08/06/2020

A Tradição Oral dos Evangelhos (Parte 4) -- por James D. G. Dunn

Tenho me convencido cada vez mais de que o melhor ponto de partida para o estudo da maior parte da tradição sinótica é enxergá-la como as memórias sobre Jesus que as igrejas mais antigas tinham e que eram recontadas e reutilizadas por essas igrejas. A importância dos mestres e da tradição é muito bem atestada pelos documentos mais antigos do Novo Testamento (por exemplo: mestres -- At 13:1, 1Co 12:28, Gl 6:6; tradição -- 1Co 11:2, Cl 2:6, 1Ts 4:1, 2Ts 2:15 e 3:6). Os próprios evangelhos sinóticos são surpreendentemente semelhantes às biografías antigas (não às modernas); e a probabilidade a priori de que os primeiros grupos estimavam e recontavam entre si as memórias daquele que agora tinham como Senhor, isto é, as tradições que lhes deram motivos para sua existência distinta, deve ser considerada como algo forte. Essa perspectiva difere significativamente do modelo caracteristicamente literário, o qual exerceu demasiada influência na análise da história da tradição do material sinótico, e também difere da tarefa de análise como algo que busca traçar a descendência linear de uma tradição ao longo de camadas elaboradas de maneira sucessiva, com cada nova camada dependendo da camada anterior -- muito parecido com o que se faz na crítica textual ou ao se traçar a história das traduções da Bíblia. Esse modelo é inapropriado para ser aplicado em tradições orais, pois, numa tradição oral, lidanos com temas, fórmulas e material de núcleo que, frequentemente, permanecem constantes enquanto uma grande gama de variações são misturadas a esse material temático/central. O ponto é que uma variação não precisa necessariamente levar à outra; variações subsequentes podem derivar diretamente do tema central ou núcleo. Consequente, a análise da história da tradição que está buscando chegar no Jesus como ele era não precisa se consistir somente de uma reversão através de diferentes variações, mas essa análise pode se focar imediatamente no material que é mais constante, porque a probabilidade é que o material mais constante é o núcleo vivo das recordações mais antigas sobre Jesus, o qual manteve a vitalidade da tradição dentro de todas as suas formas variantes.

Em resumo, eu vejo os oradores/mestres/transmissores mais antigos dentro das igrejas cristãs mais como preservadores do que inovadores, como pessoas buscando transmitir, recontar, explicar, interpretar, elaborar, mas não buscando criar do zero. Eu creio que, através da tradição sinótica, temos, na maioria dos casos, acesso direto ao ensino e ministério de Jesus conforme relembrados desde o início do processo de transmissão (o qual frequentemente inicia antes da Páscoa), e, assim, também temos acesso suficientemente direto ao ministério e ensino de Jesus através dos olhos e ouvidos daqueles que andavam com ele.

Fonte: James D. G. Dunn, "Messianic Ideas and Their Influence on the Jesus of History", em The Messiah, ed. James H. Charlesworth, pp. 371-2.

05/06/2020

A inimizade entre o homem e a serpente

"Então, o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que toda besta e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás e pó comerás todos os dias da tua vida.
E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar." 
Gênesis 3:14-15 ARC.

"O significado geral da frase é claro: na guerra entre homens e serpentes, o primeiro esmagará a cabeça do inimigo, enquanto o último só pode ferir no calcanhar... A tentativa da serpente de estabelecer uma comunhão profana com a mulher é punida através de uma inimizade implacável e eterna entre elas." John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p. 79.

Nos capítulos iniciais de seu livro, o autor (editor?) de Gênesis está tentando responder como o homem chegou no estado em que está. Por que existe dor, sofrimento, morte? Por que a mulher sente dores de parto e precisa depender dos homens? Para responder isso, ele usa uma lenda antiga que afirmava que a desobediência/pecado/erro/mal surgiu ou foi instigado por uma serpente (literal), uma versão mais antiga da narrativa da queda que foi reeditada em Gênesis 3. Nessa versão mais antiga, a serpente possivelmente era retratada como um deus ou demônio. Isso explica por que, no texto editado de Gênesis 3, a serpente é apenas mais um dos animais criados por Deus, mas tem astúcia e pode falar; dito de outra forma: o autor de Gênesis reescreveu um mito antigo para explicar como o homem se meteu nessa enrascada na qual nos encontramos.

