03/11/2021
Book Review #5 - A Vida de Jesus Examinada Criticamente (David Friedrich Strauss)
01/11/2021
As narrativas sobre o nascimento de Jesus: verdades históricas ou deliberações teológicas posteriores?
19/10/2021
Book Review #4 - The Historical Jesus, John Dominic Crossan
11/10/2021
Book Review #3 - A Religião do Bolsonarismo, Yago Martins
Book Review #2 - Pequenos comentários sobre alguns livros a respeito do Jesus histórico
Book Review #1 - "O Jesus Histórico: Critérios e Contextos no Estudo das Origens Cristãs", Darrel L. Bock, J. Ed Komoszweski (Editores)
07/10/2021
O surgimento das primeiras cidades e o desenvolvimento da religiosidade mitológica dos povos antigos
Nota: o trecho abaixo foi extraído do livro “A angústia de Abraão”, pp. 57-8, do autor Emílio Gonzales Ferrín.
É provável que a primeira tentativa sistemática de explicação do mundo tenha sido a mesopotâmica. O testemunho escrito — histórico — de algumas das distintas civilizações assentadas principalmente nas bacias dos rios Tigres e Eufrates — em torno do atual Iraque, principalmente — remonta até o ano 3000 a.C. Sumérios, acádios, babilônicos, assírios e hititas se sucederam na Mesopotâmia, gerando uma complexa interpretação do mundo e suas origens — cosmogonia — que pôde chegar até nós pela grande contribuição instrumental de tais povos: a escritura cuneiforme; uma forma de registro providencialmente longeva. O conteúdo desses textos varia: desde registros musicais, jurídicos, comerciais ou reflexões pessoais, até a citada cosmogonia mesopotâmica: uma narração proveniente do tempo sumério — 3000 a.C. —, e provavelmente fixada na época babilônica — anos 1000 a.C. —, quando se compila uma visão sobre a criação dos deuses, o mundo e o ser humano.
Um dos poemas que contêm tal cosmogonia é, por exemplo, o Enuma Elish, ou poema babilônico da criação. O nome de Enuma Elish provém das duas primeiras palavras do poema: Quando, lá no alto... um bom começo de um primeiro poema cosmogônico, sem dúvida, e de semelhança nem um pouco dissimulada com o primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, em hebraico. Be-reshit, no princípio..., livro que bebe profusamente das fontes babilônicas. De fato, pode-se dizer que o Enuma Elish recolhe pela primeira vez — até onde sabemos — elementos narrativos paradigmáticos para o restante das cosmogonias: criação, ordem sobre o caos, sequência das coisas criadas, assentamento das águas, dilúvio universal, e um sem-fim de elementos comuns a tantas outras visões sobre a origem do mundo e do ser humano.
Mesopotâmia provém do grego (Μεσοποταμία) — entre rios —, indubitável versão do aramaico bez nahrin ou do persa miyanrudan, que têm exatamente a mesma tradução. Ambos os rios citados e aqui referidos — o Tigre e o Eufrates, Dachla e Furat nas tradições desembocadas no árabe — compartilham um complicado regime de cheias e vazantes no nível das águas, provocando inundações tais que se pode compreender a razão de ser de uma cosmogonia surgida das águas estabelecidas, assim como maldições consistindo de enchentes ou dilúvios. Também se poderá compreender a necessidade de um trabalho comum para tirar proveito de alguns rios, cuja desmesura não permite economias familiares, mas protoestatais: o sistema de represas, canais e muros de contenção que requer o aproveitamento de tais rios se acerca à visão das origens estatais postuladas por Wittfögel em sua obra O despotismo oriental; toda aquela teoria sobre as chamadas dinastias hidráulicas. Não é casual que as origens do estado e da história — tempo resenhado por escrito — possam ser rastreadas em economias semelhantes, baseadas na necessidade de mover massas de trabalhadores: bacia do Nilo, do Ganges, e inclusive do Iangtzé, na China. E é evidente que tudo que agora contemplamos como textos religiosos eram em seu momento — já fizemos alusão a isso — visões de mundo protocientíficas, provavelmente a serviço de ideologias — unidade estatal — ou grupos de poder, tais como castas de escribas, no futuro conhecidas como sacerdotais.
