21/07/2025

A Sombra da Aboboreira e a Luz da Compaixão: Uma Interpretação de Jonas - Giovane Vargas

Artigo de Giovane Vargas


O livro do profeta Jonas, parte dos Doze Profetas Menores, é singular tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Ao invés de coleções de oráculos e discursos divinos, como ocorre na maioria dos livros proféticos, Jonas apresenta uma narrativa breve e simbólica, profundamente marcada por ironia e crítica teológica. A crítica histórica e literária aponta com consistência que sua composição ocorreu no período pós-exílico (séculos V–IV a.C.), e não no tempo do profeta homônimo do século VIII a.C. mencionado em 2 Reis 14:25. Essa leitura mais tardia é sustentada por fatores linguísticos, teológicos e contextuais.


1. Indícios da Composição Pós-Exílica

a) Linguagem e estilo narrativo

O hebraico do livro contém traços gramaticais e estilísticos típicos do período do Segundo Templo. A estrutura é altamente literária, com diálogos desenvolvidos, cenas simbólicas e uma progressão narrativa que remete mais à literatura sapiencial e à parábola do que à profecia clássica. Isso sugere uma composição posterior ao exílio babilônico, quando novos estilos literários floresceram.

b) A ausência de historicidade

O livro não busca situar os eventos de forma realista. A representação de Nínive como uma cidade que responde coletivamente a uma breve mensagem profética, com arrependimento imediato e universal, é claramente idealizada. Além disso, os elementos fantásticos — como o grande peixe e a aboboreira milagrosa — indicam uma intenção simbólica e teológica, e não histórica.

c) Crítica ao exclusivismo religioso

No contexto pós-exílico, especialmente após a reforma de Esdras e Neemias, o povo judeu enfrentava uma redefinição de identidade marcada por forte exclusivismo étnico e religioso. O livro de Jonas surge como contraponto a essa teologia de separação, apresentando um Deus que se compadece até mesmo dos inimigos históricos de Israel. A compaixão divina por Nínive — capital do império assírio que destruíra o Reino do Norte — é apresentada como legítima, universal e profundamente desconcertante.


2. O Estilo Literário Simbólico

Jonas deve ser lido como uma narrativa parabólica e simbólica, construída para provocar uma reflexão teológica profunda.

a) Jonas como símbolo de Israel

O profeta representa o povo de Israel em sua resistência ao chamado divino de ser bênção para todas as nações. Sua fuga, sua relutância em obedecer, seu desagrado com a misericórdia de Deus — tudo isso reflete uma crítica à mentalidade etnocêntrica que dominava certos segmentos do judaísmo pós-exílico.

b) Elementos simbólicos

  • O grande peixe: Jonas é engolido por um peixe e passa três dias em seu ventre, num símbolo claro de morte e renascimento, espelhando o exílio e o retorno de Israel.
  • Os marinheiros pagãos: representam o estrangeiro piedoso, que reconhece Deus e busca a salvação — em contraste com o profeta desobediente.
  • A aboboreira: cresce rapidamente para oferecer sombra a Jonas e é destruída por um verme. Essa planta, efêmera e confortadora, simboliza o apego do profeta ao próprio bem-estar enquanto ignora o destino de uma cidade inteira. Deus usa a planta para confrontar a lógica limitada do profeta: "Tu te compadeces da aboboreira... e eu não hei de me compadecer de Nínive?" (cf. Jn 4:10–11).

c) Uso da ironia

O texto é construído com fortes camadas de ironia: o profeta se comporta pior do que os pagãos; a cidade perversa responde melhor do que o mensageiro de Deus; o instrumento de conversão é uma mensagem mínima, quase ríspida. Essa ironia literária serve para subverter expectativas religiosas e teológicas, levando o leitor a reconsiderar o verdadeiro significado da eleição e da compaixão divinas.


3. Teologia da Misericórdia Universal

O livro de Jonas rompe com a ideia de que a graça divina está restrita ao povo de Israel. A mensagem principal é clara: Deus é Senhor de todas as nações, e sua compaixão não reconhece fronteiras étnicas ou políticas. Essa visão universalista é poderosa, especialmente em um momento em que setores do judaísmo pós-exílico buscavam reafirmar uma identidade exclusiva e separada.

Deus, no livro, não apenas acolhe o arrependimento dos ninivitas, mas também educa seu próprio profeta para que ele compreenda essa misericórdia. O verdadeiro alvo da conversão no livro pode ser o próprio Jonas — e, por extensão, o leitor israelita.


Conclusão: A Sombra da Aboboreira e a Luz da Misericórdia

O livro de Jonas é uma joia literária e teológica do cânone bíblico. Escrito provavelmente no período pós-exílico, ele utiliza uma narrativa simbólica para confrontar o etnocentrismo religioso e anunciar uma visão radicalmente inclusiva do amor de Deus. Jonas é mais do que uma história de um profeta desobediente — é uma parábola nacional, que espelha a crise de identidade de Israel e propõe uma teologia de reconciliação, misericórdia e abertura ao outro.

A aboboreira, cuja sombra temporária protege Jonas, representa os pequenos confortos que priorizamos diante do sofrimento alheio. Ao destruí-la, Deus revela uma compaixão infinitamente maior — aquela que vê e valoriza até mesmo os inimigos históricos. O texto convida, portanto, a sair da sombra estreita da intolerância e contemplar a luz ampla da compaixão divina que transcende todas as fronteiras.


