21/07/2025

A Sombra da Aboboreira e a Luz da Compaixão: Uma Interpretação de Jonas - Giovane Vargas

Artigo de Giovane Vargas


O livro do profeta Jonas, parte dos Doze Profetas Menores, é singular tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Ao invés de coleções de oráculos e discursos divinos, como ocorre na maioria dos livros proféticos, Jonas apresenta uma narrativa breve e simbólica, profundamente marcada por ironia e crítica teológica. A crítica histórica e literária aponta com consistência que sua composição ocorreu no período pós-exílico (séculos V–IV a.C.), e não no tempo do profeta homônimo do século VIII a.C. mencionado em 2 Reis 14:25. Essa leitura mais tardia é sustentada por fatores linguísticos, teológicos e contextuais.


1. Indícios da Composição Pós-Exílica

a) Linguagem e estilo narrativo

O hebraico do livro contém traços gramaticais e estilísticos típicos do período do Segundo Templo. A estrutura é altamente literária, com diálogos desenvolvidos, cenas simbólicas e uma progressão narrativa que remete mais à literatura sapiencial e à parábola do que à profecia clássica. Isso sugere uma composição posterior ao exílio babilônico, quando novos estilos literários floresceram.

b) A ausência de historicidade

O livro não busca situar os eventos de forma realista. A representação de Nínive como uma cidade que responde coletivamente a uma breve mensagem profética, com arrependimento imediato e universal, é claramente idealizada. Além disso, os elementos fantásticos — como o grande peixe e a aboboreira milagrosa — indicam uma intenção simbólica e teológica, e não histórica.

c) Crítica ao exclusivismo religioso

No contexto pós-exílico, especialmente após a reforma de Esdras e Neemias, o povo judeu enfrentava uma redefinição de identidade marcada por forte exclusivismo étnico e religioso. O livro de Jonas surge como contraponto a essa teologia de separação, apresentando um Deus que se compadece até mesmo dos inimigos históricos de Israel. A compaixão divina por Nínive — capital do império assírio que destruíra o Reino do Norte — é apresentada como legítima, universal e profundamente desconcertante.


2. O Estilo Literário Simbólico

Jonas deve ser lido como uma narrativa parabólica e simbólica, construída para provocar uma reflexão teológica profunda.

a) Jonas como símbolo de Israel

O profeta representa o povo de Israel em sua resistência ao chamado divino de ser bênção para todas as nações. Sua fuga, sua relutância em obedecer, seu desagrado com a misericórdia de Deus — tudo isso reflete uma crítica à mentalidade etnocêntrica que dominava certos segmentos do judaísmo pós-exílico.

b) Elementos simbólicos

  • O grande peixe: Jonas é engolido por um peixe e passa três dias em seu ventre, num símbolo claro de morte e renascimento, espelhando o exílio e o retorno de Israel.
  • Os marinheiros pagãos: representam o estrangeiro piedoso, que reconhece Deus e busca a salvação — em contraste com o profeta desobediente.
  • A aboboreira: cresce rapidamente para oferecer sombra a Jonas e é destruída por um verme. Essa planta, efêmera e confortadora, simboliza o apego do profeta ao próprio bem-estar enquanto ignora o destino de uma cidade inteira. Deus usa a planta para confrontar a lógica limitada do profeta: "Tu te compadeces da aboboreira... e eu não hei de me compadecer de Nínive?" (cf. Jn 4:10–11).

c) Uso da ironia

O texto é construído com fortes camadas de ironia: o profeta se comporta pior do que os pagãos; a cidade perversa responde melhor do que o mensageiro de Deus; o instrumento de conversão é uma mensagem mínima, quase ríspida. Essa ironia literária serve para subverter expectativas religiosas e teológicas, levando o leitor a reconsiderar o verdadeiro significado da eleição e da compaixão divinas.


3. Teologia da Misericórdia Universal

O livro de Jonas rompe com a ideia de que a graça divina está restrita ao povo de Israel. A mensagem principal é clara: Deus é Senhor de todas as nações, e sua compaixão não reconhece fronteiras étnicas ou políticas. Essa visão universalista é poderosa, especialmente em um momento em que setores do judaísmo pós-exílico buscavam reafirmar uma identidade exclusiva e separada.

Deus, no livro, não apenas acolhe o arrependimento dos ninivitas, mas também educa seu próprio profeta para que ele compreenda essa misericórdia. O verdadeiro alvo da conversão no livro pode ser o próprio Jonas — e, por extensão, o leitor israelita.


Conclusão: A Sombra da Aboboreira e a Luz da Misericórdia

O livro de Jonas é uma joia literária e teológica do cânone bíblico. Escrito provavelmente no período pós-exílico, ele utiliza uma narrativa simbólica para confrontar o etnocentrismo religioso e anunciar uma visão radicalmente inclusiva do amor de Deus. Jonas é mais do que uma história de um profeta desobediente — é uma parábola nacional, que espelha a crise de identidade de Israel e propõe uma teologia de reconciliação, misericórdia e abertura ao outro.

A aboboreira, cuja sombra temporária protege Jonas, representa os pequenos confortos que priorizamos diante do sofrimento alheio. Ao destruí-la, Deus revela uma compaixão infinitamente maior — aquela que vê e valoriza até mesmo os inimigos históricos. O texto convida, portanto, a sair da sombra estreita da intolerância e contemplar a luz ampla da compaixão divina que transcende todas as fronteiras.