Coincide a aparição da escrita — de novo, em torno do ano 3000 a.C. — com o apogeu da civilização Suméria e suas cidades/estado: Uruk principalmente, mas também Eridu, Kish, Lagash, Ur... É interessante presenciar como a história do Oriente Médio é a de suas cidades... além do mais, esta essencial descentralização territorial corresponde a um absolutismo de poder em cada cidade, na qual governava um rei indefectivelmente autorreconhecido como representante do deus patrono da cidade. Daí o valor de tradição unificadora que ligue com as origens do mundo — a viagem desde meu deus a um deus —; daí o crivo como patrimônio exclusivo de uma casta — o povo era analfabeto —, e daí os ímpetos religiosos de tal casta: não só deve o povo obedecer, mas nisso está a garantia da salvação eterna. Embora, sem dúvida, o processo deva ter sido inverso: Como podemos fazer com que o povo obedeça? Indicando que pode perder a vida eterna...
01/10/2021
Desenvolvimento no cristianismo: história e construção civilizacional
13/09/2021
A ascenção de Jesus: relato histórico ou cena apologética?
No entanto, na passagem paralela em seu evangelho, Lucas excluiu o pedido de Jesus para se encontrar com os discípulos na Galiléia, mudando a fala do anjo:
05/09/2021
Mateus 5, Jesus e a Lei
05/08/2021
A volta de Jesus: mito ou realidade literal?
30/06/2021
Apocalipse Sinótico: a demora da parousia e a apologética cristã
Um dos episódios mais notáveis dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) é o chamado Apocalipse Sinótico (Mateus 24, Marcos 13 e Lucas 21), o discurso de Jesus a respeito da destruição do templo e a final intervenção de Deus sobre a história, inaugurando o reino. A cena levanta alguns sérios questionamentos por parte de quem lê a Bíblia como um livro que ainda precisa fazer sentido, mesmo não atualizado ou adaptado, para a sua vida pessoal nos dias de hoje. Isso se deve pelo fato de que o discurso de Jesus nessas passagens parece fazer referência a um fato histórico que aconteceu no ano 70 da era comum: a destruição de Jerusalém pelos romanos e a derrubada do templo. Ora, se Jesus predisse que a destruição do templo acarretaria na vinda imediata do reino ("não passará esta geração sem que tudo isso aconteça"), por que ainda estamos esperando, depois de mais de dois mil anos, a volta de Jesus e a vinda do reino de Deus?
Muitas vertentes teológicas produziram respostas a essa pergunta óbvia para quem, dentro de uma confessionalidade cristã fundamentalista, procura entender esse texto dentro da seguinte racionalização: a Bíblia não pode conter erros. Portanto, precisamos encontrar o real significado das palavras de Jesus no Apocalipse Sinótico, pois ele não teria se enganado a respeito do tempo da vinda do reino. As respostas para essas indagações são variadas. Alguns falam em uma vinda simbólica do reino após a destruição do templo no ano 70; outros disseram que a geração a que Jesus se refere não é a dele, mas a geração que veio depois do reestabelecimento da nação de Israel em 1948, após o término da Segunda Guerra Mundial; outros, ainda, tentam guardar as duas pontas do espectro, afirmando que Jesus se referia ao ano 70, mas que havia algo a mais em suas palavras: o significado do texto é a guerra dos judeus com os romanos, mas o significante do texto está no futuro, isto é, o texto é uma prévia do que acontecerá muitos séculos depois.
Apesar de as respostas serem diferentes, elas estão unidas em um objetivo único, mesmo que implícito: demonstrar que Jesus (ou melhor, os autores que colocaram essas palavras na boca dele) estava(m) falando de um tempo futuro, uma época distante, provavelmente a nossa. Certamente, uma leitura teológica, que faz com que o texto ainda tenha sentido para os leitores atuais, é válida. Todavia, a meu ver, essa não é a forma mais segura de abordar esses textos se o seu objetivo for entender o que os autores queriam dizer em seu contexto original e aquilo que eles esperavam que os seus leitores originais entendessem. O fato de a Bíblia ser considerada, por quase todos os cristãos, como um livro divino, os faz aproximarem-se dela de uma forma que não fariam com qualquer outro texto antigo cujo significado estejam procurando. Em outras palavras, o pressuposto da inspiração divina da Bíblia impede que o leitor entenda exatamente o que os autores estavam querendo dizer.
