30/06/2021

Apocalipse Sinótico: a demora da parousia e a apologética cristã

Um dos episódios mais notáveis dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) é o chamado Apocalipse Sinótico (Mateus 24, Marcos 13 e Lucas 21), o discurso de Jesus a respeito da destruição do templo e a final intervenção de Deus sobre a história, inaugurando o reino. A cena levanta alguns sérios questionamentos por parte de quem lê a Bíblia como um livro que ainda precisa fazer sentido, mesmo não atualizado ou adaptado, para a sua vida pessoal nos dias de hoje. Isso se deve pelo fato de que o discurso de Jesus nessas passagens parece fazer referência a um fato histórico que aconteceu no ano 70 da era comum: a destruição de Jerusalém pelos romanos e a derrubada do templo. Ora, se Jesus predisse que a destruição do templo acarretaria na vinda imediata do reino ("não passará esta geração sem que tudo isso aconteça"), por que ainda estamos esperando, depois de mais de dois mil anos, a volta de Jesus e a vinda do reino de Deus?

Muitas vertentes teológicas produziram respostas a essa pergunta óbvia para quem, dentro de uma confessionalidade cristã fundamentalista, procura entender esse texto dentro da seguinte racionalização: a Bíblia não pode conter erros. Portanto, precisamos encontrar o real significado das palavras de Jesus no Apocalipse Sinótico, pois ele não teria se enganado a respeito do tempo da vinda do reino. As respostas para essas indagações são variadas. Alguns falam em uma vinda simbólica do reino após a destruição do templo no ano 70; outros disseram que a geração a que Jesus se refere não é a dele, mas a geração que veio depois do reestabelecimento da nação de Israel em 1948, após o término da Segunda Guerra Mundial; outros, ainda, tentam guardar as duas pontas do espectro, afirmando que Jesus se referia ao ano 70, mas que havia algo a mais em suas palavras: o significado do texto é a guerra dos judeus com os romanos, mas o significante do texto está no futuro, isto é, o texto é uma prévia do que acontecerá muitos séculos depois.

Apesar de as respostas serem diferentes, elas estão unidas em um objetivo único, mesmo que implícito: demonstrar que Jesus (ou melhor, os autores que colocaram essas palavras na boca dele) estava(m) falando de um tempo futuro, uma época distante, provavelmente a nossa. Certamente, uma leitura teológica, que faz com que o texto ainda tenha sentido para os leitores atuais, é válida. Todavia, a meu ver, essa não é a forma mais segura de abordar esses textos se o seu objetivo for entender o que os autores queriam dizer em seu contexto original e aquilo que eles esperavam que os seus leitores originais entendessem. O fato de a Bíblia ser considerada, por quase todos os cristãos, como um livro divino, os faz aproximarem-se dela de uma forma que não fariam com qualquer outro texto antigo cujo significado estejam procurando. Em outras palavras, o pressuposto da inspiração divina da Bíblia impede que o leitor entenda exatamente o que os autores estavam querendo dizer.

A menos que isso seja implicitamente óbvio ou explicitamente negado pelo autor, ele estará, invariavelmente, falando com seus leitores imediatos. Para se entender o que ele queria dizer quando escreveu, portanto, é preciso levar em conta o seu contexto e os seus primeiros leitores; é preciso entender o meio histórico em que o autor estava inserido. Sendo assim, me parece mais seguro partirmos do pressuposto de que um autor do século primeiro estivesse falando para pessoas da sua época e dificilmente estaria pensando em dois mil anos à frente. Quando escreveram (ou copiaram e editaram) o Apocalipse Sinótico, os evangelistas (autores dos evangelhos) não estavam pensando em nossa geração, mas nas comunidades cristãs das quais faziam parte; em um momento histórico onde, após alguns anos da morte de Jesus, eles ainda aguardavam ansiosos pela vinda do reino que ele mesmo havia prometido. Para eles, o reino viria a qualquer momento.

Tendo isso em vista, meu ponto é que os autores achavam que Jesus voltaria no tempo deles, e interpretar o Apocalipse Sinótico como um texto escrito para o futuro no sentido de algo que aconteceria somente depois de muitos anos não é exegese, mas uma reinterpretação de profecias que não se cumpriram conforme os seus autores acreditavam. Me parece mais razoável dizer que a ânsia por responder à pergunta "por que Jesus ainda não veio?" deu origem a tais explicações engenhosas sobre as profecias a respeito de sua vinda; faz mais sentido pensar que essa engenhosidade de interpretação não é exegese, mas uma tentativa, ainda que inconsciente, de salvaguardar a inspiração da Bíblia e de provar a verdade do cristianismo baseando-se em profecias que não podem falhar. Nessa ânsia, alguns cristãos reinterpretaram profecias que não tinham nada a ver com o seu momento histórico para fazê-las terem sentido, pois, para eles, é claro que Jesus não poderia ter se enganado sobre a vinda do reino naquela geração. Isso, contudo, não me parece ser exegese, mas apologética cristã.

Aqui, é necessário apontar a atualização da mensagem de Jesus sobre o reino, feita pelos primeiros cristãos, para a mensagem dos cristãos sobre a volta de Jesus trazendo esse reino: com a morte de Jesus e as experiências com a ressurreição, os cristãos misturaram a pregação inicial de Jesus com a ideia de que ele mesmo traria o reino no seu retorno, colocando-o no centro dessa vinda do reino. A igreja, desde o seu primórdio, crê na volta de Jesus, e essa crença, juntamente com a demora da parousia (a volta de Jesus), fez com que tais engenhosidades hermenêuticas surgissem. Como eu disse acima, era preciso responder à pergunta "por que Jesus não veio ainda?" Visto que Jesus não poderia estar errado sobre a vinda desse reino e ele está (ou estava) demorando para vir, é necessário encontrar um meio de dizer que o autor não disse exatamente aquilo que está escrito.

Um dos exemplos mais claros, ainda no Novo Testamento, dessa necessidade de explicar a demora da volta de Jesus e, consequentemente, da vinda do reino, está na segunda carta atribuída a Pedro:

"Mas há uma coisa, amados, que vocês não devem esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a julguem demorada. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento. Porém, o Dia do Senhor virá como um ladrão. Naquele dia os céus passarão com grande estrondo, e os elementos se desfarão pelo fogo. Também a terra e as obras que nela existem desaparecerão." (2 Pedro 3:8-10)

Esse autor, diferente dos modernos, tenta resolver o problema da demora com uma resposta simples: para Deus, o tempo não passa como para os seres humanos. Aqui, fica evidente que as primeiras gerações de cristãos já se preocupavam com essa demora. Eles estavam com problemas, e esses problemas, conforme as gerações passavam, deram origem às engenhosidades hermenêuticas apresentadas acima. Quando o autor da carta de Pedro fala em mil anos para o Senhor, deixa transparecer os questionamentos de uma geração que já estava pensando na demora na volta de Jesus — aliás, esse é um dos motivos que levam os estudiosos a concluírem que essa carta não pode ter sido escrita pelo apóstolo de Jesus, pois demonstra as frustrações de uma geração posterior a Pedro, onde o adiamento da vinda do reino estava começando a se tornar um problema nas comunidades.

Ainda dentro do Apocalipse Sinótico, há uma outra indicação de que o autor está tentando explicar por que o reino ainda não veio se Jesus havia prometido algo imediato:

"Estejam de sobreaviso, porque as pessoas os entregarão aos tribunais e às sinagogas. Vocês serão açoitados e, por minha causa, serão levados à presença de governadores e reis, para lhes servir de testemunho. Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações." (Marcos 13:9-10, ênfase minha).

A inclusão dessa cláusula sobre a pregação para todas as nações demonstra uma preocupação com certa demora da vinda. Jesus afirmou a vinda iminente do reino e morreu. Os cristãos acharam que ele viria trazer o reino logo, mas estavam começando a sentir a demora.

Há, ainda, um outro autor neotestamentário que deixa escapar uma inquietação a respeito da demora da parousia. No Evangelho de Lucas e no Livro dos Atos dos Apóstolos, escritos depois de Marcos, o autor tenta acalmar os seus leitores: “Ouvindo eles estas coisas, Jesus contou uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o Reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente.” (Lucas 19:11); "Então os que estavam reunidos com Jesus lhe perguntaram: Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel? Jesus respondeu: Não cabe a vocês conhecer tempos ou épocas que o Pai fixou pela sua própria autoridade." (Atos 1:6-7). Tenham paciência, diria esse autor, e não se preocupem com isso. As coisas acontecerão no tempo de Deus.