Dentro dessa lenda está a ideia de que a serpente e o homem se tornaram inimigos porque a serpente tentou manipular o homem contra Deus numa espécie de aliança profana. O criador descobriu tudo e, como punição, fez com que toda a espécie humana e todas as serpentes (a semente da mulher e a semente da serpente) se tornassem inimigos para sempre. Isso, para o autor, explica por que existe uma contenda entre os homens e as cobras, e também por que as cobras não andam eretas.

Por mais incrível que isso pareça para nós depois de tantos séculos de desenvolvimento teológico que nos fazem ler esse texto de forma tão diferente e até extremamente alegórica, o fato é que o autor usa uma mentalidade antiga onde as serpentes eram vistas com certa aura sobrenatural para explicar os problemas da humanidade: Deus sentenciou o homem ao sofrimento por causa de uma desobediência incitada por um animal; mas não foi apenas o homem que sofreu as consequências: as serpentes também foram condenadas a comer poeira e rastejar no chão, além de terem uma inimizade eterna com a humanidade; assim como todos os homens receberam as penas de Adão, assim também todas as serpentes receberam as penas da serpente do jardim, a serpente arquétipa.

Com o passar dos milênios, as teologias judaica e cristã colocaram muito mais coisas nesse texto, mas nada disso está lá; é apenas desenvolvimento teológico em cima da narrativa original.

04/06/2020

A evolução do pensamento religioso no Antigo Testamento

Para o pensamento religioso antigo, o mundo era cheio de divindades e outras entidades sobre-humanas. Esses seres invisíveis estavam trabalhando no mundo, moldando a história e influenciando a humanidade. Os poderes invisíveis controlavam a sorte dos indivíduos, às vezes para o benefício, e às vezes para o dano de uma pessoa. A ascensão e queda das nações estavam sujeitas a decisões e ações tomadas por deidades. Os autores das escrituras hebraicas compartilharam esse entendimento do mundo.

A literatura das escrituras hebraicas centra-se na atividade de Javé, o Deus de Israel, no mundo, especialmente no que se refere ao povo de Israel. Enquanto numerosas passagens reconhecem a existência de outros seres divinos, apenas um pequeno número de passagens sugere que uma divindade estrangeira ou um deus que não seja Javé possa abençoar ou criar problemas para Israel.

Embora outras divindades que não sejam o Deus de Israel estejam presentes nas escrituras hebraicas, mais tipicamente é dito que somente Javé pode controlar o destino de Israel. Frequentemente, no entanto, as escrituras hebraicas falam de vários seres sobre-humanos que servem como agentes divinos para cumprir os propósitos de Deus entre a humanidade. Enquanto alguns desses seres são agentes de Deus para abençoar os justos, alguns deles são agentes de Deus para julgar os iníquos. Esses agentes de julgamento incluem seres "angelicais" que levam a morte aos inimigos de Deus e "espíritos" que, de várias formas, afligem e enganam os iníquos. (Ryan E. Stokes, The Satan: How God’s Executioner Became the Enemy.)

Os estudiosos têm confirmado que a concepção de universo difundida entre os povos antigos afirmava que as várias forças naturais eram entendidas imbuídas de poder divino, como sendo, de certo modo, divindades. A terra era uma divindade, o céu era uma divindade, a água era uma divindade ou possuía poder divino. Em outras palavras, os deuses eram idênticos ou imanentes às forças da natureza. Havia, portanto, muitos deuses, e nenhum deus era todo poderoso.

Existem fortes evidências sugerirndo que a maioria dos israelitas antigos compartilhava essa visão de mundo. Eles participaram, nos estágios iniciais de sua história, da cultura religiosa e cultual mais ampla do antigo Oriente Próximo. Ao longo do tempo, no entanto, alguns israelitas antigos, não todos de uma só vez, nem de forma unânime, romperam com essa visão e articularam uma visão diferente segundo a qual existia apenas um poder divino, um deus. Mais importante que a singularidade desse deus era o fato de ele estar fora e acima da natureza. Esse deus não era identificado com a natureza; ele transcendia a natureza. Esse deus não era conhecido através da natureza ou dos fenômenos naturais; ele era conhecido através da história e de um relacionamento particular com a humanidade.