A menos que isso seja implicitamente óbvio ou explicitamente negado pelo autor, ele estará, invariavelmente, falando com seus leitores imediatos. Para se entender o que ele queria dizer quando escreveu, portanto, é preciso levar em conta o seu contexto e os seus primeiros leitores; é preciso entender o meio histórico em que o autor estava inserido. Sendo assim, me parece mais seguro partirmos do pressuposto de que um autor do século primeiro estivesse falando para pessoas da sua época e dificilmente estaria pensando em dois mil anos à frente. Quando escreveram (ou copiaram e editaram) o Apocalipse Sinótico, os evangelistas (autores dos evangelhos) não estavam pensando em nossa geração, mas nas comunidades cristãs das quais faziam parte; em um momento histórico onde, após alguns anos da morte de Jesus, eles ainda aguardavam ansiosos pela vinda do reino que ele mesmo havia prometido. Para eles, o reino viria a qualquer momento.
Tendo isso em vista, meu ponto é que os autores achavam que Jesus voltaria no tempo deles, e interpretar o Apocalipse Sinótico como um texto escrito para o futuro no sentido de algo que aconteceria somente depois de muitos anos não é exegese, mas uma reinterpretação de profecias que não se cumpriram conforme os seus autores acreditavam. Me parece mais razoável dizer que a ânsia por responder à pergunta "por que Jesus ainda não veio?" deu origem a tais explicações engenhosas sobre as profecias a respeito de sua vinda; faz mais sentido pensar que essa engenhosidade de interpretação não é exegese, mas uma tentativa, ainda que inconsciente, de salvaguardar a inspiração da Bíblia e de provar a verdade do cristianismo baseando-se em profecias que não podem falhar. Nessa ânsia, alguns cristãos reinterpretaram profecias que não tinham nada a ver com o seu momento histórico para fazê-las terem sentido, pois, para eles, é claro que Jesus não poderia ter se enganado sobre a vinda do reino naquela geração. Isso, contudo, não me parece ser exegese, mas apologética cristã.
Aqui, é necessário apontar a atualização da mensagem de Jesus sobre o reino, feita pelos primeiros cristãos, para a mensagem dos cristãos sobre a volta de Jesus trazendo esse reino: com a morte de Jesus e as experiências com a ressurreição, os cristãos misturaram a pregação inicial de Jesus com a ideia de que ele mesmo traria o reino no seu retorno, colocando-o no centro dessa vinda do reino. A igreja, desde o seu primórdio, crê na volta de Jesus, e essa crença, juntamente com a demora da parousia (a volta de Jesus), fez com que tais engenhosidades hermenêuticas surgissem. Como eu disse acima, era preciso responder à pergunta "por que Jesus não veio ainda?" Visto que Jesus não poderia estar errado sobre a vinda desse reino e ele está (ou estava) demorando para vir, é necessário encontrar um meio de dizer que o autor não disse exatamente aquilo que está escrito.
Um dos exemplos mais claros, ainda no Novo Testamento, dessa necessidade de explicar a demora da volta de Jesus e, consequentemente, da vinda do reino, está na segunda carta atribuída a Pedro:
"Mas há uma coisa, amados, que vocês não devem esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a julguem demorada. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento. Porém, o Dia do Senhor virá como um ladrão. Naquele dia os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se desfarão pelo fogo. Também a terra e as obras que nela existem desaparecerão." (2 Pedro 3:8-10)
Esse autor, diferente dos modernos, tenta resolver o problema da demora com uma resposta simples: para Deus, o tempo não passa como para os seres humanos. Aqui, fica evidente que as primeiras gerações de cristãos já se preocupavam com essa demora. Eles estavam com problemas, e esses problemas, conforme as gerações passavam, deram origem às engenhosidades hermenêuticas apresentadas acima. Quando o autor da carta de Pedro fala em mil anos para o Senhor, deixa transparecer os questionamentos de uma geração que já estava pensando na demora na volta de Jesus — aliás, esse é um dos motivos que levam os estudiosos a concluírem que essa carta não pode ter sido escrita pelo apóstolo de Jesus, pois demonstra as frustrações de uma geração posterior a Pedro, onde o adiamento da vinda do reino estava começando a se tornar um problema nas comunidades.
Ainda dentro do Apocalipse Sinótico, há uma outra indicação de que o autor está tentando explicar por que o reino ainda não veio se Jesus havia prometido algo imediato:
"Estejam de sobreaviso, porque as pessoas os entregarão aos tribunais e às sinagogas. Vocês serão açoitados e, por minha causa, serão levados à presença de governadores e reis, para lhes servir de testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações." (Marcos 13:9-10, ênfase minha).
A inclusão dessa cláusula sobre a pregação para todas as nações demonstra uma preocupação com certa demora da vinda. Jesus afirmou a vinda iminente do reino e morreu. Os cristãos acharam que ele viria trazer o reino logo, mas estavam começando a sentir a demora.