Referências Bibliográficas

  • BEN ZVI, Ehud. Jonah. In: The Jewish Study Bible. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2014.
  • BRUEGGEMANN, Walter. Introdução ao Antigo Testamento: O Canon Cristão. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2013.
  • COOGAN, Michael D. (ed.). The New Oxford Annotated Bible with the Apocrypha. 5th ed. Oxford: Oxford University Press, 2018.
  • FISCH, Harold. Jonah: A Parable of the Man Who Hated God’s Love. In: The Art of Biblical Narrative. New York: Basic Books, 1981.
  • LIMA, Francisco O. de. Jonas: O Profeta da Misericórdia. São Paulo: Paulus, 2002.
  • SOGGIN, J. Alberto. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1981.
  • TRIBLE, Phyllis. Rhetorical Criticism: Context, Method, and the Book of Jonah. Minneapolis: Fortress Press, 1994.

Os Dois Relatos do Dilúvio na Bíblia Hebraica: Tensão, Redação e Teologia em Conflito - Giovane Vargas

Artigo de Giovane Vargas

O relato do dilúvio em Gênesis 6.5 a 9.17 é, à primeira vista, uma narrativa épica sobre juízo divino, corrupção humana e a salvação de um justo por meio de uma arca. Contudo, uma leitura atenta revela que esse trecho da Bíblia Hebraica é muito mais do que uma história antiga de catástrofe. Ele é também um documento literário composto a partir de múltiplas camadas, testemunho de uma tradição que foi escrita, reescrita e editada ao longo de séculos. Segundo a hipótese documental — amplamente aceita na crítica bíblica — esse trecho incorpora dois relatos distintos: o da fonte Javista (J) e o da fonte Sacerdotal (P).

A tradição Javista, mais antiga, provavelmente datada do século X a.C., apresenta um Deus chamado YHWH (Senhor), que se envolve profundamente com a criação. Essa fonte constrói uma narrativa mais fluida e emocional: Deus se arrepende da criação humana diante da maldade que se espalhou sobre a terra e decide apagá-la com um dilúvio. Noé é escolhido por sua retidão, e recebe ordens para levar sete pares de animais puros e apenas um par dos impuros. O dilúvio dura quarenta dias e quarenta noites, e termina com Noé oferecendo um sacrifício que agrada a Deus, levando-o a prometer que nunca mais amaldiçoará a Terra por causa do ser humano.

Em contraste, a tradição Sacerdotal, redigida durante o exílio babilônico (século VI a.C.), apresenta um Deus mais transcendente, chamado Elohim, que age de forma ordenada, meticulosa e sem arrependimentos. O foco aqui não está na emoção divina, mas na organização ritual e cósmica: a arca é descrita com medidas precisas, os animais entram em pares, sem distinções entre puros e impuros, e o dilúvio dura 150 dias. Após o evento, Deus estabelece uma aliança cósmica com toda a criação, selada com o arco-íris como sinal.

As duas versões foram entrelaçadas por redatores posteriores. Essa edição gerou uma narrativa híbrida, repleta de repetições, duplicações e contradições internas. Por exemplo, há ordens conflitantes sobre o número de animais, diferentes nomes para Deus, duas descrições da duração do dilúvio, e dois desfechos distintos: um centrado no sacrifício (J) e outro na aliança (P).

Quadro Comparativo dos Relatos do Dilúvio nas Fontes Javista (J) e Sacerdotal (P) com Referência de Capítulos e Versículos

Aspecto

Fonte Javista (J)

Fonte Sacerdotal (P)

Nome de Deus

YHWH (Senhor) — Gênesis 6:5, 7:1, 7:17, 8:20

Elohim (Deus) — Gênesis 6:14, 7:3, 7:11, 8:18

Motivação para o dilúvio

Deus se arrepende da corrupção da humanidade — Gênesis 6:5-7, 8:21

Decisão ordenada sem arrependimento — Gênesis 6:13-14

Número de animais na arca

Sete pares de animais puros, um par dos impuros — Gênesis 7:2-3

Um par de cada animal, sem distinção — Gênesis 6:19-20

Duração do dilúvio

40 dias e 40 noites — Gênesis 7:12, 8:6-7

150 dias — Gênesis 7:24, 8:3

Descrição da arca

Poucos detalhes — Gênesis 6:14-16

Medidas exatas e detalhadas — Gênesis 6:14-16

Fim do dilúvio

Noé oferece sacrifício — Gênesis 8:20-21

Deus estabelece aliança com arco-íris — Gênesis 9:8-17

Ênfase teológica

Relação emocional e direta de Deus com a humanidade

Ordem, ritual e aliança universal

Tonalidade narrativa

Narrativa fluida e antropomórfica

Estilo formal e repetitivo


Esses elementos não são simples “curiosidades” textuais; são sinais profundos de que o texto bíblico é fruto de um processo de disputa, negociação e adaptação. O dilúvio, que parece uma punição definitiva e purificadora, se transforma, na análise literária, em um espelho das tensões internas da formação bíblica.

Nesse sentido, o relato do dilúvio não deve ser lido apenas como um episódio mítico de destruição e recomeço. Ele é também o rastro de uma disputa silenciosa: entre diferentes concepções de Deus, diferentes formas de lidar com o sofrimento humano e distintas estratégias de poder e autoridade religiosa. Sua composição revela que a Bíblia não é um único discurso, mas um campo de batalha literário onde vozes concorrentes disputam espaço, sentido e legitimidade.


Fontes recomendadas para pesquisa e aprofundamento:

  • Friedman, Richard Elliott. Who Wrote the Bible? HarperOne, 1987.
  • Wellhausen, Julius. Prolegomena to the History of Israel. 1883.
  • Gunkel, Hermann. Genesis: Translated and Explained. 1901.
  • Carr, David M. The Formation of the Hebrew Bible: A New Reconstruction. Oxford University Press, 2011.
  • Römer, Thomas. The Invention of God. Harvard University Press, 2015.
  • Sparks, Kenton L. Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible. Hendrickson Publishers, 2005.