Esses não são os mesmos motivos que fazem os cristãos da atualidade acharem que a vinda é iminente, mas a preocupação é a mesma: Jesus achava que o reino viria em seus dias, mas ele ainda não veio. Por que está levando tanto tempo? Por que Jesus ainda não voltou? Acalmem-se, diriam os autores, ainda nos resta o tempo dos gentios; Jesus voltará depois de pregarmos a todas as nações. Portanto, vamos embora pregar, porque ele mesmo disse que não passaria dessa geração; as coisas acontecerão no tempo de Deus; para o Senhor, mil anos são como um dia; na verdade, Jesus não falava daquela geração, mas da nossa, etc. Essas respostas, porém, por mais que sejam satisfatórias desde uma perspectiva teológica e de apropriação textual -- afinal, um texto antigo pode ser resignificado para o leitor atual, ainda mais em se tratando de um texto religioso --, não servem para quem quer apenas entender o que os autores e Jesus de Nazaré queriam dizer em seu contexto original.

24/05/2021

Jesus e os primeiros cristãos (E. P. Sanders)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus and Judaism",  de E. P. Sanders, p. 335.]


Jesus afirmou que o fim estava próximo, que Deus estava para estabelecer o seu reino, que aqueles que respondessem a ele (Jesus) seriam incluídos e (pelo menos por implicação) que ele (Jesus) reinaria. Ao apontar para a mudança de épocas (ou eras), ele realizou um gesto simbólico, virando as mesas na área do templo. Esse foi o ato crucial que levou à sua execução, embora houvesse causas contribuintes.

Seus discípulos, após a morte e ressurreição, continuaram a aguardar a restauração de Israel e a inauguração da nova era, e continuaram a entender que Jesus ocuparia o primeiro lugar no reino. Além disso, eles continuaram a aguardar um reino supramundano, que seria estabelecido por um milagre escatológico, embora a localização desse reino possa ter mudado deste mundo para o celestial. A própria pessoa de Jesus também foi progressivamente interpretada: ele não foi mais visto apenas como 'Messias' ou 'Vice-rei', mas como Senhor. Algumas pessoas que foram atraídas pelo movimento começaram a converter gentios. A obra dos primeiros apóstolos, tão bem refletida nas cartas de Paulo, se encaixa inteiramente nas expectativas conhecidas sobre a restauração de Israel.

A necessidade da separação entre história e teologia (E. P. Sanders)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus and Judaism", de E. P. Sanders, p. 334-5.]


As relações entre história e teologia são muito complexas, e não farei nenhum esforço insignificante para me aprofundar em um assunto vasto e difícil aqui. Estive engajado por alguns anos no esforço de libertar a história e a exegese do controle da teologia; isto é, libertá-la da obrigação de chegar a certas conclusões que são predeterminadas pelo compromisso teológico, e pode-se ver esse esforço sendo continuado aqui. É uma tarefa muito simples, mas considero-a essencial para um empreendimento mais complexo. Pretendo ser apenas um historiador e um exegeta. Mas, uma vez que critiquei tantos por terem sua 'história' e 'exegese' ditada pela teologia, o leitor pode muito bem se perguntar o quão bem 'meu' Jesus se enquadra com minha herança teológica. Posso explicar de forma simples: sou um protestante liberal, moderno e secularizado, criado em uma igreja dominada pela baixa cristologia e pelo evangelho social. Tenho orgulho das coisas que essa tradição religiosa representa. Não sou ousado o suficiente, no entanto, para supor que Jesus veio para inaugurar tal tradição, ou que morreu por causa dos princípios defendidos por ela.

10/05/2021

Por que Jesus foi morto? (E. P. Sanders)

(Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro "Jesus and Judaism", de E. P. Sanders, p. 293).


Jesus ofendeu muitos de seus contemporâneos em dois pontos: seu ataque ao templo e sua mensagem a respeito dos pecadores. Em ambos os pontos, pode-se dizer que ele está desafiando a adequação da dispensação mosaica, e ambos são, em grande escala, abrangentes e flagrantes. Sua presunção de falar em nome de Deus foi certamente aprovada por aqueles que se convenceram de que ele o fazia, e isso provavelmente não foi, de modo geral, ofensivo. Contudo, tal presunção pode ter se tornado algo ofensivo quando esse porta-voz de Deus se voltou contra o templo. Ele insistiu neste, o ponto mais ofensivo, em Jerusalém, na época da Páscoa, e isso não poderia ter sido deixado de lado. Se acrescentarmos a essas considerações somente mais o fato de que ele tinha um número notável de seguidores, não precisaremos mais procurar para entender por que ele foi executado.

Neste nível de ofensa, não precisamos buscar um grupo específico que se opôs a Jesus e incitou os romanos a executá-lo. Em outro nível, entretanto, uma inferência razoável sobre os instigadores de sua morte pode ser feita. Ele foi executado pelos romanos, e, se os judeus tiveram alguma coisa a ver com isso -- isto é, se ele não foi executado simplesmente porque causou um distúrbio público --, os instigadores de sua morte teriam sido aqueles com acesso a Pilatos. Os principais entre eles eram os líderes do sacerdócio.

06/05/2021

Mateus dentro do sectarismo judaico (John Kampen)

(Nota: o trecho a seguir foi retirado do livro "Matthew within Sectarian Judaism", de John Kampen.)



Uma conferência na Southern Methodist University em 1989 marcou uma grande mudança no estudo do primeiro evangelho. Os primeiros resultados dessa nova onda de pesquisas por meio da perspectiva das ciências sociais foram resumidos da seguinte maneira:

1. A comunidade mateana estava situada em um ambiente urbano, talvez na Galiléia ou na Síria, mas não necessariamente em Antioquia.

2. Embora englobasse convertidos gentios, o constituinte étnico da comunidade mateana era predominantemente judeu-cristão.

3. A comunidade mateana é melhor entendida como uma seita dentro do judaísmo.

4. No momento da escrita do evangelho, a comunidade mateana estava encontrando forte oposição do judaísmo farisaico (ou formativo).

5. No centro da disputa com o judaísmo farisaico estava a questão da interpretação e prática da lei judaica.

Essa lista significou um afastamento notável de uma boa parte da erudição mateana anterior.

Um levantamento da erudição crítica sobre Mateus na primeira parte do século XX demonstraria até que ponto o contexto judaico do primeiro evangelho se tornou menos significativo no exame de seu desenvolvimento histórico. Deixando de ser considerada uma composição originalmente hebraica e o mais antigo (daí o mais autêntico?) dos evangelhos, Mateus passou a depender de Marcos e Q, de acordo com os críticos das fontes no século XIX. Isso foi seguido pelo trabalho magistral sobre a crítica da forma, de Rudolf Bultmann, que identificou camadas de texto dentro do desenvolvimento do movimento cristão inicial, mas não as relacionou de maneira significativa com a literatura judaica da época. Os critérios empregados tendiam a enfatizar os desenvolvimentos teológicos no cristianismo primitivo, em vez de enxergar respostas à vida judaica refletida na literatura cristã. Após sua atenção detalhada ao que poderia ser denominado "as microformas", a crítica da redação foi uma tentativa de identificar as posturas teológicas que cada um dos escritores dos evangelhos trouxeram para a sua avaliação do significado de Jesus, geralmente um foco cristológico. Mais uma vez, a experiência judaica do primeiro século foi relegada ao segundo plano em se tratando de ser uma preocupação primária dos intérpretes. Nas mãos de exegetas mais recentes, essa abordagem para uma análise do texto como um todo gradualmente buscou métodos literários para a análise do texto. A crítica literária estava interessada na exploração da dinâmica dentro do texto, frequentemente com um olho para o texto como um modo de comunicação, em vez de para o mundo judaico dentro do qual o texto foi composto e lido. Todos esses métodos inevitavelmente levaram o texto a ser lido principalmente como um texto cristão, com o mínimo de atenção ao seu contexto judaico. A possibilidade de que Mateus deva ser lido principalmente como uma composição judaica não foi levada em consideração durante a utilização desses métodos, que eram predominantes no trabalho erudito em cima do Evangelho Segundo Mateus no século XX.

16/03/2021

Quem foi Jesus? (E. P. Sanders)

Nota: o texto abaixo é de autoria de E. P. Sanders, e foi retirado do livro "Redefining First-century Jewish and Christian Identities: Essays in Honor of Ed Parish Sanders", editado por Fabian E. Udoh (p. 27).


Jesus foi um profeta da restauração de Israel que começou [sua carreira] como seguidor de um profeta escatológico (João Batista) e cujo ministério resultou em um movimento judaico escatológico (o cristianismo primitivo, especialmente como visto nas cartas de Paulo). Ele apontou para a restauração por meio de palavras e ações, proclamando o reino como chegando em breve e indicando a restauração de Israel, especialmente chamando os Doze. Ele fez gestos simbólicos dramáticos apontando para essa esperança. Um desses gestos, derrubar mesas no pátio do templo, levou Caifás a pensar que Jesus poderia iniciar um motim. Os requisitos do sistema romano resultaram em sua execução. Seus seguidores continuaram seu movimento, esperando que ele voltasse para restabelecer Israel. Isso naturalmente os levou a incorporar a esperança profética de que, nos últimos dias, os gentios se voltariam para adorar o Deus de Israel.

