"Um homem tem de estar livre de
toda fiscalização externa para ter a certeza de que olha para si mesmo e não
para um papel social – e só então ele pode fazer um julgamento totalmente
sincero." – Olavo de Carvalho
"É preciso saber quando está
certo duvidar. Alguns afirmam que tudo pode ser provado porque eles não sabem
nada sobre provas." – Blaise Pascal
“Mas, ao menos no que diz respeito ao
mundo material, é possível dizer o seguinte: percebemos que os eventos não
ocorrem por interposições isoladas de um poder divino que é exercido em cada
caso particular, mas pelo estabelecimento de leis gerais.” – W. Whewell
“Para concluir, portanto, que ninguém pense ou
afirme – seja a partir de um conceito fraco de sobriedade, seja por uma
moderação mal aplicada – que é possível pesquisar em demasia ou ser
excessivamente bem versado no livro da palavra de Deus ou no livro das obras de
Deus, isto é, teologia e filosofia, mas que as pessoas se esforcem por um
avanço infinito ou proficiência em ambas.” – Francis Bacon
"Foi uma experiência libertadora
– fiquei livre de ter de assegurar que minhas descobertas sobre qualquer
questão estavam apropriadamente de acordo com as tradições que eu havia herdado
– livre para buscar a verdade nos seus próprios termos, para deixar os textos
de o Novo Testamento moldar minhas opiniões e não o contrário (...) O exegeta
deve permitir que o escritor permaneça nos horizontes do seu tempo; seus textos
podem vir a significar mais, mas esse “mais” não deveria ser atribuído ao autor
original." – James D. G. Dunn
Como alguns leitores mais antigos
deste blog podem ter percebido, devido às minhas leituras de autores que não
fazem parte da tradição evangélica, eu venho mudando a minha visão sobre muitas
coisas na teologia, principalmente no que se refere às afirmações apologéticas
de que a história (ou o método histórico) é a base que sustenta a fé cristã. Não
me vejo mais influenciado pelo movimento evangélico, mesmo o mais acadêmico, e
acabei por me livrar do modo de pensar apologético. Como já falei em outras postagens,
a minha questão sempre foi entender a Bíblia, e percebi que os autores mais
críticos respondem muitas coisas que a apologética finge não ver ou traz
respostas muito convenientes para quem quer apenas confirmar aquilo que já
acreditava de antemão. Em outras palavras, a apologética não se importa em
descrever a realidade, mas simplesmente em defender a fé (por mais que os
apologetas digam que estão sim mostrando a realidade), e o que eu quero é
exatamente isso: entender as coisas ao meu redor custe o que custar.
Em parte, alguns autores críticos
também tentam apenas ratificar aquilo que já acreditavam, mas mesmo esses têm
uma abordagem diferente daquela utilizada pela apologética evangélica. Não
existem muitos apologetas do ateísmo no meio acadêmico bíblico, exceto em
alguns casos mais idiotas que ficam na cara, como alguns autores do Jesus Seminar
ou aqueles que negam a existência de Jesus de Nazaré. Acho que a grande prova
disso são os cristãos que estão no meio acadêmico e corroboram com todas as
proposições do método histórico crítico, mas que separam a fé da história e têm
a consciência de que a fé cristã não pode ser baseada num método científico de
pesquisa sobre o que é provável que tenha acontecido no passado.
Minhas novas leituras me
convenceram de que o método histórico não tem condições de ratificar a fé
cristã, e a visão evangélica sobre a inerrância da Bíblia tem problemas claros
e insolúveis (a não ser que você esteja buscando respostas bobinhas para resolver
o medo de mudar de opinião). A rejeição da Bíblia não precisa ser um resultado
necessário disso. Talvez a neo-ortodoxia tenha suas vantagens nesse ponto: os
evangelhos testificam sobre Jesus, e a fé ratifica a verdade sobre a tradição
da igreja quanto ao que ele era. Contudo, a história está aquém disso. Ela não
tem os meios de provar as afirmações da fé, pois como provar a fé cristã
empiricamente? Eu não sei se isso é possível. O historiador, na qualidade de
historiador, pode afirmar o que provavelmente aconteceu durante a prisão e a
morte de Jesus, mas ele não tem meios de afirmar que Jesus morreu pelos pecados
dos homens. Isso acontece por um motivo que parece ainda não estar claro para
muitos apologetas que tentam provar a fé cristã por meio do método histórico:
essa abordagem científica do passado, a forma que desenvolvemos para acessar
aquilo que de mais provável tenha acontecido, não tem acesso ao mundo
sobrenatural, apenas a este mundo natural. Isso significa que o método
histórico utiliza a analogia para saber o que provavelmente aconteceu ou não, e
eventos sobrenaturais não podem ser analisados dessa forma. Eles fazem parte de
outra esfera.
Essa mudança de perspectiva fez
com que as minhas observações se tornassem mais históricas. Não me preocupo
muito com o lado teológico porque o que sempre busco é entender o texto, e a teologia
não explica o texto, ela fornece um significado transcendental a ele e o
desenvolve dentro da tradição. Como sou cristão e acredito nos credos da
igreja, a teologia não é um ponto de preocupação constante para mim. O que me
deixa inquieto é a história: eu quero entender o que a Bíblia diz e como a
mentalidade do autor se formou para que ele pudesse dizer o que disse.