Essa idéia -- que parece a princípio parece simples e não tão revolucionária -- afetou todos os aspectos da cultura israelita, e de certa forma garantiu a sobrevivência dos antigos israelitas como uma entidade étnico-religiosa. A visão de um deus totalmente transcendente com controle absoluto sobre a história tornou possível para alguns israelitas interpretar até os eventos mais trágicos e catastróficos, como a destruição de sua capital e o exílio da nação, não como uma derrota do deus de Israel ou mesmo a rejeição deles por parte desse deus, mas como uma parte necessária do propósito ou plano maior da divindade para Israel. (Christine Hayes, Introduction to the Bible).

02/06/2020

A diferença entre história e teologia -- por Paula Fredriksen

O pensamento crítico pode transformar aquilo que é familiar em algo estranho; ou -- para reformular essa observação em uma linguagem talvez mais atraente -- ele atualiza o material, tornando o velho, o familiar, em novo. Esse exercício intelectual é o primeiro passo necessário para encontrar a figura histórica de Jesus. O medo da falsa familiaridade é o começo da sabedoria histórica. Insista para que Jesus faça sentido imediato para nós, e o passado se transforma em um espelho, uma superfície refletora que só mostra nós mesmos. Reconheça -- não tenha medo! -- a enorme distância entre nós e Jesus (como entre nós e qualquer pessoa antiga), e os textos podem se tornar janelas, não espelhos. Podemos examiná-los para vislumbrar, ainda que imperfeitamente, as realidades humanas que estão, de forma última, por trás deles.

Se assim o fizermos, o que veremos nesses textos a respeito de Jesus? O ser humano que até a forte metafísica da alta teologia antiga insistia que estava lá. A tentativa exige um certo tipo de coragem religiosa, porque significa separar a história da teologia e permitir que cada uma, com integridade, faça o seu respectivo trabalho. A história requer o reconhecimento da diferença e a prioridade do contexto antigo. Isso significa que, se começamos a procurar o Jesus de Nazaré histórico, a pessoa que procuramos fica de costas para nós, com o rosto voltado para os rostos de sua própria geração.

Se, como crentes modernos, ainda assim exigimos que Jesus seja moralmente inteligível e religiosamente relevante para nós, recai sobre nós o trabalho necessário de reinterpretação criativa. Esse projeto não é histórico (a construção crítica de uma figura antiga), mas teológico (a geração de significado contemporâneo dentro de determinadas comunidades religiosas). Inevitavelmente, múltiplas e conflitantes reivindicações teológicas surgirão, tão diversas quanto as diferentes comunidades que estão por trás delas. Nesse sentido, a tolerância cristã moderna da diferença doutrinária entre igrejas, seu princípio ecumênico, também é um bom modelo emocional e ético para tolerar a diferença histórica. Manter em vista as distinções entre pessoas antigas e modernas pode impedir o uso da pseudo-história como uma espécie de suporte empírico para os compromissos teológicos modernos (por exemplo, Jesus, o agitador antitemplo, endossando o anti-hierarquicalismo moderno). A história interpreta o passado. A teologia reinterpreta, não o passado, mas a tradição religiosa.

Mas a reinterpretação teológica não deve ser confundida com (nem apresentada como) descrição histórica. Considerar Jesus historicamente exige liberá-lo do serviço a nossas preocupações modernas ou identidade confessional; significa permitir-nos vê-lo em sua alteridade irredutível, como o Estranho da descrição poética que Schweitzer usou para finalizar seu livro sobre a busca do Jesus Histórico: "Ele chega até nós como um desconhecido, sem nome, como vindo de antigamente, à beira do lago." Quando renunciarmos a falsa familiaridade proferida a nós pelos anjos das trevas chamados relevância e anacronismo, poderemos ver Jesus, seus contemporâneos e talvez até nós mesmos mais claramente em nossa humanidade comum.

Fonte: Paula Fredriksen, Jesus: “Who Do You Say That I Am?”

