21/07/2025

Os Dois Relatos do Dilúvio na Bíblia Hebraica: Tensão, Redação e Teologia em Conflito - Giovane Vargas

Artigo de Giovane Vargas

O relato do dilúvio em Gênesis 6.5 a 9.17 é, à primeira vista, uma narrativa épica sobre juízo divino, corrupção humana e a salvação de um justo por meio de uma arca. Contudo, uma leitura atenta revela que esse trecho da Bíblia Hebraica é muito mais do que uma história antiga de catástrofe. Ele é também um documento literário composto a partir de múltiplas camadas, testemunho de uma tradição que foi escrita, reescrita e editada ao longo de séculos. Segundo a hipótese documental — amplamente aceita na crítica bíblica — esse trecho incorpora dois relatos distintos: o da fonte Javista (J) e o da fonte Sacerdotal (P).

A tradição Javista, mais antiga, provavelmente datada do século X a.C., apresenta um Deus chamado YHWH (Senhor), que se envolve profundamente com a criação. Essa fonte constrói uma narrativa mais fluida e emocional: Deus se arrepende da criação humana diante da maldade que se espalhou sobre a terra e decide apagá-la com um dilúvio. Noé é escolhido por sua retidão, e recebe ordens para levar sete pares de animais puros e apenas um par dos impuros. O dilúvio dura quarenta dias e quarenta noites, e termina com Noé oferecendo um sacrifício que agrada a Deus, levando-o a prometer que nunca mais amaldiçoará a Terra por causa do ser humano.

Em contraste, a tradição Sacerdotal, redigida durante o exílio babilônico (século VI a.C.), apresenta um Deus mais transcendente, chamado Elohim, que age de forma ordenada, meticulosa e sem arrependimentos. O foco aqui não está na emoção divina, mas na organização ritual e cósmica: a arca é descrita com medidas precisas, os animais entram em pares, sem distinções entre puros e impuros, e o dilúvio dura 150 dias. Após o evento, Deus estabelece uma aliança cósmica com toda a criação, selada com o arco-íris como sinal.

As duas versões foram entrelaçadas por redatores posteriores. Essa edição gerou uma narrativa híbrida, repleta de repetições, duplicações e contradições internas. Por exemplo, há ordens conflitantes sobre o número de animais, diferentes nomes para Deus, duas descrições da duração do dilúvio, e dois desfechos distintos: um centrado no sacrifício (J) e outro na aliança (P).

Quadro Comparativo dos Relatos do Dilúvio nas Fontes Javista (J) e Sacerdotal (P) com Referência de Capítulos e Versículos

Aspecto

Fonte Javista (J)

Fonte Sacerdotal (P)

Nome de Deus

YHWH (Senhor) — Gênesis 6:5, 7:1, 7:17, 8:20

Elohim (Deus) — Gênesis 6:14, 7:3, 7:11, 8:18

Motivação para o dilúvio

Deus se arrepende da corrupção da humanidade — Gênesis 6:5-7, 8:21

Decisão ordenada sem arrependimento — Gênesis 6:13-14

Número de animais na arca

Sete pares de animais puros, um par dos impuros — Gênesis 7:2-3

Um par de cada animal, sem distinção — Gênesis 6:19-20

Duração do dilúvio

40 dias e 40 noites — Gênesis 7:12, 8:6-7

150 dias — Gênesis 7:24, 8:3

Descrição da arca

Poucos detalhes — Gênesis 6:14-16

Medidas exatas e detalhadas — Gênesis 6:14-16

Fim do dilúvio

Noé oferece sacrifício — Gênesis 8:20-21

Deus estabelece aliança com arco-íris — Gênesis 9:8-17

Ênfase teológica

Relação emocional e direta de Deus com a humanidade

Ordem, ritual e aliança universal

Tonalidade narrativa

Narrativa fluida e antropomórfica

Estilo formal e repetitivo


Esses elementos não são simples “curiosidades” textuais; são sinais profundos de que o texto bíblico é fruto de um processo de disputa, negociação e adaptação. O dilúvio, que parece uma punição definitiva e purificadora, se transforma, na análise literária, em um espelho das tensões internas da formação bíblica.

Nesse sentido, o relato do dilúvio não deve ser lido apenas como um episódio mítico de destruição e recomeço. Ele é também o rastro de uma disputa silenciosa: entre diferentes concepções de Deus, diferentes formas de lidar com o sofrimento humano e distintas estratégias de poder e autoridade religiosa. Sua composição revela que a Bíblia não é um único discurso, mas um campo de batalha literário onde vozes concorrentes disputam espaço, sentido e legitimidade.


Fontes recomendadas para pesquisa e aprofundamento:

  • Friedman, Richard Elliott. Who Wrote the Bible? HarperOne, 1987.
  • Wellhausen, Julius. Prolegomena to the History of Israel. 1883.
  • Gunkel, Hermann. Genesis: Translated and Explained. 1901.
  • Carr, David M. The Formation of the Hebrew Bible: A New Reconstruction. Oxford University Press, 2011.
  • Römer, Thomas. The Invention of God. Harvard University Press, 2015.
  • Sparks, Kenton L. Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible. Hendrickson Publishers, 2005.