12/03/2021

O constrangimento do batismo de Jesus por João Batista para os primeiros cristãos

Uma das coisas mais seguras historicamente sobre Jesus é o fato de ele ter iniciado sua carreira pública em próxima conexão com João Batista, provavelmente como seu discípulo. Um outro fato histórico altamente provável, ligado ao primeiro, é que Jesus foi batizado por João.

Em seus dias, João Batista foi o líder de um movimento que esperava o julgamento final de Deus sobre o mundo e a restauração do povo de Israel a um papel central de domínio mundial em uma Terra renovada. O Batista tinha discípulos, e usava um ritual simbólico que trazia tons de purificação e demonstrava uma inclinação, por parte do batizado, para uma atitude de espera e preparação (um sinal de arrependimento) em vista desse julgamento.

O fato de Jesus ter sido batizado por João e de ter vindo do seu círculo de discípulos pode ter sido problemático para quem afirmava a exaltação de Jesus de Nazaré e sua óbvia atuação como messias judeu. Como o messias poderia ter sido batizado por outra pessoa, ainda mais com um ritual que demonstrava arrependimento? Seria aquele outro superior ao batizado? É bem possível que essas e outras perguntas pairassem sobre os primeiros discípulos de Jesus, e estes talvez não estiveram fora de disputas com os antigos discípulos de João sobre quem seria o maior.

Os relatos sobre o batismo de Jesus nos evangelhos deixam transparecer o incômodo dos primeiros cristãos com essas perguntas, e os escritores demonstram tradições que buscaram se desvencilhar de uma questão que, de forma crescente com o passar dos anos, precisava ser respondida à luz do significado de quem era Jesus para eles. Em outras palavras, os evangelistas tentam explicar o assunto embaraçoso de como Jesus poderia ter sido batizado por João, mesmo sendo maior que ele.

O primeiro evangelho a ser escrito (Marcos) fala do batismo de Jesus de forma rápida, e não tenta explicar como foi possível o messias ter sido batizado por João, apesar de Marcos apresentar, logo no início de sua narrativa, uma tradição que coloca João Batista como percursor de Jesus, tradição esta que é comum a todos os evangelhos:

"Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galileia e por João foi batizado no rio Jordão." (Marcos 1:9).

É difícil determinar, entre Mateus e Lucas, qual foi escrito primeiro. Há divergências entre os estudiosos sobre esse assunto, mas é senso comum no mundo acadêmico o fato de que Marcos veio primeiro e foi usado como fonte pelos outros dois. Aqui, é interessante notar como Mateus e Lucas editam a tradição sobre o batismo de Jesus.

"Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galileia para o Jordão, a fim de que João o batizasse. Ele, porém, o dissuadia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por enquanto, porque, assim, nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o admitiu." (Mateus 3:13-15).

A intenção do escritor de Mateus é bem clara: ele modifica o texto de Marcos — ou usa uma outra tradição conhecida de sua comunidade — para explicar o embaraço que existe na ideia de Jesus ter sido batizado. O evangelista apresenta um João submisso e pronto a, ele mesmo, ser batizado por Jesus! E só o batiza porque lhe foi permitido pelo mestre.

No caso de Lucas, apesar de não termos um João que se recusa a batizar Jesus, nos é apresentada uma história do nascimento do próprio Batista, onde, ainda quando não nascido, ele reconhece a superioridade de Jesus.

"Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; (...) logo que me chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim." (Lucas 1:41-44).

"E aconteceu que, ao ser todo o povo batizado, também o foi Jesus; e, estando ele a orar, o céu se abriu..." (Lucas 3:21).

No caso do Evangelho Segundo João, escrito por último, o relato do batismo de Jesus é completamente omitido, e o escritor nos apresenta a história pela metade: o Batista dá testemunho sobre Jesus repetidas vezes e, numa alusão à cena do batismo, onde o espírito desce sobre Jesus, apenas dá a entender que ele é superior:

"Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo." (João 1:33).

Esse crescente de modificações na forma de falar sobre o batismo de Jesus por João — de precursor de Jesus (Marcos), para permissão de batismo (Mateus), reconhecimento ainda quando no ventre (Lucas), até omissão do batismo em si (João) — nos mostra que a tradição de Jesus ser batizado precisou ser explicada. Por que isso aconteceu? Como interpretar historicamente essa modificação na tradição e fazer jus ao fato de que os evangelistas editaram a história para colocar Jesus em evidência e mostrar que o batismo tinha um motivo específico diferente dos outros? Por que os evangelistas não admitiram que o batismo aconteceu como os outros que João realizou? 

Parece-me razoável afirmar que essa tradição tenha surgido do fato constrangedor de que Jesus havia sido batizado e de que, portanto, João era maior do que ele ou algo do tipo — ou talvez porque um batismo de arrependimento teria sido muito estranho para o messias. O fato de o batismo de Jesus ter que ser explicado, e o fato de que é preciso enfatizar tanto que o Batista era menor do que Jesus, sugere que houve um problema com isso na comunidade primitiva, principalmente se levarmos em conta que o Batista ainda tinha discípulos mesmo depois de sua morte e início do ministério de Jesus (veja Atos 18). 

A tradição sobre o batismo de Jesus por João estava muito bem estabelecida na comunidade primitiva. Todos sabiam que Jesus havia vindo do círculo de João. A ligação não poderia ser simplesmente ignorada: ela precisou ser explicada. A resposta foi evasiva (Mateus) ou a questão foi simplesmente varrida para baixo do tapete (João), tudo isso com uma ênfase crescente de que João era menor que Jesus e falou isso durante o seu ministério (note que o último evangelista já mostra um João negando peremptoriamente que é o messias).

Talvez tenha ficado estranho, para os primeiros discípulos de Jesus — ou para pelo menos alguns círculos da seita dos nazarenos —, ter que admitir que o seu mestre havia sido discípulo de alguém, ainda mais quando esse mestre foi reconhecido como o próprio logos divino. Como o messias poderia ter sido batizado para o arrependimento de pecados? Por isso, eles precisaram mostrar que João era menor que Jesus ("convém que ele cresça e que eu diminua" João 3:30) e que havia algo diferente no batismo do messias.

01/03/2021

Jesus de Nazaré como profeta apocalíptico: a destituição dos poderosos e a exaltação dos humildes

Jesus de Nazaré, enquanto profeta judeu apocalíptico, falava de uma renovação na religião de Israel, assim como João Batista, seu predecessor e mestre. Esses judeus do primeiro século esperavam o momento em que Deus desfaria a injustiça da Terra no tempo escatológico do fim, na nova era, no novo éon, trazendo finalmente o reinado de Deus em Jerusalém, vista como a capital do mundo, onde Deus habitaria de forma derradeira, cumprindo aquilo que havia prometido.

A mensagem de Jesus de Nazaré está intrinsecamente ligada com a liberação do povo oprimido através da intervenção divina no fim dos tempos. O apocalipticismo falava justamente disso. A mensagem apocalíptica de Jesus tem a ver com a libertação de quem sofre na mão dos poderosos. É uma mensagem a favor dos pobres, dos injustiçados, dos indefesos, daqueles que eram usados e esmagados pela elite da época, o povo de Deus que precisa de socorro. Para Jesus, essa libertação ocorreria na intervenção final de Deus, trazendo julgamento para os maus e recompensa para os justos.

Essa característica da mensagem de Jesus pode ser percebida ainda na interpretação que o terceiro evangelista faz do significado do seu nascimento: “[Deus] dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (Lucas 1:51-53). Para o autor do Evangelho Segundo Lucas, o significado do nascimento de Jesus é claro: Deus havia cumprido as promessas feitas ao seu povo, Israel. Ele destruiria os donos do poder e colocaria os pobres e famintos em seu lugar. Quem passa fome, se enxeria de comida, os últimos seriam os primeiros.

Tal mensagem continuaria posteriormente dentre os discípulos de Jesus que ainda possuíam um viés bastante judaico em sua expressão cristã, pessoas para as quais ser cristão e judeu não significava duas coisas separadas, pois um era o mesmo que o outro. Para eles, acreditar em Jesus como o messias prometido a Israel era a melhor expressão de viver a religião judaica:

“Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas, e as vossas roupagens, comidas de traça; o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência” (Tiago 5:1-6).

Para o(s) autor(es) desse documento, a esperança na destruição da injustiça investida pelos poderosos contra os pobres indefesos ainda era algo vivo e presente.

Com isso, Jesus não separa o material do imaterial, a alma do corpo, o céu da Terra, o mundano do divino, mesmo porque essas categorias gregas sobre a composição do ser humano não fariam parte da mentalidade de um camponês da Galileia do primeiro século da Era Comum. Jesus conecta o material com o imaterial. Para ele, tudo é uma coisa só. O problema da injustiça do mundo tem a sua resolução em uma ação de Deus. Para Jesus, a ideia é justamente que a salvação da injustiça refletida na vida explorada da população da Galiléia se resolverá na intervenção divina; é o eschaton, o momento em que céu e Terra se unem, o momento em que a nova Jerusalém desce do céu e onde os que antes eram oprimidos reinarão com Deus. Por isso, felizes os que agora choram e bem-aventurados os pobres, pois deles é o reino de Deus que virá e serão consolados. Nada disso, é preciso reforçar, está desligado da religião e voltado somente a uma situação política, pois essa divisão não existia no tempo de Jesus. A resolução de assuntos que para nós parecem políticos se daria de uma forma que hoje nos soa apenas religiosa. Aqui, é importante lembrar que a religião abrangia todas as esferas da vida antiga.