Há, ainda, um outro autor neotestamentário que deixa escapar uma inquietação a respeito da demora da parousia. No Evangelho de Lucas e no Livro dos Atos dos Apóstolos, escritos depois de Marcos, o autor tenta acalmar os seus leitores: “Ouvindo eles estas coisas, Jesus contou uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o Reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente.” (Lucas 19:11); "Então os que estavam reunidos com Jesus lhe perguntaram: Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel? Jesus respondeu: Não cabe a vocês conhecer tempos ou épocas que o Pai fixou pela sua própria autoridade." (Atos 1:6-7). Tenham paciência, diria esse autor, e não se preocupem com isso. As coisas acontecerão no tempo de Deus.
Esses não são os mesmos motivos que fazem os cristãos da atualidade acharem que a vinda é iminente, mas a preocupação é a mesma: Jesus achava que o reino viria em seus dias, mas ele ainda não veio. Por que está levando tanto tempo? Por que Jesus ainda não voltou? Acalmem-se, diriam os autores, ainda nos resta o tempo dos gentios; Jesus voltará depois de pregarmos a todas as nações. Portanto, vamos embora pregar, porque ele mesmo disse que não passaria dessa geração; as coisas acontecerão no tempo de Deus; para o Senhor, mil anos são como um dia; na verdade, Jesus não falava daquela geração, mas da nossa, etc. Essas respostas, porém, por mais que sejam satisfatórias desde uma perspectiva teológica e de apropriação textual -- afinal, um texto antigo pode ser resignificado para o leitor atual, ainda mais em se tratando de um texto religioso --, não servem para quem quer apenas entender o que os autores e Jesus de Nazaré queriam dizer em seu contexto original.
24/05/2021
Jesus e os primeiros cristãos (E. P. Sanders)
A necessidade da separação entre história e teologia (E. P. Sanders)
[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus and Judaism", de E. P. Sanders, p. 334-5.]
As relações entre história e teologia são muito complexas, e não farei nenhum esforço insignificante para me aprofundar em um assunto vasto e difícil aqui. Estive engajado por alguns anos no esforço de libertar a história e a exegese do controle da teologia; isto é, libertá-la da obrigação de chegar a certas conclusões que são predeterminadas pelo compromisso teológico, e pode-se ver esse esforço sendo continuado aqui. É uma tarefa muito simples, mas considero-a essencial para um empreendimento mais complexo. Pretendo ser apenas um historiador e um exegeta. Mas, uma vez que critiquei tantos por terem sua 'história' e 'exegese' ditada pela teologia, o leitor pode muito bem se perguntar o quão bem 'meu' Jesus se enquadra com minha herança teológica. Posso explicar de forma simples: sou um protestante liberal, moderno e secularizado, criado em uma igreja dominada pela baixa cristologia e pelo evangelho social. Tenho orgulho das coisas que essa tradição religiosa representa. Não sou ousado o suficiente, no entanto, para supor que Jesus veio para inaugurar tal tradição, ou que morreu por causa dos princípios defendidos por ela.
10/05/2021
Por que Jesus foi morto? (E. P. Sanders)
06/05/2021
Mateus dentro do sectarismo judaico (John Kampen)
16/03/2021
Quem foi Jesus? (E. P. Sanders)
12/03/2021
O constrangimento do batismo de Jesus por João Batista para os primeiros cristãos
01/03/2021
Jesus de Nazaré como profeta apocalíptico: a destituição dos poderosos e a exaltação dos humildes
Jesus de Nazaré, enquanto profeta judeu apocalíptico, falava de uma renovação na religião de Israel, assim como João Batista, seu predecessor e mestre. Esses judeus do primeiro século esperavam o momento em que Deus desfaria a injustiça da Terra no tempo escatológico do fim, na nova era, no novo éon, trazendo finalmente o reinado de Deus em Jerusalém, vista como a capital do mundo, onde Deus habitaria de forma derradeira, cumprindo aquilo que havia prometido.
A mensagem de Jesus de Nazaré está intrinsecamente ligada com a liberação do povo oprimido através da intervenção divina no fim dos tempos. O apocalipticismo falava justamente disso. A mensagem apocalíptica de Jesus tem a ver com a libertação de quem sofre na mão dos poderosos. É uma mensagem a favor dos pobres, dos injustiçados, dos indefesos, daqueles que eram usados e esmagados pela elite da época, o povo de Deus que precisa de socorro. Para Jesus, essa libertação ocorreria na intervenção final de Deus, trazendo julgamento para os maus e recompensa para os justos.
