Artigo de Giovane Vargas
O livro do profeta Jonas, parte dos Doze Profetas Menores, é singular tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Ao invés de coleções de oráculos e discursos divinos, como ocorre na maioria dos livros proféticos, Jonas apresenta uma narrativa breve e simbólica, profundamente marcada por ironia e crítica teológica. A crítica histórica e literária aponta com consistência que sua composição ocorreu no período pós-exílico (séculos V–IV a.C.), e não no tempo do profeta homônimo do século VIII a.C. mencionado em 2 Reis 14:25. Essa leitura mais tardia é sustentada por fatores linguísticos, teológicos e contextuais.
1. Indícios da Composição Pós-Exílica
a) Linguagem e estilo narrativo
O hebraico do livro contém traços gramaticais e estilísticos típicos do período do Segundo Templo. A estrutura é altamente literária, com diálogos desenvolvidos, cenas simbólicas e uma progressão narrativa que remete mais à literatura sapiencial e à parábola do que à profecia clássica. Isso sugere uma composição posterior ao exílio babilônico, quando novos estilos literários floresceram.
b) A ausência de historicidade
O livro não busca situar os eventos de forma realista. A representação de Nínive como uma cidade que responde coletivamente a uma breve mensagem profética, com arrependimento imediato e universal, é claramente idealizada. Além disso, os elementos fantásticos — como o grande peixe e a aboboreira milagrosa — indicam uma intenção simbólica e teológica, e não histórica.
c) Crítica ao exclusivismo religioso
No contexto pós-exílico, especialmente após a reforma de Esdras e Neemias, o povo judeu enfrentava uma redefinição de identidade marcada por forte exclusivismo étnico e religioso. O livro de Jonas surge como contraponto a essa teologia de separação, apresentando um Deus que se compadece até mesmo dos inimigos históricos de Israel. A compaixão divina por Nínive — capital do império assírio que destruíra o Reino do Norte — é apresentada como legítima, universal e profundamente desconcertante.
2. O Estilo Literário Simbólico
Jonas deve ser lido como uma narrativa parabólica e simbólica, construída para provocar uma reflexão teológica profunda.
a) Jonas como símbolo de Israel
O profeta representa o povo de Israel em sua resistência ao chamado divino de ser bênção para todas as nações. Sua fuga, sua relutância em obedecer, seu desagrado com a misericórdia de Deus — tudo isso reflete uma crítica à mentalidade etnocêntrica que dominava certos segmentos do judaísmo pós-exílico.
b) Elementos simbólicos
- O grande peixe: Jonas é engolido por um peixe e passa três dias em seu ventre, num símbolo claro de morte e renascimento, espelhando o exílio e o retorno de Israel.
- Os marinheiros pagãos: representam o estrangeiro piedoso, que reconhece Deus e busca a salvação — em contraste com o profeta desobediente.
- A aboboreira: cresce rapidamente para oferecer sombra a Jonas e é destruída por um verme. Essa planta, efêmera e confortadora, simboliza o apego do profeta ao próprio bem-estar enquanto ignora o destino de uma cidade inteira. Deus usa a planta para confrontar a lógica limitada do profeta: "Tu te compadeces da aboboreira... e eu não hei de me compadecer de Nínive?" (cf. Jn 4:10–11).
c) Uso da ironia
O texto é construído com fortes camadas de ironia: o profeta se comporta pior do que os pagãos; a cidade perversa responde melhor do que o mensageiro de Deus; o instrumento de conversão é uma mensagem mínima, quase ríspida. Essa ironia literária serve para subverter expectativas religiosas e teológicas, levando o leitor a reconsiderar o verdadeiro significado da eleição e da compaixão divinas.
3. Teologia da Misericórdia Universal
O livro de Jonas rompe com a ideia de que a graça divina está restrita ao povo de Israel. A mensagem principal é clara: Deus é Senhor de todas as nações, e sua compaixão não reconhece fronteiras étnicas ou políticas. Essa visão universalista é poderosa, especialmente em um momento em que setores do judaísmo pós-exílico buscavam reafirmar uma identidade exclusiva e separada.
Deus, no livro, não apenas acolhe o arrependimento dos ninivitas, mas também educa seu próprio profeta para que ele compreenda essa misericórdia. O verdadeiro alvo da conversão no livro pode ser o próprio Jonas — e, por extensão, o leitor israelita.
Conclusão: A Sombra da Aboboreira e a Luz da Misericórdia
O livro de Jonas é uma joia literária e teológica do cânone bíblico. Escrito provavelmente no período pós-exílico, ele utiliza uma narrativa simbólica para confrontar o etnocentrismo religioso e anunciar uma visão radicalmente inclusiva do amor de Deus. Jonas é mais do que uma história de um profeta desobediente — é uma parábola nacional, que espelha a crise de identidade de Israel e propõe uma teologia de reconciliação, misericórdia e abertura ao outro.
A aboboreira, cuja sombra temporária protege Jonas, representa os pequenos confortos que priorizamos diante do sofrimento alheio. Ao destruí-la, Deus revela uma compaixão infinitamente maior — aquela que vê e valoriza até mesmo os inimigos históricos. O texto convida, portanto, a sair da sombra estreita da intolerância e contemplar a luz ampla da compaixão divina que transcende todas as fronteiras.
Referências Bibliográficas
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