Entretanto, ao fazermos essa análise histórica, é necessário ter algo muito claro em mente: uma coisa é falar do que Jesus pregava, outra coisa é analisar como o impacto da sua mensagem, juntamente com a experiência da Páscoa, influenciou os discípulos dele a interpretarem o significado que ele tinha nos planos de Deus e qual era o ponto central da sua missão.

Quando os discípulos de Jesus tiveram as experiências da ressurreição, essa mensagem passou a ser desenvolvida, e o papel dele na intenção de Deus para Israel no fim dos tempos começou a ficar mais e mais elaborado. Questões sobre como a Torá deveria ser interpretada à luz de Jesus começaram a surgir, e então apareceu Paulo (quem sabe os próprios judeus helenistas de Jerusalém antes dele?) com muito a falar sobre o problema humano do pecado e da culpa diante de Deus, e o que a morte de Jesus tem a ver com tudo isso. Com quatro séculos de desenvolvimento teológico sobre quem era Jesus e o que a sua vida e missão significaram para a humanidade, temos o cristianismo, formado pelo debate dos líderes religiosos que buscavam uma definição daquilo que acreditavam em face de outras ramificações geradas pelo impacto de Jesus sobre o mundo judaico e pela admiração que uma figura como aquela causara em quem buscava uma resposta para a questão humana. A tais líderes coube o papel de ratificar quais documentos deveriam ser usados e como poderiam ser interpretados.

Fazer uma leitura da religião de Jesus desde uma perspectiva sociológica dentro do seu momento histórico é diferente de tentar explicá-lo segundo os credos cristãos desenvolvidos posteriormente. Enquanto essas confissões teológicas sobre quem era Jesus (o Cristo) buscam uma resposta ontológica para a verdade do mundo (algo abrangente que explica a realidade total do cosmos), uma análise histórica da vida de Jesus de Nazaré procura apenas entender quem era o homem judeu do interior da Galiléia que foi condenado à morte em Jerusalém por insurreição contra o império romano e a aristocracia judaica de seus dias, os quais queriam evitar maiores problemas.

28/02/2021

Uma breve história de Jesus (Helen K. Bond)

Nota: trecho retirado do livro "Jesus: A Very brief history", de Helen K. Bond.


Por volta do ano 30 da Era Comum, em uma insignificante província oriental do Império Romano, um profeta judeu teve um fim brutal e vergonhoso em uma cruz romana. Na Galiléia, Jesus de Nazaré causou comoção com sua pregação revolucionária e suas habilidades excepcionais como curador e exorcista. Ele reuniu multidões de seguidores e trouxe sua mensagem à cidade de Jerusalém, exatamente quando ela estava lotada de peregrinos na movimentada época da Páscoa. E o governador romano, temendo um motim, ordenou sua prisão e execução.

No curso normal das coisas, isso teria sido o fim do caso. Jesus não era o primeiro aspirante a messias judeu, nem seria o último. O que o distinguia de todos os outros, no entanto, eram as afirmações de seus discípulos de que Deus o havia ressuscitado dentre os mortos, que agora ele estava sentado com o Todo-Poderoso no céu e que sua morte e ressurreição abriram um novo caminho para todos os povos se relacionem com o Deus de Israel. Essas eram reivindicações que só se intensificariam com o tempo, eventualmente levando seus seguidores a romper com suas raízes judaicas e, com a adição agora de convertidos não judeus, a formar o que eventualmente se tornaria a maior religião do mundo, o cristianismo.

27/02/2021

Por que os romanos mataram Jesus? (Geza Vermes)

Nota: trecho retirado do livro "Jesus e o mundo do judaísmo", de Geza Vermes, publicado no Brasil por Edições Loyola.


Na maioria das vezes, alega-se haver falta de correlação entre o Jesus aqui descrito como um homem mergulhado na piedade judaica e de perspectiva fundamentalmente apolítica, e a hostilidade com que foi tratado por representantes de judaísmo (ou ao menos alguns deles) e de Roma. Creio que a dificuldade vem de uma leitura ou interpretação errônea dos indícios apresentados. Reações violentas das autoridades religiosas judaicas contra um dos seus subordinados, bem como sua transferência para a jurisdição dos romanos, não implicam necessariamente que, na avaliação dessas autoridades, um crime político ou religioso tenha de fato sido cometido. A afronta pode ter sido simplesmente um comportamento irresponsável suscetível de levar à agitação popular. Os encarregados da manutenção da lei e da ordem poderiam facilmente estar convencidos de que era seu dever evitar, com vistas ao bem comum, que o perigo tomasse vulto numa sociedade já afetada pelo fervor revolucionário. O caso de João Batista, descrito nas Antiguidades de Josefo como um pregador influente e, portanto,  potencialmenteperigoso, já oferece bons indícios sobre o caso de Jesus na ótica da liderança judaica. Contudo, o relato menos conhecido, igualmente de Josefo, de um "profeta” apocalíptico também chamado de Jesus, proporciona um paralelo ainda mais revelador.

Em 62 d.C., quatro anos antes de eclodir a primeira revolução contra Roma, durante a festa dos Tabernáculos, os líderes religiosos de Jerusalém prenderam Jesus, filho de Ananias, por enunciar profecias aziagas na cidade. Ao que parece, ele proclamava que aflições se abateriam sobre o santuário e o povo. A fim de fazê-lo parar, eles lhe deram uma severa surra. Mas Jesus, filho de Ananias, sofreu os golpes em silêncio, sem emitir sequer uma palavra de protesto, e não desistiu de profetizar. Isso deixou os líderes num verdadeiro dilema; diz-se que alguns deles chegaram a pensar se Jesus, filho de Ananias, não seria inspirado por Deus (cf. At 5:39). Mesmo assim, persuadidos de que a fonte de um sério distúrbio tinha de ser neutralizada, eles preferiram entregar o homem ao  governadorromano, e Jesus, filho de Ananias, foi “açoitado até ter os ossos expostos”. Como nem mesmo essa tortura se mostrou eficaz, e como, examinado pelo Procurador, ele persistisse em seus lamentos e se recusasse a responder às perguntas de AIbino, este último o libertou. Ele acreditava que o homem estivesse louco!

Há uma similaridade prima facie entre o caso de Jesus, filho de Ananias e o de Jesus de Nazaré. A conduta de ambos poderia levar à violação da ordem pública, ocasionando uma intervenção romana maciça, situação a ser evitada a todo custo. Todavia, em vez de agirem eles mesmos, os magistrados judeus estavam plenamente dispostos a enviar o "criador de problemas" aos romanos. Ao fazê-lo, eles se protegiam da acusação de não terem cumprido o seu dever e, ao mesmo tempo, se isentavam de proferir e executar uma sentença num caso embaraçoso, com o qual, sem sombra de dúvida, preferiam não ter deparado. O julgamento de Jesus, filho de Ananias, terminou numa absolvição com a justificativa de loucura, ao passo que o de Jesus de Nazaré -- uma questão muito mais séria devido aos desacordos que ele causara no Templo e à suspeita de que alguns dos seus seguidores fossem zelotes -- levou à decisão injusta de um tribunal e a uma das maiores tragédias da história.

26/02/2021

O Jesus Histórico (John Dominic Crossan) - Parte 2

Nota: trecho retirado do livro "O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do mediterrâneo", de John Dominic Crossan, publicado no Brasil por Imago Editora.



No princípio havia a realização; não apenas a palavra, nem apenas o ato, mas ambos, cada um marcado pelo outro para sempre. Ele chega, ainda desconhecido, numa aldeola da Baixa Galiléia. Encontra o olhar frio e duro de camponeses que vivem há muito tempo num nível de mera subsistência e sabem, portanto, onde fica a fronteira entre a pobreza e a miséria. Parece um mendigo, mas seus olhos não têm o aspecto servil que seria de esperar, sua voz não soa com os lamentos de costume e seu andar não é arrastado. Ele fala do domínio de Deus e os camponeses escutam mais por curiosidade do que outra coisa. Eles sabem o que é domínio e poder, o que é reino e império, mas sabem disso em termos de impostos e dívidas, subnutrição e doença, opressão agrária e possessão demoníaca. Querem saber o que esse reino de Deus pode fazer por uma criança aleijada, um pai cego, uma alma atormentada que grita o seu isolamento angustiado entre os túmulos que marcam os limites da aldeia. Jesus vai com eles até os túmulos e, no silêncio que se segue ao exorcismo, os aldeões o escutam novamente, mas dessa vez a curiosidade dá lugar à ganância, ao medo e ao constrangimento. Ele é convidado, como exige a honra, para a casa do líder da aldeia. Ao invés disso, vai para a casa da mulher sem posses. Não é exatamente a atitude adequada, mas seria uma estupidez censurar um exorcista, criticar um mago. O povo da aldeia poderia servir como um intermediário de seu poder, poderia dar a este reino de Deus uma localização, um lugar onde outras pessoas viriam ser curadas, um centro onde haveria honra e apadrinhamento para todos, talvez até mesmo para aquela mulher sem posses. Mas no dia seguinte ele vai embora, e agora se perguntam em voz alta sobre um reino divino que não mostra nenhum respeito pelo protocolo, um reino que, segundo ele, se destinava não só aos pobres como eles, mas também aos miseráveis. Outros dizem que os piores demônios, os mais poderosos, estão em certas cidades, e não em pequenas aldeias. Talvez, dizem, o demônio exorcisado tenha ido para um lugar desses, para Séforis ou Tiberíades, para Jerusalém, ou até mesmo Roma, onde a sua chegada nem seria percebida em meio a tantos outros que já moravam lá. Mas alguns não dizem nada e pensam na possibilidade de alcançar Jesus antes que ele se afaste demais.