27/07/2022

Do pó viemos e ao pó voltaremos: como partes da bíblia hebraica não contemplam a vida após a morte

Ultimamente, tenho trocado as leituras teológicas — exegéticas, para ser um pouco mais preciso para os chatinhos — por outros tipos de não ficção, com breves e tímidas incursões no mundo da literatura, aquela vasta biblioteca que não formaria nenhum burocrata da interpretação bíblica ou de qualquer outra área técnica fatiada da realidade do mundo. Uma dessas novas leituras tem sido sobre alimentação e a história dos alimentos, coisas como de onde vem aquilo que comemos, por que chegou da forma que chegou e qual foi o processo histórico que desencadeou na indústria alimentar de hoje. Acontece que o mundo ocidental foi erguido sobre uma fundação bíblica que não nos larga de jeito nenhum, e mesmo tentando ficar longe — pelo menos por um tempinho — das leituras sobre a bíblia, o assunto me persegue até em parágrafos que falam sobre o processo bioquímico que acontece no solo para fazer com que o crescimento de uma planta se torne algo viável. Eis o trecho:

O húmus é o que, numa determinada quantidade de solo, lhe dá a tonalidade escura e o cheiro que lhe são característicos. É difícil dizer o que o húmus é exatamente, já que é muitas coisas. O húmus é o que resta de matéria orgânica depois de ter sido quebrada por bilhões de organismos grandes e pequenos que habitam qualquer quantidade mínima de terra – as bactérias, bacteriófagos, fungos e vermes responsáveis pela sua decomposição. (O autor do salmo que descreveu a vida como a passagem “do pó ao pó” teria sido mais preciso se tivesse dito “do húmus ao húmus”). (Michael Pollan, O Dilema do Onívoro, p. 206).

A citação bíblica me trouxe à tona um assunto sobre o qual eu já havia ensaiado escrever, mas que, por um motivo preguiçoso qualquer, acabei jogando debaixo do tapete mental para onde vão todas as infinitas inspirações que nos surgem durante os espasmos de criatividade noturna: a ideia de que, para algumas tradições da bíblia hebraica, a vida após a morte nunca existiu, expressada de maneira gritante na frase “do pó viestes e ao pó voltarás”.

A ideia do homem sendo criado do barro/argila (ou da terra/pó) não é originalmente judaica. Outras tradições culturais mais antigas do Oriente Próximo, da Babilônia e até da Grécia também imaginavam a criação do ser humano através da terra. O deus egípcio Chnum era ilustrado formando o homem no disco de um oleiro; na cultura babilônica, o homem fora formado de uma mistura de terra com o sangue do deus Marduk. Essa ideia pervade todo o Antigo Testamento, e é encontrada em várias passagens. Uma delas, Gênesis 2:7, demonstra a crença judaica acerca da composição física do homem:

Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.

Se o leitor se despir de todo o seu conhecimento científico que vem sendo desenvolvido pela humanidade nos últimos 300 anos, esquecendo tudo o que sabe (ou acredita) sobre o que constitui o corpo humano, a sua origem e destino, não será difícil imaginar como os povos antigos chegaram à ideia de que o homem veio da terra. Coloque-se no lugar de uma pessoa que viveu há 6 mil anos. Como ela imaginaria de onde o corpo humano veio? A intuição levaria a um caminho óbvio, simplesmente fruto da observação: se, quando morre, o corpo do ser humano se torna pó, desaparece, se dissolve, é engolido pela terra, ele só pode ter vindo do mesmo lugar. Lembre-se de que estamos falando de um conhecimento humano antigo, que não tinha nenhuma ideia do que seriam células, bactérias, ou qualquer coisa que só pode ser percebida com a ajuda de um microscópio. O conhecimento era observacional, resultado de dedução intuitiva do que acontece no mundo.

Para os autores dessa tradição que pervade o Antigo Testamento, o ser humano é composto de um corpo físico que foi feito com terra (porque volta a ser terra quando morre) e algo que animou, fez viver, deu vida a esse corpo que, sem isso, seria apenas barro: um sopro vindo de Deus. Tendo constatado de onde vem a parte física do homem, a tradição volta-se para explicar o que torna o homem vivo. O sopro de Deus é o que vivifica o corpo de barro, quase como a energia elétrica foi usada para fazer o Frankenstein de Mary Shelley vir à vida — às vezes, as minhas aventuras pelo mundo da literatura de ficção dão as caras timidamente.

Nas línguas em que a bíblia foi escrita, as palavras traduzidas para sopro, vento, ar, respiração, alma e espírito se confundem, são todas iguais ou muito parecidas, o que deixa transparecer que, na mentalidade antiga, tudo isso era a mesma coisa, era algo muito parecido ou tinha uma origem comum — e também deixa claro que a origem etimológica dessas palavras nos dá uma pista de que, muito antigamente, significavam a mesma coisa. Aqui, mais uma vez, o conhecimento dedutivo observacional chegou a conclusões óbvias: quando alguém morre, o que se observa é que o corpo deixa de respirar. Não é difícil imaginarmos que a mentalidade antiga, tendo constatado esse fato, pensaria em retrospectiva que a respiração é algo material que foi colocada dentro do corpo de barro e sai dele quando ele morre. Se sai dele, é porque foi colocada lá, e só poderia ter sido colocada por Deus quando este criou o ser humano. Sem a respiração, sem a vida, sem o sopro divino que o vivifica, o corpo volta a sua origem e o homem deixa de existir. Essa ideia também pervade várias passagens do Antigo Testamento.

