07/10/2021

O surgimento das primeiras cidades e o desenvolvimento da religiosidade mitológica dos povos antigos

Nota: o trecho abaixo foi extraído do livro “A angústia de Abraão”, pp. 57-8, do autor Emílio Gonzales Ferrín.

 

É provável que a primeira tentativa sistemática de explicação do mundo tenha sido a mesopotâmica. O testemunho escrito — histórico — de algumas das distintas civilizações assentadas principalmente nas bacias dos rios Tigres e Eufrates — em torno do atual Iraque, principalmente — remonta até o ano 3000 a.C. Sumérios, acádios, babilônicos, assírios e hititas se sucederam na Mesopotâmia, gerando uma complexa interpretação do mundo e suas origens — cosmogonia — que pôde chegar até nós pela grande contribuição instrumental de tais povos: a escritura cuneiforme; uma forma de registro providencialmente longeva. O conteúdo desses textos varia: desde registros musicais, jurídicos, comerciais ou reflexões pessoais, até a citada cosmogonia mesopotâmica: uma narração proveniente do tempo sumério — 3000 a.C. —, e provavelmente fixada na época babilônica — anos 1000 a.C. —, quando se compila uma visão sobre a criação dos deuses, o mundo e o ser humano.

Um dos poemas que contêm tal cosmogonia é, por exemplo, o Enuma Elish, ou poema babilônico da criação. O nome de Enuma Elish provém das duas primeiras palavras do poema: Quando, lá no alto... um bom começo de um primeiro poema cosmogônico, sem dúvida, e de semelhança nem um pouco dissimulada com o primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, em hebraico. Be-reshit, no princípio..., livro que bebe profusamente das fontes babilônicas. De fato, pode-se dizer que o Enuma Elish recolhe pela primeira vez — até onde sabemos — elementos narrativos paradigmáticos para o restante das cosmogonias: criação, ordem sobre o caos, sequência das coisas criadas, assentamento das águas, dilúvio universal, e um sem-fim de elementos comuns a tantas outras visões sobre a origem do mundo e do ser humano.

Mesopotâmia provém do grego (Μεσοποταμία) — entre rios —, indubitável versão do aramaico bez nahrin ou do persa miyanrudan, que têm exatamente a mesma tradução. Ambos os rios citados e aqui referidos — o Tigre e o Eufrates, Dachla e Furat nas tradições desembocadas no árabe — compartilham um complicado regime de cheias e vazantes no nível das águas, provocando inundações tais que se pode compreender a razão de ser de uma cosmogonia surgida das águas estabelecidas, assim como maldições consistindo de enchentes ou dilúvios. Também se poderá compreender a necessidade de um trabalho comum para tirar proveito de alguns rios, cuja desmesura não permite economias familiares, mas protoestatais: o sistema de represas, canais e muros de contenção que requer o aproveitamento de tais rios se acerca à visão das origens estatais postuladas por Wittfögel em sua obra O despotismo oriental; toda aquela teoria sobre as chamadas dinastias hidráulicas. Não é casual que as origens do estado e da história — tempo resenhado por escrito — possam ser rastreadas em economias semelhantes, baseadas na necessidade de mover massas de trabalhadores: bacia do Nilo, do Ganges, e inclusive do Iangtzé, na China. E é evidente que tudo que agora contemplamos como textos religiosos eram em seu momento — já fizemos alusão a isso — visões de mundo protocientíficas, provavelmente a serviço de ideologias — unidade estatal — ou grupos de poder, tais como castas de escribas, no futuro conhecidas como sacerdotais.

Coincide a aparição da escrita — de novo, em torno do ano 3000 a.C. — com o apogeu da civilização Suméria e suas cidades/estado: Uruk principalmente, mas também Eridu, Kish, Lagash, Ur... É interessante presenciar como a história do Oriente Médio é a de suas cidades... além do mais, esta essencial descentralização territorial corresponde a um absolutismo de poder em cada cidade, na qual governava um rei indefectivelmente autorreconhecido como representante do deus patrono da cidade. Daí o valor de tradição unificadora que ligue com as origens do mundo — a viagem desde meu deus a um deus —; daí o crivo como patrimônio exclusivo de uma casta — o povo era analfabeto —, e daí os ímpetos religiosos de tal casta: não só deve o povo obedecer, mas nisso está a garantia da salvação eterna. Embora, sem dúvida, o processo deva ter sido inverso: Como podemos fazer com que o povo obedeça? Indicando que pode perder a vida eterna...