Nem o próprio Jesus sempre vira as coisas dessa maneira. Antes, ele tinha recebido o batismo de João e aceitado a mensagem de que Deus seria o juiz de um apocalipse iminente. Mas o Jordão não é apenas água. Ser batizado neste rio significava reencenar a passagem arquetípica do cativeiro imperial para a liberdade nacional. Herodes Antipas tratou de executar João imediatamente, não houve nenhuma consumação apocalíptica e Jesus, encontrando a sua própria voz, começou a falar de Deus, não como um apocalipse iminente, mas como uma cura no presente. Aos seus primeiros seguidores, gente das aldeias camponesas da Baixa Galiléia que perguntavam como pagar pelos seus exorcismos e suas curas, ele dava uma resposta muito simples – ou melhor, simples de entender, mas extremamente difícil de executar. Vocês são curandeiros curados, dizia, então levem o Reino a outras pessoas, pois não sou o seu mestre e vocês não são seus intermediários. Ele sempre esteve e sempre estará à disposição de todos aqueles que o desejarem. Vistam-se como eu, como um mendigo, mas não peçam esmolas. Façam um milagre e peçam um lugar à mesa. Aqueles que vocês curarem devem aceitá-los em sua casa.

Essa visão enlevada e esse programa social tinham o objetivo de reconstruir uma sociedade a partir de suas bases, mas através de principios de igualitarismo religioso e econômico, levando-se curas gratuitas diretamente à casa do camponês e aceitando em troca qualquer coisa que puderem oferecer. A conjunção deliberada de magia e refeição, milagre e mesa, compaixão gratuita e comensalidade aberta era um desafio lançado não só à rigorosa regulamentação de pureza do judaísmo, ou à combinação patriarcal de honra e vergonha, apadrinhamento e clientelismo do Mediterrâneo, mas à eterna tendência da civilização de criar limites, estabelecer hierarquias e alimentar discriminações. Ela não buscava uma revolução política, mas uma revolução social que afetaria as profundezas mais perigosas da imaginação. Não se dava nenhuma importância às distinções entre gentio e judeu, homem e mulher, escravo e homem livre, ricos e pobres. Essas distinções mal chegavam a ser atacadas na teoria: elas simplesmente eram ignoradas na prática. O que aconteceria a Jesus provavelmente era tão previsível quanto o que já acontecera a João. Seria de se esperar que houvesse algum tipo de execução político-religiosa. O que ele fazia e dizia era tão inaceitável no século I quanto no século XX, lá, aqui, ou em qualquer lugar. No entanto, a sequência exata do que aconteceu no final não apresenta mais de um relato independente e é mais fácil entender a sua morte numa relação com a vida do que com os dias que a precederam. É provável que Jesus, confrontado com a riqueza magnífica do Templo – talvez pela primeira e última vez – tenha destruído simbolicamente a sua função perfeitamente legítima de mediador, em nome do reino sem intermediários de Deus. Se este ato tivesse se consumado na atmosfera explosiva da Páscoa, uma festa que comemora a libertação dos judeus da opressão de um império antigo, isso seria o bastante para ter a sua crucificação proclamada pelo poder político-religioso. Para nós, hoje em dia, é impossível imaginar a brutalidade e a indiferença com que se podia livrar de um camponês sem importância como Jesus.

20/02/2021

Quando não havia diferença entre judaísmo e cristianismo (James D. G. Dunn)

Nota: trecho retirado do livro Christianity in the Making, Volume 3: Neither Jew Nor Greek, de James D. G. Dunn, pp. 598-600.


Devemos evitar o pensamento de 'judaísmo' e 'cristianismo' nos primeiros dois séculos da era comum como sendo entidades já definidas e claramente distinguidas uma da outra. (...)

É muito problemático usar o termo "cristianismo" para o que estava acontecendo no primeiro século, pois a palavra não aparece até o início do segundo século, quando foi cunhada pela primeira vez, até onde podemos dizer, por Inácio de Antioquia. Falando linguisticamente, 'cristianismo' ainda não existia no primeiro século! — embora, é claro, o termo fosse um desenvolvimento natural do fato de que os crentes em Jesus o Cristo já estavam sendo chamados de 'cristãos' havia algum tempo (Atos 11:26). No Livro dos Atos dos Apóstolos, o movimento dos seguidores de Jesus é referido como uma "seita" (Atos 24:14; 28:22), "a seita dos nazarenos" (24:5). Significativamente, este é o termo que Atos também usa, assim como o historiador judeu Josefo, para as "seitas" dos saduceus, fariseus e essênios (Atos 5:17; 15:5; 26:5). Em outras palavras, Atos considerava o movimento inicial inspirado por Jesus como uma das seitas ou facções que constituíam e eram parte do judaísmo tardio do segundo templo.

18/02/2021

As várias faces de Jesus

Nota: trecho retirado do artigo "A busca pelas palavras e atos de Jesus: o Jesus Seminar", de Luigi Schiavo.


A pesquisa sobre o Jesus Histórico, a partir de Reimarus, no séc. XVIII, se desenvolveu, até os nossos dias, em três ondas, preocupadas em reconstruir os fatos históricos e a pessoa humana de Jesus, que ficavam como que escondidos atrás das afirmações dogmáticas e de fé das Igrejas. Tal busca é fruto de uma mentalidade racionalística, que acreditava, em nome da razão, poder reconstruir a verdade histórica relacionada a Jesus. Ela foi marcada por vários momentos e etapas, como a descoberta da estratificação e fragmentação dos textos bíblicos, sua consequente classificação, a inserção de Jesus no contexto histórico-sociocultural do judaísmo do I séc., e a referência a outras fontes canônicas, apócrifas e pseudepigráficas que lançavam novas luzes sobre a complexidade da religião e da sociedade judaica do tempo de Jesus.

Sendo os olhos e os enfoques do pesquisador bem diferentes dos olhos dos crentes e das Igrejas, são possíveis várias abordagem a Jesus, resumíveis a quatro:

O Jesus real: é o homem Jesus de Nazaré, o Jesus da história, que viveu na Galiléia na primeira metade do I séc. Pelo que podemos reconstruir, era filho de José o carpinteiro e de Maria, e tinha provavelmente outros irmãos chamados Tiago, José, Simão e Judas (Mt 13,55). Deve ter sido discípulo de João Batista e, depois da morte dele, atuou três anos como rabi, sendo condenado e crucificado, talvez na Páscoa do ano 30. Se de um lado conhecemos bem os dados relativos ao final de sua vida, sua infância e juventude são envolvidas no mistério, e as narrativas de que dispomos não passam de relatos míticos. Não temos fontes diretas sobre o Jesus real, mas só memórias literárias, sujeitas às limitações próprias destes documentos.

O Jesus histórico: é a reconstrução da figura de Jesus a partir dos dados a nossa disposição, vindo de várias fontes: a literatura bíblica e extra-bíblica do I séc.; a arqueologia; a sociologia; a historiografia, etc. Este trabalho, servindo-se de vários métodos científicos, busca reconstruir e entender o contexto histórico, sociológico e religioso do tempo de Jesus, tentando entender e imaginar o impacto de sua pessoa e mensagem dentro deste mesmo contexto. Parte-se do pressuposto que Jesus deve ser lido dentro do contexto galiláico de sua época. Não sabemos se o Jesus histórico corresponda ao Jesus real: com certeza se aproxima bastante a ele.

O Jesus teológico: é o Jesus das afirmações dogmáticas da Igreja, sobretudo dos primeiros quatro concílios que definiram os elementos fundamentais da cristologia, diante da fragmentação e do pluralismo das definições e dos movimentos religiosos: Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (451). É o Jesus da fé, diferente do Jesus real, mesmo que tenha elementos do Jesus histórico, e que será a base da unidade da fé das Igrejas que a ele se referem.