Como as águas do lago se evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono. (Jó 14:11-12)

Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação. Sai-lhes o espírito [respiração, fôlego], e eles tornam ao pó; nesse mesmo dia, perecem todos os seus desígnios. (Salmos 146:3-4)

Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. (Eclesiastes 3:19-20)

Antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito [respiração, fôlego] volte a Deus, que o deu. (Eclesiastes 12:6,7)

Sou contado com os que baixam à cova; sou como um homem sem força, atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras; são desamparados de tuas mãos. (Salmos 88:4-5)

Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar? Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos? Acaso, nas trevas se manifestam as tuas maravilhas? E a tua justiça, na terra do esquecimento? (Salmos 88:10-12)

Se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito [espírito, sopro, vento], eles são criados, e, assim, renovas a face da terra. (Salmos 104:29-30)

Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens. (Salmos 90:3)

Não fossem os séculos de teologia, reinterpretação, apropriação e má exegese cristã — para não mencionar os rabinos, que, apesar de um pouco melhores, sempre tiveram seus preconceitos interpretativos — impostas sobre a bíblia de forma até apologética, textos como o de Gênesis 3:19 seriam lidos direta e claramente pelo que significam numa primeira impressão: o autor está dizendo que o homem volta de onde veio e deixa de existir.

No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.

Para o escritor dessa tradição registrada em Gênesis, quando morre, o corpo humano retorna à terra de onde veio e a sua respiração volta para Deus. Posteriormente, com o desenvolvimento da teologia, do pensamento do que acontece com o homem depois que ele morre, imaginou-se que essa respiração era algo a mais, e a ideia da alma (ou espírito, palavras que se confundem nas línguas originais, lembra?) como aquilo que permanece da consciência humana após a morte surgiu no imaginário teológico judaico, sendo herdada — e muito mais desenvolvida — pelo cristianismo.

Apesar de não conhecerem o húmus através uma perspectiva científica, sabendo dos processos químicos e biológicos que acontecem com a matéria orgânica que cai na terra — incluindo um cadáver —, a intuição dos autores da tradição que analisamos aqui não os traiu completamente. Embora a linguagem mitológica usada por eles não estivesse imaginando tanto um fenômeno químico quanto mágico — lembre-se de que a ideia de átomos e elementos da tabela periódica jamais passou pelo imaginário das sociedades pré-científicas —, no fim das contas, o mesmo carbono que compõe o corpo humano é aquele que está em toda a matéria orgânica deste planeta, incluindo a terra: como disse Carl Sagan — o Carlos que não era tão idiota quanto o Marques (quem lê entenda) —, tudo é poeira de estrelas. Se não fomos formados da terra num passe de mágica, como acreditavam os autores das tradições da bíblia hebraica, com certeza nos transformaremos nela se o curso da natureza não for impedido de alguma forma. Talvez devêssemos atualizar a linguagem bíblica — como tantos fazem sem nem perceber — e dizer “das estrelas ao húmus.”

17/01/2022

Criação e Caos: por que a mentalidade dos escritores bíblicos é diferente da nossa

Ao ler os livros que compõem a Bíblia, por vezes nos deparamos com textos que soam muito estranhos, mas, ou pelo ímpeto de terminar logo a leitura, ou pela falta de curiosidade e vontade de realmente entender o que estamos lendo, deixamos que essas passagens bizarras passem sem maiores indagações. Um desses textos que vêm me deixando perplexo desde que comecei a me interessar pela Bíblia quando tinha os meus quatorze ou quinze anos de idade é Isaías 27:1:

"Naquele dia o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o Leviatã, a serpente veloz, e o Leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão, que está no mar."

Num primeiro momento, esse versículo parece vindo de um conto de fadas, falando de dragões e criaturas fantasiosas que vivem apenas na imaginação de crianças ou em filmes da Disney. Lembro-me de que minha primeira reação ao me deparar com esse versículo foi de completa ininteligência: eu não fazia ideia de quem poderia ser esse dragão e sobre qual momento da história o profeta estaria tratando. Depois de um tempo, algumas traduções diferentes me foram apresentadas, e talvez algumas soluções mais seguras para a inerrância do texto bíblico surgiram: na verdade, não se tratava de um dragão, mas apenas de uma serpente, quem sabe algo mais palatável para uma cabeça que acreditava não fazer sentido um escritor inspirado por Deus falar sobre criaturas que não existem. Contudo, dragão ou serpente, independente da tradução que se escolha para uma palavra que, para os autores originais, significava algo como um monstro sem igual, tratava-se de uma criatura mitológica que se chamava Leviatã e aparecia em vários outros relatos de povos mais antigos do que os hebreus que escreveram a Bíblia. 

Com o tempo, e por encontrar muitos outros textos semelhantes, minha percepção sobre a Bíblia foi mudando, e cheguei à conclusão de que é impossível entendê-la se eu não conhecer os mitos antigos que permeavam a imaginação dos autores e a forma com que aquelas pessoas do passado entendiam o mundo ao seu redor. Hoje, me parece mais plausível entender o texto por aquilo que ele diz do que buscar uma solução que tenta atualizar a mente do escritor e fazê-lo pensar como um ser humano da atualidade que entende o mundo com uma forma de pensar científica pós-iluminista. Sendo assim, me parece mais provável que esse versículo signifique o que está escrito: Deus matará um dragão "naquele dia", uma expressão usada para denotar o fim dos tempos.