Um exemplo dessa abordagem é o Jesus
histórico. O Jesus histórico é aquele que pode ser reconstruído pelo método
histórico, aquele que qualquer historiador poderia acreditar ter existido. O Jesus
real é aquele que foi experienciado pelos primeiros cristãos e ainda pode ser
(se você acredita nisso). É o sentimento da presença real dele na comunidade
que gera os textos e os desenvolve na teologia. Esse Jesus experienciado
posteriormente é fruto de reflexão teológica da comunidade tentando explicar e
entender o Jesus que foi conhecido em carne e osso pelos primeiros discípulos.
O Jesus histórico é o Jesus que pode ser encontrado através da aplicação do
método histórico, e esse método tem as suas limitações. Aquilo que vai para
além disso é experiência religiosa, e o Jesus real pode mesmo estar aí, na
experiência, na nossa vida hoje, na nossa devoção religiosa. Eu só não tenho
ferramentas metodológicas para demonstrar isso. A subjetividade reina nesse campo,
e talvez apenas santo Bultmann poderá nos dar uma ajudinha aqui.
Outro exemplo claro pode ser o
significado de Isaías 7:14: “Portanto, o Senhor mesmo lhes dará um sinal: eis
que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel.” Em seu
contexto histórico, esse texto fala de Jesus? As dificuldades dessa
interpretação são enormes, a começar pelo fato de que a tradução grega da
bíblia hebraica que os primeiros cristãos helenistas (que geraram os
evangelhos) usaram traduziu o termo hebraico para “jovem” como “virgem”, isto é,
os cristãos usaram uma tradução equivocada para falar sobre o nascimento
virginal. Ao invés de se tratar de uma profecia sobre Jesus que foi realizada,
o texto de Isaías foi reinterpretado por cristãos que queriam entender o
significado de Jesus e buscaram isso nos seus escritos sagrados. Em outras
palavras, eu acho que Mateus reflete a busca da comunidade primitiva pelo
entendimento de quem foi Jesus e o que ele significou. Ao buscarem respostas
nos seus textos sagrados, os discípulos encontraram passagens que atribuíram a Jesus.
Eles não se importaram com o contexto histórico dos textos, mas os usaram de
uma forma muito livre porque simplesmente não enxergavam o espaço de tempo que
havia entre eles e o texto da mesma forma que o homem de hoje, vivendo em um
mundo pós-critico, enxerga. Isso é mais ou menos o que algumas comunidades evangélicas
com um pensamento acrítico fazem hoje em dia: o texto é vivo e pertence à
comunidade, a qual os usa como se Deus estivesse falando com eles. Isso é usar
o texto para fazer teologia, não história.
Os primeiros cristãos – e quem
escreveu o NT – não tinham a mentalidade moderna que nós temos. Parte dessa
mentalidade moderna é o método histórico, que foi desenvolvido no século 19. Ou
seja, eles não entendiam história como nós entendemos e não utilizavam o mesmo
método para entender o que é a história que nós utilizamos. Portanto, o que
eles faziam com a Bíblia não é o que fazemos hoje. Não podemos achar que essas
pessoas olhavam para os textos antigos da mesma forma que olhamos. Eles usavam
esses textos como parte da sua vida imediata. Para eles, não se tratava de um
documento histórico, mas de algo que fazia parte do seu presente e era usado
dentro da sua convivência como comunidade. Eles se apropriavam do texto, usavam
o texto como se fosse deles, não era algo deslocado do seu tempo, uma coisa do
passado. Dentro da interpretação e utilização desse texto para responder as dúvidas
da comunidade, as ideias do texto se desenvolviam e isso gerava teologia, novas
abordagens e novas conclusões. Os primeiros cristãos, no contexto de sua
experiência com Jesus de Nazaré em vida e com a experiência da ressurreição,
utilizaram esses textos sagrados para entender quem era Jesus. Dentro desses
textos, eles encontraram aquilo que aconteceu com eles e Jesus e os usaram para
explicar a sua experiência. Nessa busca por significados, os primeiros cristãos
não estavam preocupados com o contexto histórico antigo do texto, pois não
tinham o método histórico que temos hoje e não entendiam o texto como sendo
algo distante deles. O texto era algo deles e para eles.
Esse tipo de abordagem à Bíblia
pode soar muito estranho para quem faz parte da tradição evangélica e usa a Bíblia
da mesma forma que os primeiros cristãos usaram o AT. A diferença está em aplicar
o método histórico à Bíblia, fazer uma análise crítica, tratá-la como qualquer
outro documento antigo, e não tomá-la como garantida e verdadeira por conta do
pressuposto de que ela seja a palavra de Deus inerrante: você pode entender a Bíblia
como um documento antigo e digno de ser avaliado criticamente, assim como
qualquer outro texto, e/ou pode recebê-la como Escritura Sagrada, mas não pode
achar que os documentos são totalmente confiáveis historicamente e fechar os
olhos para os problemas que contêm. Como um historiador, você analisa o texto
de forma crítica; como teólogo, admite que o método histórico não tem todas as
respostas e faz teologia consciente de que ela é filosofia da igreja
confessante que busca compreender o significado de Jesus. Eu acho que esse foi
mais ou menos o caminho que os teólogos dialéticos tomaram. Quem sabe eles
tinham mesmo razão.