O Jesus da fé: é o Jesus crido, na resposta de fé do fiel que encontra o Jesus da história. É o Jesus considerado o Filho de Deus, o Senhor da história, o Salvador, o Messias, etc. Neste nível, o Jesus real, como ele era, o contexto em que vivia, o que realmente disse e fez, tem menor importância. Vale o Jesus imaginado, representado, sonhado, na maioria das vezes relacionado com os próprios desejos e necessidades. É um Jesus que já se transformou num verdadeiro símbolo, mas que tem o poder de orientar a vida e se tornar a referência ética fundamental de grupos e pessoas.

17/02/2021

O Jesus Histórico (John Dominic Crossan)

Polêmicas em torno da verdadeira história de Jesus ganham a imprensa e os canais de TV a cabo desde 1985, quando começou, nos EUA, o Seminário Jesus, uma série de estudos i­dealizada por um ex-padre: o historiador John Dominic Crossan.

Professor emérito da Universidade DePaul, de Chicago (EUA), e autor de 24 livros sobre o Jesus histórico, Crossan é um dos maiores especialistas no mundo em estudar o Novo Testamento com olhar de historiador. Baseando-se em diversas ciências – história, teologia e arqueologia bíblica – ele trata os Evangelhos e documentos da época com o mesmo nível de importância: fontes históricas que precisam ser analisadas e contextualizadas pela ciência. 

Em uma entrevista na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participou de uma versão brasileira do seminário que criou, Crossan manteve o jeito de padre ao falar de assuntos que tanto incomodam a Igreja sem prejudicar sua fé cristã. “Nosso esforço é o de separar o que, nos textos bíblicos, é fato histórico e o que é parábola religiosa”, afirma. 


O que podemos afirmar de concreto sobre a vida de Jesus? 

Primeiro, que ele existiu. Sabemos disso por meio de fontes romanas, judaicas e cristãs. Em segundo lugar, que ele foi mesmo crucificado pelo governador romano, legalmente, publicamente e oficialmente. Essa certeza de que ele existiu e foi condenado nos oferece muitas informações. Se foi crucificado, é porque era publicamente subversivo às ordens romanas e fazia parte das classes mais baixas da sociedade. Não era um pregador violento, já que Pilatos não se preocupou em persegui-lo, como fez com os companheiros de Jesus, e, sim, em crucificá-lo. Em resumo, Jesus foi uma pessoa que resistiu ao imperialismo romano de forma não violenta em nome do Deus judaico. 


E o que não podemos afirmar sobre ele? 

Se as parábolas sobre Jesus fossem tomadas literalmente, nós teríamos sérios erros. Há vários fatos acerca da genealogia, concepção, nascimento e vida de Jesus contados de forma diferente pelos evangelhos do Novo Testamento. Um exemplo: em Mateus, um anjo aparece para José falando sobre o nascimento de Jesus. Já em Lucas, o anjo aparece para Maria. Esses dois evangelhos têm aberturas parabólicas: as histórias que contam a infância de Jesus não devem ser entendidas ao pé da letra. Dizer que Herodes matou as crianças em Belém para matar Jesus, como está em Mateus, é uma parábola. É afirmar que ele é o novo Moisés e Herodes é o novo faraó do Antigo Testamento.


E o que se sabe sobre a morte de Jesus?

Foi uma ação coordenada entre a nobreza sacerdotal que estava ligada ao imperialismo romano. Foram os religiosos conservadores locais que colaboraram com o poder romano. Jesus se opôs à união entre uma religião conservadora e a violência do império. Da mesma forma, alguns fariseus e seus estudantes foram martirizados por tentar, de forma não violenta, remover a águia dourada (símbolo do imperador)que estava sobre a entrada do templo. Esse ato mostra uma aproximação entre Jesus e os fariseus, que não eram a favor do domínio romano. 


Muitos religiosos afirmam que a importância de Jesus é o seu impacto cultural, e não quem ele ­realmente foi. Qual é então a necessidade de estudar o Jesus histórico

O cristianismo sempre se considerou uma religião histórica. Trata-se de uma interação entre história e fé. Você estuda Jesus, historicamente falando, como estudaria qualquer outro objeto histórico. Se você é um religioso cristão, o que lhe interessa é o fato de ele se apresentar como Deus. No entanto, se você privilegia o elemento histórico da vida de Jesus, a sua análise não passa pelo campo da da fé, mas pelo da história, o seu olhar é o de Pilatos. Neste caso, vai interessar entender o porquê de ele ter sido crucificado. A escolha é sua. 


Por que há resistência, por parte dos religiosos e dos acadêmicos, de estudar o Jesus da história? 

Porque eles se recusam a aceitar o diálogo necessário entre história e fé. Existem muitos clérigos querendo fazer julgamentos históricos por meio da fé. Mas julgamentos assim são impossíveis. Para a história, o importante é o significado dos fatos. Cada religião faz reivindicações históricas. Mas cada doutrina precisa admitir que fé e religião são uma coisa, história é outra. 



Fonte: Revista Super Interessante.

05/02/2021

Jesus e o Sábado (E. P. Sanders)

[Nota: trecho retirado do livro "Jewish Law from Jesus to the Mishnah", de E. P. Sanders, publicado por SCM Press, London, 1990, p. 23.]


O Jesus sinótico se comportou no sábado de uma maneira que se enquadrava no âmbito do debate judaico da época sobre o assunto, e que estava bem dentro da abrangência do comportamento permitido. Jesus é descrito como sendo questionado sobre algumas de suas ações e sobre permitir que seus discípulos colhessem grãos quando estavam com fome; mas ele defendeu todos os casos por meio de algum tipo de argumento legal (às vezes não muito bom), e não há indicação de que suas justificativas não foram aceitas ou que aqueles que o examinaram apresentaram acusações ao magistrado local. Outros judeus discordaram sobre questões igualmente substanciais. As histórias sinóticas mostram que qualquer possível transgressão da parte de Jesus ou de seus seguidores era menor e teria sido vista como tal até pelos grupos mais restritos.

28/01/2021

Jesus e o Sábado (Gerd Thessein)

Nota: trecho retirado do livro "A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo" (p. 54), de Gerd Thessein, publicado no Brasil por Paulinas.

No que diz respeito aos conflitos sabáticos, no judaísmo de então ha­via uma vivida discussão a respeito do que era e do que não era permitido no sábado. Destarte, desde as guerras macabeias era permitido defender-se em dia de sábado — depois de, certa vez, mil judeus terem sido dizimados num sábado porque haviam renunciado à resistência (cf 1 Mc 1,29-38). Em determinadas situações excepcionais, em caso de legítima defesa, portanto, era permitido matar. Quando Jesus, em Mc 3:4, desafiadoramente, pergunta: “É permitido, no sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou matar?”, provavelmente ele está aludindo à permissão de matar em tempo de guerra, e deduz o maior a partir do menor: se é, pois, permitido fazer o mal, quanto mais fazer o bem! Em resumo: Jesus apenas expande os casos conhecidos de salvação da vida em dia de sábado aos casos de promoção ativa da vida. Com isso ele permanece na moldura da discussão judaica a respeito do sábado.

25/01/2021

A palavra implantada (em vós?): Tiago 1:21 e as visões divergentes no cristianismo primitivo

Em alguns textos anteriores, eu tratei sobre a diversidade de pensamento no cristianismo primitivo, ainda na época dos apóstolos e dos primeiros discípulos de Jesus. Um dos grandes exemplos dessa divergência é a disputa entre um judaísmo mais tradicional, seguido por Pedro e Tiago na comunidade judaico-cristã de Jerusalém, e um judaísmo que estava mais aberto a uma redefinição de alguns papéis da Torá (Lei) em relação à sua aplicação a gentios que aderiram à seita dos nazarenos, a comunidade messiânica judaica que tinha Jesus de Nazaré como o seu messias.

A Carta de Tiago, que provavelmente é um compilado das tradições sobre o ensino do líder da comunidade de Jerusalém feita por seus discípulos posteriormente, possui um exemplo claro dessa divergência de opiniões quanto ao papel da Torá em relação aos gentios que queriam se tornar adeptos da nova seita judaica. Contudo, esse exemplo fica mascarado nas traduções em língua portuguesa da epístola em questão, pois o(s) tradutor(es), lendo o documento sob uma ótica cristã moderna e com o pressuposto de que não haveria diferenças entre a opinião dos apóstolos sobre qualquer tema, inseriu duas palavras que não existem no texto original:

“Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma.” Tiago 1:21 (grifo meu).

As palavras “em vós” não fazem parte do texto grego e não se encontram em nenhum manuscrito antigo, isto é, não se trata de uma variante textual que foi seguida pelo tradutor. As palavras simplesmente não existem. O acréscimo ficou por conta dos tradutores, que achavam que “palavra implantada” só poderia significar “evangelho” ou “mensagem recebida pelos cristãos”.

Veja, por exemplo, como a versão inglesa New Revised Standard Version traduz o versículo: “Therefore rid yourselves of all sordidness and rank growth of wickedness, and welcome with meekness the implanted word that has the power to save your souls.” (“Portanto, livrem-se de toda sordidez e acúmulo de maldade e recebam com mansidão a palavra implantada que tem o poder de salvar suas almas.”)