Existia um mito antigo que dizia que o mundo foi criado a partir da destruição de dois monstros que representavam o caos: Leviatã e Beemote. Leviatã era uma serpente (ou dragão) que vivia no mar, Beemote vivia no deserto. O mundo surgiu quando esses dois monstros foram domados e, do caos e desordem, surgiram a ordem e a fertilidade. Essa tradição está em virtualmente todos os povos antigos do Oriente Próximo. Os hebreus herdaram essas tradições e as adaptaram para a sua religião. Para eles, o deus chamado Javé havia destruído o caos desses dois quando colocou ordem no mundo e fez as separações de dia e noite, terra e água, etc. Contudo, esse mito também foi adaptado para representar as constantes reviravoltas que a história tem: Beemote e Leviatã sempre tentavam se soltar, e, por isso, existem guerras, caos e destruição na sociedade. O mundo nunca está em perfeita ordem. Então esse mito da criação foi transformado em mito do fim dos tempos: chegará um dia em que Deus finalmente destruirá esses monstros do caos e a ordem eterna reinará. É disso que Isaías está falando: no final dos tempos, Deus finalmente destruirá o Leviatã e o mundo será perfeito. O escritor do Apocalipse de João faz uso dessa mesma tradição:

"E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e os seus anjos; mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele." (12:7-9)

Aqui, a tradição está ainda mais desenvolvida, onde Leviatã é igualado a Satanás e a ideia do messias como Jesus e a segunda volta está inserida nessa tradição.

Isso me faz pensar como é impossível acreditar na mesma coisa que esses escritores acreditavam. Eles tinham uma mentalidade mítica que já não se encaixa no homem da atualidade. Por isso, as pessoas insistem em reinterpretar a Bíblia, pois ela precisa fazer sentido para a mentalidade científica moderna. Para quem ainda lê a Bíblia de maneira acrítica, é impossível que um autor inspirado por Deus tenha falado algo errado sobre o cosmos. No entanto, se fosse permitido que falassem por si mesmos, veríamos que os autores bíblicos são tão estranhos a nós quanto qualquer história fantasiosa sobre os deuses gregos e romanos.

03/11/2021

Book Review #5 - A Vida de Jesus Examinada Criticamente (David Friedrich Strauss)

A Vida de Jesus Examinada Criticamente, de David Friedrich Strauss, é um daqueles livros que quase ninguém conhece, mas que impactou o ocidente de maneira irreversível. Certa vez, um comentarista afirmou que este foi "o livro mais pestilento já vomitado pelas mandíbulas do inferno". Após Strauss, os milagres como fatos históricos foram retirados de vez da Busca.

Strauss foi o primeiro autor a trazer a ideia do mito para explicar os Evangelhos. Em resposta aos racionalistas (os quais afirmavam que os episódios da vida de Jesus poderiam ser explicados sem recorrer aos milagres) e aos sobrenaturalistas (que acreditavam na literalidade dos acontecimentos narrados pelos evangelistas), o autor afirmou que, mais do que fatos reais ou coisas que podem ser entendidas de maneira racional se a capa sobrenatural for retirada, os episódios milagrosos foram mitos criados pela mentalidade antiga e aplicados à vida de Jesus. Para Strauss, os primeiros cristãos desenvolveram essas histórias milagrosas como uma apologia a sua visão do que o messias deveria ser idealmente. Dessa forma, por exemplo, o autor do Evangelho Segundo Mateus cunhou a sua narrativa do nascimento de Jesus tomando como base as histórias de Moisés e Israel que aparecem no Antigo Testamento: assim como Moisés foi perseguido ainda quando criança por faraó, Jesus também foi perseguido por Herodes; assim como o povo de Israel teve seu êxodo do Egito, Jesus também saiu daquela nação, etc.

O livro de Strauss causou indignação e alvoroço na Europa de 1835. Por causa dele, o autor foi impedido de conseguir emprego como professor e recebeu duras críticas do mundo acadêmico da época. Ainda assim, Das Leben Jesu (no original em alemão) iniciou uma nova época nos estudos críticos sobre a vida de Jesus. Como afirmou James Dunn ao comentar este livro, aqueles que estão do lado da fé no debate da busca pelo Jesus histórico deveriam ler Strauss para experimentar um pouco do choque que esse texto causou quando foi publicado pela primeira vez.

01/11/2021

As narrativas sobre o nascimento de Jesus: verdades históricas ou deliberações teológicas posteriores?

Dois dos quatro Evangelhos do Novo Testamento, Mateus e Lucas, apresentam uma narrativa do nascimento de Jesus de Nazaré. Apesar de serem muito diferentes entre si -- por exemplo, enquanto Lucas pressupõe que a cidade natal da família de Jesus é Nazaré, Mateus afirma que eles se mudaram para lá por medo de serem descobertos pelo governante da Judéia; embora Mateus narre uma perseguição por Herodes, Lucas nada sabe a respeito desse detalhe importante; conquanto Lucas não saiba nada sobre uma estrela guiando magos até o local do nascimento de Jesus, Mateus também não parece fazer ideia de que uma corte celestial tenha celebrado o nascimento da criança, etc. --, no imaginário popular, por influências variadas, não menos devido ao cinema e teatro, e especialmente à apologética evangélica da atualidade, essas histórias formam um todo completo e harmonizado. Entretanto, o que mais me chama a atenção não é o fato de esses dois Evangelhos possuírem um relato sobre o nascimento do Messias, mas que os outros dois, Marcos e João, omitem as histórias completamente. 

Seja lá o que o autor de Marcos esteja tentando falar sobre Jesus de Nazaré, uma coisa é muito clara: para aquele autor, Jesus foi uma pessoa especial: ele curou doentes, expulsou espíritos malignos, andou sobre as águas, controlou tempestades, multiplicou comida, previu sua própria morte e voltou dos mortos. Eu não sei quanto a você, leitor, mas, se estivesse escrevendo uma história sobre a vida de alguém assim, eu jamais deixaria de fora um relato sobre o nascimento dele por meio de uma virgem! Acredito que um relato dessa natureza, além de ser um acréscimo fantástico para a minha narrativa, seria uma abertura perfeita para o meu livro sobre a vida de alguém como Jesus.