Essa característica da mensagem de Jesus pode ser percebida ainda na interpretação que o terceiro evangelista faz do significado do seu nascimento: “[Deus] dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (Lucas 1:51-53). Para o autor do Evangelho Segundo Lucas, o significado do nascimento de Jesus é claro: Deus havia cumprido as promessas feitas ao seu povo, Israel. Ele destruiria os donos do poder e colocaria os pobres e famintos em seu lugar. Quem passa fome, se enxeria de comida, os últimos seriam os primeiros.
Tal mensagem continuaria posteriormente dentre os discípulos de Jesus que ainda possuíam um viés bastante judaico em sua expressão cristã, pessoas para as quais ser cristão e judeu não significava duas coisas separadas, pois um era o mesmo que o outro. Para eles, acreditar em Jesus como o messias prometido a Israel era a melhor expressão de viver a religião judaica:
“Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas, e as vossas roupagens, comidas de traça; o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência” (Tiago 5:1-6).
Para o(s) autor(es) desse documento, a esperança na destruição da injustiça investida pelos poderosos contra os pobres indefesos ainda era algo vivo e presente.
Com isso, Jesus não separa o material do imaterial, a alma do corpo, o céu da Terra, o mundano do divino, mesmo porque essas categorias gregas sobre a composição do ser humano não fariam parte da mentalidade de um camponês da Galileia do primeiro século da Era Comum. Jesus conecta o material com o imaterial. Para ele, tudo é uma coisa só. O problema da injustiça do mundo tem a sua resolução em uma ação de Deus. Para Jesus, a ideia é justamente que a salvação da injustiça refletida na vida explorada da população da Galiléia se resolverá na intervenção divina; é o eschaton, o momento em que céu e Terra se unem, o momento em que a nova Jerusalém desce do céu e onde os que antes eram oprimidos reinarão com Deus. Por isso, felizes os que agora choram e bem-aventurados os pobres, pois deles é o reino de Deus que virá e serão consolados. Nada disso, é preciso reforçar, está desligado da religião e voltado somente a uma situação política, pois essa divisão não existia no tempo de Jesus. A resolução de assuntos que para nós parecem políticos se daria de uma forma que hoje nos soa apenas religiosa. Aqui, é importante lembrar que a religião abrangia todas as esferas da vida antiga.
Entretanto, ao fazermos essa análise histórica, é necessário ter algo muito claro em mente: uma coisa é falar do que Jesus pregava, outra coisa é analisar como o impacto da sua mensagem, juntamente com a experiência da Páscoa, influenciou os discípulos dele a interpretarem o significado que ele tinha nos planos de Deus e qual era o ponto central da sua missão.
Quando os discípulos de Jesus tiveram as experiências da ressurreição, essa mensagem passou a ser desenvolvida, e o papel dele na intenção de Deus para Israel no fim dos tempos começou a ficar mais e mais elaborado. Questões sobre como a Torá deveria ser interpretada à luz de Jesus começaram a surgir, e então apareceu Paulo (quem sabe os próprios judeus helenistas de Jerusalém antes dele?) com muito a falar sobre o problema humano do pecado e da culpa diante de Deus, e o que a morte de Jesus tem a ver com tudo isso. Com quatro séculos de desenvolvimento teológico sobre quem era Jesus e o que a sua vida e missão significaram para a humanidade, temos o cristianismo, formado pelo debate dos líderes religiosos que buscavam uma definição daquilo que acreditavam em face de outras ramificações geradas pelo impacto de Jesus sobre o mundo judaico e pela admiração que uma figura como aquela causara em quem buscava uma resposta para a questão humana. A tais líderes coube o papel de ratificar quais documentos deveriam ser usados e como poderiam ser interpretados.
Fazer uma leitura da religião de Jesus desde uma perspectiva sociológica dentro do seu momento histórico é diferente de tentar explicá-lo segundo os credos cristãos desenvolvidos posteriormente. Enquanto essas confissões teológicas sobre quem era Jesus (o Cristo) buscam uma resposta ontológica para a verdade do mundo (algo abrangente que explica a realidade total do cosmos), uma análise histórica da vida de Jesus de Nazaré procura apenas entender quem era o homem judeu do interior da Galiléia que foi condenado à morte em Jerusalém por insurreição contra o império romano e a aristocracia judaica de seus dias, os quais queriam evitar maiores problemas.