Referências Bibliográficas

  • BEN ZVI, Ehud. Jonah. In: The Jewish Study Bible. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2014.
  • BRUEGGEMANN, Walter. Introdução ao Antigo Testamento: O Canon Cristão. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2013.
  • COOGAN, Michael D. (ed.). The New Oxford Annotated Bible with the Apocrypha. 5th ed. Oxford: Oxford University Press, 2018.
  • FISCH, Harold. Jonah: A Parable of the Man Who Hated God’s Love. In: The Art of Biblical Narrative. New York: Basic Books, 1981.
  • LIMA, Francisco O. de. Jonas: O Profeta da Misericórdia. São Paulo: Paulus, 2002.
  • SOGGIN, J. Alberto. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1981.
  • TRIBLE, Phyllis. Rhetorical Criticism: Context, Method, and the Book of Jonah. Minneapolis: Fortress Press, 1994.

Os Dois Relatos do Dilúvio na Bíblia Hebraica: Tensão, Redação e Teologia em Conflito - Giovane Vargas

Artigo de Giovane Vargas

O relato do dilúvio em Gênesis 6.5 a 9.17 é, à primeira vista, uma narrativa épica sobre juízo divino, corrupção humana e a salvação de um justo por meio de uma arca. Contudo, uma leitura atenta revela que esse trecho da Bíblia Hebraica é muito mais do que uma história antiga de catástrofe. Ele é também um documento literário composto a partir de múltiplas camadas, testemunho de uma tradição que foi escrita, reescrita e editada ao longo de séculos. Segundo a hipótese documental — amplamente aceita na crítica bíblica — esse trecho incorpora dois relatos distintos: o da fonte Javista (J) e o da fonte Sacerdotal (P).

A tradição Javista, mais antiga, provavelmente datada do século X a.C., apresenta um Deus chamado YHWH (Senhor), que se envolve profundamente com a criação. Essa fonte constrói uma narrativa mais fluida e emocional: Deus se arrepende da criação humana diante da maldade que se espalhou sobre a terra e decide apagá-la com um dilúvio. Noé é escolhido por sua retidão, e recebe ordens para levar sete pares de animais puros e apenas um par dos impuros. O dilúvio dura quarenta dias e quarenta noites, e termina com Noé oferecendo um sacrifício que agrada a Deus, levando-o a prometer que nunca mais amaldiçoará a Terra por causa do ser humano.

Em contraste, a tradição Sacerdotal, redigida durante o exílio babilônico (século VI a.C.), apresenta um Deus mais transcendente, chamado Elohim, que age de forma ordenada, meticulosa e sem arrependimentos. O foco aqui não está na emoção divina, mas na organização ritual e cósmica: a arca é descrita com medidas precisas, os animais entram em pares, sem distinções entre puros e impuros, e o dilúvio dura 150 dias. Após o evento, Deus estabelece uma aliança cósmica com toda a criação, selada com o arco-íris como sinal.

As duas versões foram entrelaçadas por redatores posteriores. Essa edição gerou uma narrativa híbrida, repleta de repetições, duplicações e contradições internas. Por exemplo, há ordens conflitantes sobre o número de animais, diferentes nomes para Deus, duas descrições da duração do dilúvio, e dois desfechos distintos: um centrado no sacrifício (J) e outro na aliança (P).

Quadro Comparativo dos Relatos do Dilúvio nas Fontes Javista (J) e Sacerdotal (P) com Referência de Capítulos e Versículos

Aspecto

Fonte Javista (J)

Fonte Sacerdotal (P)

Nome de Deus

YHWH (Senhor) — Gênesis 6:5, 7:1, 7:17, 8:20

Elohim (Deus) — Gênesis 6:14, 7:3, 7:11, 8:18

Motivação para o dilúvio

Deus se arrepende da corrupção da humanidade — Gênesis 6:5-7, 8:21

Decisão ordenada sem arrependimento — Gênesis 6:13-14

Número de animais na arca

Sete pares de animais puros, um par dos impuros — Gênesis 7:2-3

Um par de cada animal, sem distinção — Gênesis 6:19-20

Duração do dilúvio

40 dias e 40 noites — Gênesis 7:12, 8:6-7

150 dias — Gênesis 7:24, 8:3

Descrição da arca

Poucos detalhes — Gênesis 6:14-16

Medidas exatas e detalhadas — Gênesis 6:14-16

Fim do dilúvio

Noé oferece sacrifício — Gênesis 8:20-21

Deus estabelece aliança com arco-íris — Gênesis 9:8-17

Ênfase teológica

Relação emocional e direta de Deus com a humanidade

Ordem, ritual e aliança universal

Tonalidade narrativa

Narrativa fluida e antropomórfica

Estilo formal e repetitivo


Esses elementos não são simples “curiosidades” textuais; são sinais profundos de que o texto bíblico é fruto de um processo de disputa, negociação e adaptação. O dilúvio, que parece uma punição definitiva e purificadora, se transforma, na análise literária, em um espelho das tensões internas da formação bíblica.

Nesse sentido, o relato do dilúvio não deve ser lido apenas como um episódio mítico de destruição e recomeço. Ele é também o rastro de uma disputa silenciosa: entre diferentes concepções de Deus, diferentes formas de lidar com o sofrimento humano e distintas estratégias de poder e autoridade religiosa. Sua composição revela que a Bíblia não é um único discurso, mas um campo de batalha literário onde vozes concorrentes disputam espaço, sentido e legitimidade.


Fontes recomendadas para pesquisa e aprofundamento:

  • Friedman, Richard Elliott. Who Wrote the Bible? HarperOne, 1987.
  • Wellhausen, Julius. Prolegomena to the History of Israel. 1883.
  • Gunkel, Hermann. Genesis: Translated and Explained. 1901.
  • Carr, David M. The Formation of the Hebrew Bible: A New Reconstruction. Oxford University Press, 2011.
  • Römer, Thomas. The Invention of God. Harvard University Press, 2015.
  • Sparks, Kenton L. Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible. Hendrickson Publishers, 2005.