Em se tratando de João, talvez esse não teria sido o ato ideal para abrir a sua narrativa sobre quem era Jesus de Nazaré, afinal, esse evangelista começa a sua história com o tempo antes do tempo: para ele, Jesus é a expressão da mente e das ações de Deus no mundo tornada em uma pessoa de carne e osso; a Sabedoria de Deus encarnada, aquela que estava presente com Deus na criação; o Logos divino. Nada mais justo, portanto, do que começar a sua história da vida de Jesus com essa assombrosa afirmação. Contudo, se eu fosse esse autor, que fala da preexistência de Jesus e de sua clara divindade, não deixaria faltar esse pequeno detalhe do nascimento virginal e as circunstâncias especiais nas quais a anunciação da gravidez e o parto aconteceram.

A esta altura, o leitor já deve ter percebido qual é o meu ponto com os parágrafos anteriores: se alguém fosse escrever sobre a vida de uma pessoa que fez milagres, foi morto, mas ressuscitou, e soubesse que ele havia, também, nascido de uma virgem, acharia importante relatar essa informação para o seu público. Veja bem, eu não estou dizendo que tudo o que Jesus teria feito em sua vida necessariamente teria sido escrito. Não o foi. Isso é inegável. Estou dizendo que o nascimento se destaca como algo ainda mais relevante do que um milagre de cura, por exemplo, porque ratificaria a importância daquela pessoa desde o seu nascimento, ou mesmo antes dele, quando ainda estava no ventre de sua mãe.

Ao lidar com o trabalho de determinar o que aconteceu no passado, é impossível falar sobre certezas e verdades absolutas. Tudo se trata de probabilidade: o que é mais possível de ter acontecido no passado? Para analisar isso, precisamos pensar da seguinte forma: o que acontece hoje em dia é o que acontecia no passado, aquilo que os historiadores chamam de analogia natural. Raciocinando dessa maneira, e tentando determinar o que aconteceu há dois mil anos, quando os autores dessas histórias da vida de Jesus resolveram escrever sobre ele, devemos nos perguntar qual é o cenário mais plausível de ter ocorrido com os relatos do nascimento: se, hoje, alguém provavelmente não deixaria essas histórias de lado ao escrever sobre uma pessoa especial, é mais provável que, se as conhecesse, um autor, no passado, também as teria escrito. Dessa forma, ficamos com a seguinte questão e suas possíveis respostas: por que Marcos não registrou a(s) história(s) do nascimento? (1) porque não a conhecia; (2) porque não a achava importante; ou (3) porque ele esperava que outro autor, quem sabe inspirado por Deus, escreveria a história no seu lugar, tornando o seu Evangelho obsoleto e incompleto. Eu não sei quanto a você, leitor, mas me parece que a resposta mais plausível seja a primeira. 

Se minhas conclusões estiverem corretas (que Marcos e João não conheciam a história do nascimento virginal e suas circunstâncias especiais), nos deparamos com outro problema:⁩ como é possível eles não conhecerem essa história, se tiveram contato direto com os primeiros discípulos e, possivelmente, a própria Maria? A tradição cristã nos afirma que os autores dos Evangelhos que carregam seus nomes eram realmente tais pessoas: Mateus, o discípulo de Jesus, Marcos e Lucas, os companheiros de Paulo, e João, outro discípulo direto do mestre. Contudo -- e, novamente, racionalizando através da analogia natural, buscando aquilo que seria mais plausível como explicação para nossos questinamentos --, me parece estranho pensar que tais autores seriam realmente quem a tradição nos diz que foram, pois, se o fossem, teriam conhecido os parentes de Jesus e, por consequência, as circunstâncias especiais sobre o seu nascimento. Se os autores são quem os títulos dos Evangelhos dizem que são, e se Marcos e João, de fato, não conheciam essas histórias sobre o nascimento de Jesus, a única alternativa que nos resta é que essas histórias teriam ficado escondidas (com Maria e José?) até que apenas Mateus e Lucas as descobrissem, e isso de maneira bem estranha, pois, como vimos, as narrativas de Mateus e Lucas não são as mesmas. Portanto, me parece mais plausível concluir que os autores dos evangelhos não podem ser quem a tradição diz que eles são. Se o fossem, é mais provável que eles teriam conhecido uma única história advinda diretamente de Maria e dos parentes próximos de Jesus. Eles são provavelmente helenistas judeus (se todos judeus, eu não sei) e prosélitos gregos de uma geração posterior a dos primeiros discípulos.

Novamente, apelo à probabilidade: se todos conhecessem essas histórias como sendo algo vindo de testemunhas oculares (Maria principalmente), é provável que Marcos as tivesse colocado em sua narrativa sobre a vida de Jesus e que todas elas seriam iguais ou pelo menos parecidas. Dessa forma, nos resta a pergunta: de onde as histórias sobre o nascimento de Jesus vieram? Mais um cenário nos é apresentado: se Marcos e João não relataram o nascimento porque não conheciam essas histórias, ou elas vieram a surgir ex post facto (são histórias desenvolvidas posteriormente), ou ficaram ocultas até que Mateus tenha descoberto uma e Lucas a outra.

Levando-se em conta que Marcos e João não conheciam a história e que Mateus e Lucas conheciam duas diferentes, me parece mais provável que elas tenham surgido de um desejo de explicar de onde Jesus veio e como ele era especial. Ou seja, com a experiência da Páscoa, de ter visto Jesus após a morte dele, e com o desenvolvimento da cristologia -- com o passar dos anos, as explicações sobre quem era Jesus e o quanto ele era especial foram crescendo --, histórias sobre o seu nascimento ter sido especial surgiram no meio das comunidades primitivas, mas nem todas elas as conheciam e elas não vieram de Maria: olhando para o Antigo Testamento buscando explicações para a vida de Jesus, os evangelistas se inspiraram nas histórias dos antigos heróis judeus para escrever sobre como teria sido o nascimento dele. Dessa forma, assim como Moisés foi perseguido por faraó, assim também Jesus foi perseguido por Herodes, por exemplo; tendo em vista que Isaías falava de uma virgem dando a luz, Maria, mãe de Jesus, só poderia ter sido uma virgem ao receber o Messias em seu ventre, etc. -- parece-me mais provável que Isaías estivesse falando de algo no seu contexto histórico, não de Jesus, que viria a nascer muitos séculos depois. O mais razoável é imaginar que os discípulos de Jesus interpretaram Isaías com o pressuposto de que o Nazareno era o Messias e, portanto, deveria cumprir as profecias do que o contrário.