Essa tradução está mais próxima do original grego, que traz as palavras ἔμφυτον λόγον (emphyton logon – palavra implantada) e nada mais. E também não há motivos gramaticais para acrescentar “em vós” na frase.

Por que o tradutor resolveu acrescentar essas palavras em seu texto? Provavelmente, porque ele traduziu como cristão e interpretou os termos “palavra implantada” como “mensagem do evangelho que é colocada no coração de quem creu nessa mensagem”. Por isso, para ele, “palavra implantada” só pode ser implantada “em vós”, porque ele parte do pressuposto cristão de que logos é a palavra de Deus que é recebida pelo coração de quem crê. Nesse caso, o tradutor é um apologeta cristão: ele não traduziu, mas interpretou o texto.

Entretanto, é válido perguntar se o significado de “palavra implantada” muda alguma coisa com o acréscimo. Para responder a isso, devemos levar em conta o que um judeu do século primeiro da Era Comum que viveu antes da queda de Jerusalém e da destruição do segundo templo em 70 E.C. (ou seus representantes que compilaram seus ensinamentos nessa carta) e que tinha Jesus de Nazaré como messias queria dizer com “palavra implantada”. Será que “palavra implantada” significava o mesmo para ele que “palavra que está no seu coração” significa para um evangélico (ou cristão de modo geral) de hoje em dia?

Tiago não era cristão nos termos atuais. Falar de cristianismo e judaísmo como duas religiões separadas no período em que essa carta foi redigida é um anacronismo monstruoso. Ele era um judeu messiânico que estava em conflito com outros judeus que não achavam correto que os gentios se tornassem prosélitos, isto é, aderissem ao modo de viver judaico derivado da Lei. Ele queria mostrar a validade da Lei de Moisés para outros judeus que achavam que a Lei, segundo interpretada por Tiago e possivelmente pela comunidade de Jerusalém, não valia para os gentios que estavam adentrando na sua nova seita judaica. Para isso, ele usa um conceito comum da literatura da época, o termo “implantado”, que fazia referência à ideia de razão humana inata ou lei natural, de onde os seres humanos derivam as noções de bem e mal. Para o judeu da carta, essa “palavra implantada” é expressada verbalmente na Torá. Para ele, seguir a Torá é ser guiado pelo que é correto. Assim, ele busca responder aqueles outros judeus messiânicos que acreditavam que a Torá, conforme interpretada por ele, não tinha muita serventia para quem não era judeu.

Para explicar isso melhor, traduzi abaixo uma parte da conclusão do livro Logos and Law in the Letter of James, de Matt A. Jackson-McCabe. O trecho se encontra nas páginas 242-3:

A análise dessa (“implantada”) e outras palavras revela que o termo “implantado” é normalmente usado na literatura antiga para descrever a razão humana ou uma lei natural que a razão humana abrange. A terminologia tem as suas raízes na teoria estoica de que a razão humana — a qual, na sua forma perfeita como “razão correta”, representa a lei natural — se desenvolve a partir de "preconcepções implantadas": a tendencia humana inata de conceitualizar distinções morais como “bom” e “mal”, frequentemente descritas como “sementes” de conhecimento ou virtude. Foi precisamente à luz dessa teoria que Dionísio Bar Salibi descreveu a “palavra implantada” de Tiago como “lei natural”, e que ele e um outro exegeta — cuja interpretação de Tg 1:21 está preservada em Pecumenius e Theophylactus — identificaram essas palavras como algo inato em toda a humanidade, algo associado particularmente com a habilidade de distinguir opostos morais.

Se a discussão do logos em Tiago difere em alguns aspectos das discussões dos estoicos sobre a razão humana, não é porque apenas Tiago, entre essas obras antigas, formulou a citação de “o logos implantado” com a lei perfeita inteiramente à parte da influência estoica. Ao contrário: tais divisões são encontradas onde quer que a compreensão estoica da lei seja incorporada a visões de mundo estranhas ao estoicismo.

Em Tiago, o criador do mundo é o deus das escrituras judaicas, e o logos que ele implantou na humanidade encontra expressão escrita na Torá, a “lei perfeita” que ele deu aos descendentes de Abraão. O desejo humano, por outro lado, é associado com o Tentador mitológico das tradições judaica e cristã: o diabo. A oposição entre logos e desejo e o problema da tentação, além disso, são vistos a partir de um horizonte escatológico iminente, quando esse deus executará um julgamento de acordo com a sua lei: “os ricos” serão punidos pelo seu hedonismo arrogante e opressivo, enquanto os pobres humildes que resistiram ao desejo e amarem a Deus herdarão o reino que ele prometeu.

Se a característica central da soteriologia de Tiago não é um “evangelho” pelo qual alguém pode renascer, mas um logos implantado por Deus em toda a humanidade na criação, o qual encontra expressão escrita na Torá, é dificilmente necessário concluir que a carta não foi originalmente uma composição cristã. Tendo em vista a correlação recorrente do interesse nas doze tribos de Israel com o messianismo, particularmente na literatura do período romano inicial, as referências à figura de Jesus Cristo são muito consistentes com o endereçamento da carta "às doze tribos que estão na diáspora", e também com a sua perspectiva escatológica mais geral. A incorporação do entendimento estoico da lei nessa cosmovisão é, ela mesma, na realidade, muito bem compreendida levando-se em conta os debates cristãos iniciais que estavam em andamento a respeito do significado da Torá. De fato, existe forte evidência sugerindo que o tratamento que Tiago tem da “perfeita lei da liberdade” foi cunhado particularmente com um olho na formulação de Paulo sobre o problema da lei.

06/01/2021

Os Muitos Deuses do Monoteísmo Antigo (Paula Fredriksen)

Nota: artigo escrito por Paula Fredriksen e publicado originalmente no blog da Yale University Press.


Como o judeu antigo — e, mais tarde, o cristão antigo — se distingue do seu vizinho contemporâneo, o pagão? As comunidades bíblicas eram monoteístas, muitas pessoas responderão; as comunidades pagãs eram politeístas. Para a cultura majoritária, muitas divindades povoavam os céus. As religiões bíblicas, mais austeras, se apegaram à crença em um único deus.

A crença de que existe apenas um deus funciona bem como uma definição do monoteísmo moderno. Mas o monoteísmo antigo acomodava a existência de muitas outras divindades. Para os antigos judeus e cristãos, Deus não era o único deus, nem mesmo em seu próprio livro.

As escrituras judaicas estão repletas de outras divindades, os "deuses das nações". Às vezes, o deus de Israel combate essas divindades enquanto o seu povo luta contra o povo deles. Durante o Êxodo, o deus de Israel enfrenta os deuses do Egito (Êxodo 12:12). YHWH captura deuses estrangeiros (Jeremias 43:12), pune-os (46:25) ou os envia para o exílio (49:3). O poder celestial existe em um gradiente: o deus de Israel é singularmente poderoso, e esses outros deuses se curvam a ele (Salmo 97:7). Na verdade, eles constituem a sua corte celestial: “Ele julga no meio dos deuses” (Salmo 82:2). Mas a população celestial é múltipla: divindades inferiores ou menores preenchem o céu e a terra.

O monoteísmo judaico antigo, em resumo, não era "monoteísta". Embora as nações pagãs possam ser ridicularizadas por sua adoração de imagens divinas (“ídolos”), os poderes representados por essas imagens eram reais. A lealdade religiosa judaica centrava-se no deus judeu, mas os judeus antigos também reconheciam o poder desses outros deuses inferiores, menores. Induzir esses poderes divinos a cumprirem suas ordens era a principal atividade dos magos judeus. Algumas inscrições em sinagogas judaicas evocam deuses cósmicos e terrestres como testemunhas de procedimentos legais. Outras mencionam visitas em sonhos feitas por divindades pagãs. Outras ainda dedicam fundos para celebrar feriados pagãos e judaicos.

Os deuses pagãos têm um perfil particularmente importante no Novo Testamento, nas cartas do apóstolo Paulo. Paulo consistentemente proíbe seus gentios batizados de adorarem suas antigas divindades, cuja existência ele ridiculariza e reconhece ao mesmo tempo — em certo momento, na mesma passagem! "'Um ídolo não tem existência real' e 'não há deus senão um'; pois embora possa haver os chamados deuses no céu e na terra — como de fato existem muitos deuses e muitos senhores — ainda para nós há um Deus, o Pai... e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8:4-6). “O deus deste mundo” está frustrando a missão de Paulo (2 Coríntios 4:4). Seus ex-gentios pagãos anteriormente adoravam os poderes elementares do universo (Gálatas 4:8-9).

