)

Mas o espectro e a tensão envolvidos não devem ser reduzidos de fato a Pedro vs. Paulo, como Baur [não confundir com Bauer] tendia a argumentar, ou a Paulo vs. Tiago, como os herdeiros de Lutero preferiram. O espectro era (ou os espectros eram) muito mais complexo do que isso, com:

• os crentes judeus muito conservadores (os 'falsos irmãos', 'falsos apóstolos') marcando um extremo;

• uma ou mais das facções (predominantemente gentias) que desafiaram Paulo em lugares como Corinto na outra extremidade;

• e Tiago, Pedro e Paulo se espalharam um pouco da direita para a esquerda no meio. (...)

Devemos simplesmente reiterar que os três principais líderes da primeira geração [Tiago, Pedro e Paulo] podem ser considerados, juntos, como representando o caráter duradouro e a abrangência do Cristianismo de primeira geração  um Cristianismo de caráter integralmente Judeu/com inclinação ao Antigo Testamento, com um evangelho de salvação tanto para gentios quanto para judeus, abraçando judeus e gentios na base comum da fé no Messias/Cristo Jesus, inspirado pela missão e ensino, a morte e ressurreição de Jesus, devotado ao único Deus por meio deste Cristo, e motivado e capacitado pelo mesmo Espírito.