Apesar de essas conclusões soarem, às mentes evangélicas atuais -- que costumam misturar história com teologia, e que, inevitavelmente influenciadas pelo pensamento iluminista, buscam provar o cristianismo através de verdades científicas -- como um ataque à fé e à narrativa bíblica, elas exaltam a real intenção dos autores bíblicos e nos trazem à luz a forma com que esses documentos foram produzidos. Como disse o grande Raymond E. Brown, "enquanto as histórias do ministério dependem, pelo menos em parte, das tradições que vieram dos discípulos de Jesus que o acompanharam durante aquele ministério, não temos informações confiáveis sobre a fonte do material da infância. Isso não significa que as narrativas da infância não tenham valor histórico, mas significa que não se pode fazer suposições sobre sua historicidade com base em sua presença nos Evangelhos."

19/10/2021

Book Review #4 - The Historical Jesus, John Dominic Crossan

Minha relação com este livro é de amor e ódio: amor porque acho o autor brilhante em suas colocações, análises e clareza metodológica; ódio porque, apesar de tudo isso, não consigo aceitar suas conclusões.

Partindo de três camadas interdisciplinares (antropologia intercultural, história romana e judaica e arqueologia), Crossan busca separar textos de contextos para reconstruir (uma palavra-chave para o autor), não buscar, o Jesus da história.

Após o uso das três camadas (antropologia, fontes históricas da época e arqueologia) de forma cruzada, o Jesus de Crossan surge reconstruído como um Camponês Cínico Judeu, alguém que, em suas atitudes e estilo de vida, fazia oposição às elites da época: "O Jesus histórico era, então, um camponês cínico judeu. Sua aldeia camponesa ficava perto o suficiente de uma cidade greco-romana como Séforis, de modo que a visão e o conhecimento do cinismo não são inexplicáveis ​​nem improváveis. Mas seu trabalho estava entre as fazendas e aldeias da Baixa Galiléia. Sua estratégia, implícita para si mesmo e explicita para seus seguidores, era a combinação de cura gratuita e as refeições compartilhadas, um igualitarismo religioso e econômico que negava por igual e ao mesmo tempo as normalidades hierárquicas e patronais da religião judaica e do poder romano."

O Jesus reconstruído por Crossan, dessa forma, está longe de ser um profeta apocaliptico judaico como João Batista; ele não está dentro do movimento apocaliptico, esperando a intervenção imediata de Deus que traria o reino escatológico do fim dos tempos, como os primeiros cristãos e Paulo;  o Jesus de Crossan está mais próximo de um hippie antigo que pregava a paz, o igualitarianismo e a relação direta com Deus, fazendo crítica aos poderosos.

Por alguns motivos, eu não consigo concordar com Crossan (embora ache sua reconstrução digna de todo respeito): primeiro, porque, mesmo sendo próxima de cidades aparentemente gregas, Nazaré, como qualquer vila do interior hoje em dia, não seria culturalmente influenciada por um movimento estritamente estrangeiro apenas pela proximidade: o fator cultural judaico certamente falaria muito mais alto na matrix (para usar uma palavra preferida de Crossan) de Jesus de Nazaré -- não me parece fazer muito sentido, usando a analogia natural, pensar que Jesus estaria tão longe do imaginário de seus correligionários; depois, porque reconstruir o que Jesus pretendia através da veracidade histórica de algumas de suas falas pode ser perigoso: você corre o risco de favorecer apenas os logions que lhe parecem coniventes com aquilo que já pressupõe a respeito de Jesus -- esse, a meu ver, é um equívoco primordial do Jesus Seminar.

Apesar de ser uma reconstrução brilhante, o Jesus Histórico de Crossan me parece muito mais com o mestre ideal desse ex-padre católico que recebeu o nome Dominic no monastério do que com um judeu que realisticamente teria vivido há dois mil anos atrás no interior da Galiléia e que foi crucificado com a acusação de pretenso rei dos judeus.

11/10/2021

Book Review #3 - A Religião do Bolsonarismo, Yago Martins

O último livreto de Yago Martins, A Religião do Bolsonarismo, não é uma análise sociológica do fenômeno Bolsonaro no Brasil; não se trata de uma pesquisa acadêmica sobre o que está acontecendo na mentalidade brasileira; não é uma avaliação de um cientista sobre a dinâmica das ideias políticas em nosso país. Trata-se, apenas, da opinião de um pastor evangélico sobre algo que ele não entende.

O que o autor faz em sua nova publicação é imaginar, desde uma perspectiva teológica pronta que ele aprendeu com o fundamentalismo evangélico americano, que os apoiadores mais entusiasmados do presidente trocaram o seu deus (do Yago) por uma figura política. Ao acreditar em sua própria imaginação, o pastor, que tem menos de trinta anos de idade, tece uma apologia à sua religião, dizendo de maneira arrogante, como sempre o faz, que não há outro deus além do seu e acusando de idolatria brasileiros sofridos e indignados com o terrível resultado do trabalho de governos anteriores.