Esses deuses fazem mais do que ficar no plano de fundo do passado pagão dos gentios de Paulo. Eles desempenham um papel fundamental no futuro cristão, moldando a identificação que Paulo tinha sobre Jesus como sendo o messias Davídico (Romanos 1:3 e 15:12). Jesus de Nazaré, como os evangelhos o retratam, foi um curandeiro carismático e um homem santo galileu. Nas tradições judaicas, no entanto, o descendente da casa de Davi, o messias escatológico, era, como seu antepassado bíblico, uma figura militar e monárquica, um guerreiro da realeza. Tendo derrotado os inimigos de Deus na batalha final e remontado as doze tribos de Israel, esse guerreiro governaria como um príncipe da paz — mas apenas quando ele prevalecesse na batalha apocalíptica contra o mal.

Como uma figura tão resolutamente civil quanto Jesus passou a ser associada a uma figura tão marcial como o messias final? A resposta curta é: por meio das expectativas em torno da Parousia de Jesus, sua triunfante "segunda vinda". Paulo fornece nossos primeiros vislumbres dessas expectativas em evolução. Quando ele retornar — durante a vida de Paulo, Paulo estava convencido — o glorioso Cristo descerá do céu ao clamor do arcanjo e o ressoar da trombeta final (1 Tessalonicenses 4:13-18). Ele ressuscitará os mortos; ele reunirá seus eleitos (loc. cit.); ele reunirá as tribos (“todo o Israel”); ele tornará todas as nações pagãs a Deus, seu pai (Romanos 11:25-26).

Mas antes de finalizar a história dessa forma, Cristo deve primeiro derrotar os deuses das nações. Paulo descreve o confronto de Cristo com essas forças especialmente em 1 Coríntios 15 e em Romanos 8. Na carta aos Coríntios, Paulo identifica esses deuses com forças cósmicas: "todo domínio, autoridade e poder" (1 Coríntios 15:24). Cristo os “destrói” e os “subjuga” “debaixo de seus pés” (15:24-27). Em outro lugar, em Filipenses 2, esses poderes sobre-humanos se ajoelham diante de Cristo e de Deus Pai (2:10-11). E em Romanos 8, essas divindades parecem totalmente reabilitadas: elas “gemem” junto com o resto da criação; e com a criação, eles aguardam a redenção final.

Mateus e Lucas, escritos perto da virada do primeiro século, irão "Davidizar" a biografia de Jesus. Esses dois evangelistas, em duas narrativas de nascimento mutuamente excludentes, apresentarão o Jesus galileu como tendo nascido no correto local judaico para o nascimento davídico: Belém. Meio século antes, o apóstolo Paulo não conhecia essas histórias sobre a natividade. Seu Jesus é o Cristo davídico por causa de seu reaparecimento futuro iminente como um guerreiro apocalíptico. Os poderes que ele combaterá são os deuses das nações. Renunciados, mas ainda assim necessários, esses deuses representam as forças cósmicas a serem submetidas ao triunfante guerreiro Cristo que retorna. Dessa forma e por essa razão, a identidade de Jesus como o messias davídico repousa no "monoteísmo" confuso da antiguidade, o cosmos congestionado de deuses pagãos. 


Pedro contra Paulo: o preconceito canônico e a influência do tradicionalismo judaico no cristianismo primitivo

Paulo é a voz do cânon. Quando avaliamos a influência do apóstolo nos primórdios do cristianismo, esse pequeno detalhe desvia a nossa atenção de uma coisa que deveria ser óbvia não fosse o peso das cartas de Paulo no Novo Testamento: Pedro e Tiago, respectivamente um dos doze mais próximos de Jesus e o irmão do mestre, exerceram uma influência muito maior nos primeiros cristãos do que o apóstolo nascido fora do tempo e ex-perseguidor da igreja.

Um dos momentos em que isso fica claro é no resultado da disputa entre Paulo e Pedro em Antioquia, relatado na carta de Paulo aos gálatas. Temos a impressão de que Pedro foi convencido pelos argumentos de Paulo sobre como os cristãos-gentios e cristãos-judeus deveriam se comportar à mesa, mas isso acontece porque o argumento de Paulo foi canonizado e o pressuposto é de que suas palavras são a verdade sobre o assunto. No entanto, é provável que o vencedor da disputa tenha sido Pedro (no sentido de que ele foi ouvido pelas primeiras comunidades), e talvez tenha sido por isso que Paulo foi obrigado a se defender. O fato é que Paulo não diz qual foi o resultado do confronto e não afirma que Pedro concordou com ele no final, diferente do que escreveu sobre a controvérsia a respeito da circuncisão, onde afirmou ter recebido o aval dos líderes da igreja de Jerusalém.

Pedro estava mais próximo ao que Jesus ensinou do que Paulo nessa disputa sobre os alimentos e sobre como um judeu e um gentio deveriam se relacionar na hora da refeição. Quem trouxe a novidade sobre o assunto foi Paulo, não Pedro — nem Jesus! Paulo afirma que foi ao terceiro céu, recebeu a revelação de um novo mistério e precisava convencer os outros discípulos. Em sua postura sobre os alimentos, Pedro estava apenas seguindo a lei de Moisés ao dizer que o estrangeiro que habita na terra de Israel deveria seguir os costumes judaicos. Nada mais. Paulo, por sua vez, nunca derrubou a lei em si, apenas disse que uma das suas funções estava ultrapassada.

Pedro saiu vencedor da disputa com Paulo em Antioquia, e as grandes igrejas fundadas por Paulo (na Galácia e em Corinto) foram fortemente influenciadas por uma visão judaica mais tradicionalista que era a de Pedro e Tiago. O fato de Paulo ter que brigar por seu apostolado nessas igrejas mostra que ele não era tão importante como imaginamos. Nas cartas escritas para as igrejas que fundou, Paulo precisa defender a sua autoridade diante de pessoas que estavam seguindo uma visão mais tradicional sobre como um gentio que virou judeu deveria viver. Isso mostra que esses dois foram mais influentes do que Paulo no início do cristianismo. Pensamos o contrário porque tudo o que lemos é o relato de Paulo sobre a situação. Imaginar que Paulo poderia puxar a orelha do principal discípulo de Jesus de Nazaré é ingenuidade histórica, um anacronismo guiado pela apropriação protestante de Paulo e pela interpretação luterana sobre os problemas do apóstolo. Um judeu da diáspora não teria mais autoridade no início da seita dos nazarenos do que um discípulo que andou com Jesus desde o começo.

Pedro e Tiago — juntamente com o judaísmo-cristão mais tradicionalista que existia na igreja de Jerusalém — tiveram uma primazia maior do que Paulo na comunidade primitiva. Não fosse a queda de Jerusalém e a destruição do cristianismo judaico, dificilmente a história se desenrolaria como se desenrolou. Hoje, temos a impressão de que Paulo era mais importante, mas isso acontece simplesmente porque ele tem um espaço grande no cânon. O fato de Pedro ter sido considerado o primeiro bispo de Roma não surgiu de um vácuo histórico, e a importância que o escritor de Atos dos Apóstolos, logo no início do seu tratado sobre o começo do cristianismo, dá à pedra sobre a qual Jesus fundaria a sua igreja (segundo um evangelho que soa muito antipaulino) não deveria nos passar despercebida.

04/01/2021

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Richard A. Horsley)

[Nota: o trecho abaixo foi retirado do livro "Jesus e o Império", de Richard A. Horsley (p. 107), publicado no Brasil pela editora Paulus.]

Num dos confrontos entre Jesus e os governantes de Jerusalém, os fariseus e herodianos tentam apanhar Jesus com uma pergunta sobre a legitimidade do tributo a César. Se queremos ouvir a resposta de Jesus no contexto histórico de povos israelitas sob o domínio imperial romano, precisamos superar o pressuposto moderno da separação entre a religião e os assuntos político-econômicos. Os fariseus e herodianos supostamente sabiam muito bem que, de acordo com a lei da aliança mosaica, não era lícito pagar tributo a Roma. Eles também sabiam que os romanos interpretariam o não pagamento do tributo como um ato de rebeldia. Sem dúvida, essa seria uma decisão suicida, uma vez que os romanos poderiam novamente dizimar e escravizar o povo em perversa retaliação, como haviam feito em 4 a.C. De fato, pouco mais de duas décadas antes da missão de Jesus na Galiléia e do confronto em Jerusalém, alguns antecessores desses fariseus haviam ajudado a organizar resistência ao tributo como líderes da Quarta Filosofia.

Em sua resposta, Jesus evita sutilmente a armadilha que lhe preparavam na tentativa de encontrar uma justificativa para prendê-lo como rebelde. “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Jesus não responde diretamente, “Não é lícito”. Mas a sua declaração teria sido compreendida exatamente desse modo por qualquer israelita que o estivesse ouvindo, até pelos fariseus. Ele assume a mesma postura da Quarta Filosofia. Se Deus é o Senhor e Mestre único, se o povo de Israel vive sob o reinado exclusivo de Deus, então todas as coisas pertencem a Deus, sendo bem óbvias as implicações para César. Jesus está clara e simplesmente reafirmando o princípio israelita de que César, ou qualquer outro governante imperial, não tem direitos sobre o povo israelita, uma vez que Deus é o seu rei e mestre de fato.