O brasileiro, muito religioso e cristão, mais do que Yago Martins jamais seria, não trocou o seu deus por uma figura política. O que ele fez foi depositar a esperança de uma vida menos difícil no trabalho de alguém que falou o que ele queria ouvir e refletiu seus anseios e desejos em sua proposta política; o que o brasileiro fez foi, no máximo, enxergar em Bolsonaro um representante de deus para o Brasil. E isso, mesmo dentro do sisteminha teológico evangelicalista do Yago, jamais será idolatria. Se o fosse, ele teria que chamar todos os primeiros cristãos de idólatras também. Isso, porém, o pastorzinho jamais faria, pois uma mente presa a ideologias religiosas como a do autor dessa cartilha apologética nunca será capaz de entender que o cristianismo primitivo não tem nada a ver com o que ele imagina ser cristianismo. 

Apologetas como Yago Martins nunca poderão analisar a realidade ao seu redor sem fazer um discurso político-religioso disfarçado de tese acadêmica. A mistura do liberalismo econômico mal compreendido com o fundamentalismo religioso de um jovenzinho que tem os hormônios à flor da pele é desastrosa.

Book Review #2 - Pequenos comentários sobre alguns livros a respeito do Jesus histórico

Jesus and Judaism (E. P. Sanders)

E. P. Sanders está na minha lista top 3 de autores favoritos e eu acredito que ele seja o estudioso do Novo Testamento mais importante do século passado. Nesta obra, após demonstrar os problemas que existem em basear a análise histórica de Jesus nas suas falas, Sanders parte de dois fatos que são os mais seguros de determinar historicamente sobre o Nazareno: o incidente no templo e a morte por crucificação. Verificando que, para Jesus, a ação feita no templo significava um gesto profético que simbolizava a destruição final do local e que ele foi morto por representar uma ameaça à pax romana, o autor conclui que Jesus foi um profeta apocalíptico judeu que esperava uma intervenção final divina no curso normal da história humana.


The Historical Figure of Jesus (E. P. Sanders)

Diferente do seu livro acadêmico sobre Jesus e o Judaísmo, onde parte do incidente no templo para analisar quem era o Nazareno, nesta obra muito mais popular, Sanders oferece sua reconstrução do Jesus histórico para quem não entende nada do assunto. Com todo o plano de fundo contextual necessário, o autor mostra como Jesus foi um judeu que esperava uma intervenção imediata de Deus para mudar o rumo da história e de seu povo. Não é tão bom quanto o primeiro, mas, ainda assim, é um livro de E. P. Sanders e merece ser lido com toda a atenção, principalmente se você não está familiarizado com o tema.


Jesus of Nazareth: King of the Jews (Paula Fredriksen)

O que mais impressiona neste livro é a sagacidade histórica da autora: Paula sabe se portar com respeito e sinceridade diante de suas fontes. Para reconstruir o passado, você precisa se despir de tudo o que sabe em retrospecto e entrar no estado mental de ingenuidade sobre o futuro das pessoas cujas vidas você busca entender e descrever. E a autora faz isso com maestria. As cenas reconstruídas de episódios da vida de Jesus fazem você entrar no mundo dos antigos judeus do segundo templo. Fredriksen explica como o título 'Rei dos Judeus' se relaciona com a morte de Jesus dentro do contexto de domínio romano na Palestina do primeiro século; demonstra por que apenas Jesus foi morto, e não, junto com ele, seus seguidores, e como o seu movimento pôde continuar mesmo após a sua morte. De maneira muito popular, e até quase melhor do que Sanders faz em Historical Figure, a autora fornece todo o contexto histórico necessário para que o leitor entenda o que e como as coisas aconteceram com Jesus de Nazaré. Este livro me lembrou muito Jesus and Judaism, como se ele tivesse sido escrito para o público geral, não para acadêmicos. As conclusões de Fredriksen são praticamente as mesmas de Sanders.


Jesus of Nazareth: Millenarian Prophet (Dale C. Allison)

Allison segue a mesma linha de Sanders: para ele, Jesus foi um judeu apocalíptico que esperava o final dos tempos. O ponto forte desta obra é a maneira com que o autor explica a necessidade de uma fundamentação metodológica correta para se iniciar a análise histórica sobre Jesus de Nazaré. O epílogo deste livro é uma das coisas mais lindas e impactantes que já li sobre o Jesus histórico. Allison recebeu um lugar de direito na minha lista top 5 de autores preferidos sobre o tema.


Jesus (Marcus Borg)

Marcus Borg foi membro do Seminário de Jesus. Como tal, baseia sua análise histórica sobre Jesus primariamente nas falas, isto é, determina quais logions são possivelmente verdadeiros e reconstrói Jesus de Nazaré a partir disso. Eu não gosto dessa abordagem por vários motivos, mas
principalmente porque acho extremamente difícil verificar quais ditos de Jesus são ou não verdadeiros e o nível de alteração que cada um sofreu (a tendência é que os seus
pressupostos acabem pesando muito na escolha daquilo que realmente foi dito por Jesus). Mesmo assim, acho a leitura desta obra muito válida, especialmente pelo mar de informações sobre o tema trazidas pelo autor.


Jesus e as Testemunhas Oculares (Richard Bauckham)

Bauckham foi o primeiro autor não apologeta que li falando a respeito de Jesus. Lembro-me da sensação de estar finalmente entendendo melhor o que eram os evangelhos e de começar a compreender mais claramente quem foi Jesus. Nesta obra (que não me convenceu por completo), o autor defende a ideia de que os quatro evangelhos neotestamentários são baseados em relatos de testemunhas oculares. Minha crítica é a seguinte: é claro que qualquer tradição que exista sobre Jesus veio, em última instância, de uma testemunha ocular (obviamente, ninguém criou Jesus ex nihilo - pode chorar, miticista). Contudo, me parece ingenuidade quase apologética imaginar que tudo o que existe na tradição de Jesus tenha surgido de testemunhas oculares e não (também) de uma visão antiga sobre como o mundo funciona. Strauss precisa ser levado em consideração.