29/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência (Parte 5) - A Geografia Cósmica da Bíblia

A geografia cósmica diz respeito a como as pessoas visualizam a forma e a estrutura do mundo ao seu redor. De acordo com nossa geografia cósmica moderna, vivemos em uma esfera de continentes cercados por oceanos. Acreditamos que essa esfera faz parte de um sistema solar de planetas que giram em torno do Sol, que é uma estrela. Nosso planeta também gira, e a lua gira em torno dele. Nosso sistema solar faz parte de uma galáxia, que juntamente com muitas outras galáxias compõem o universo. Os pontos de luz que percebemos como estrelas estão longe, e algumas são outras galáxias, enquanto outras são sóis. O fato de isso parecer tão elementar e básico mostra o quão profundamente essa geografia cósmica está enraizada em nossa compreensão de nós mesmos. Todo mundo tem uma geografia cósmica e sabe o como ela é -- ela é como uma segunda natureza para nós.

O ponto é que a geografia cósmica de uma cultura desempenha um papel significativo na formação da visão de mundo dessa cultura e oferece explicações para as coisas que observamos e experimentamos. Por exemplo, observe algumas das implicações da geografia cósmica que acabamos de descrever: ela sugere a nossa relativa insignificância na vastidão do universo; é a base para entender o o clima e o tempo; trabalha com a premissa de que a geografia cósmica é física e material;  opera com consistência e previsibilidade com base nas propriedades físicas e leis do movimento. Essa geografia cósmica foi deduzida ao longo de séculos através de um processo de observação, experimentação e dedução. Estamos totalmente convencidos de que ela é "verdade", embora pequenos ajustes ocorram o tempo todo. Ela é o resultado do que chamamos de "ciência".

No mundo antigo, as pessoas também tinham uma geografia cósmica que era tão intrínseca ao seu pensamento, tão fundamental com relação a sua visão de mundo, tão influente em todos os aspectos de suas vidas e tão verdadeira em suas mentes quanto a nossa é para nós hoje; e ela diferia da nossa em todos os pontos. Se aspiramos entender a cultura e a literatura do mundo antigo, seja cananeu, babilônico, egípcio ou israelita, é essencial que compreendamos a sua geografia cósmica. Apesar das variações de uma antiga cultura do Oriente Próximo para outra, existem certos elementos que caracterizam todas elas.

O que mantinha o céu suspenso acima da terra e retinha as águas celestiais? O que impedia o mar de invadir a terra? O que impedia a Terra de afundar nas águas cósmicas? Essas foram as perguntas que as pessoas fizeram no mundo antigo, e as respostas às quais chegaram estão incorporadas na sua geografia cósmica. Egípcios, mesopotâmicos, cananeus, hititas e israelitas pensavam no cosmos em termos de camadas: a terra estava no meio, com os céus acima e o mundo subterrâneo embaixo. Em geral, as pessoas acreditavam que havia um único continente em forma de disco. Este continente tinha montanhas altas nas bordas que sustentavam o céu, o qual eles pensavam ser sólido de alguma forma (ou ele era visto como uma tenda ou como uma cúpula mais substancial). Os paraíso onde a divindade habitava estava acima do céu, e o mundo subterrâneo estava abaixo da terra. Em algumas literaturas da Mesopotâmia, os céus eram entendidos como sendo constituídos por três discos sobrepostos com pavimentos de vários materiais. O que eles observaram os levou a concluir que o Sol e a Lua se moviam aproximadamente nas mesmas esferas e de maneiras semelhantes. O Sol se movia ao longo do céu durante o dia e se deslocava para o mundo subterrâneo durante a noite, onde atravessava por baixo da terra até o lugar onde nasceria no dia seguinte. As estrelas estavam afixadas no céu e se moviam através de suas estações ordenadas. Fluindo por todo esse cosmos estavam as águas cósmicas, que eram retidas pelo céu, e sobre as quais a terra flutuava, apesar de eles conceberem a terra como apoiada sobre pilares. A chuva originava-se das águas retidas pelo céu e caia na terra através de aberturas na cúpula. Visões semelhantes sobre a estrutura do cosmos eram comuns em todo o mundo antigo e persistiram na percepção popular até a Revolução Copernicana e o Iluminismo. Essas não eram realidades deduzidas matematicamente, mas eram a realidade de como as coisas pareciam para essas pessoas. A linguagem do Antigo Testamento reflete essa visão, e nenhum texto da Bíblia procura corrigi-la ou refutá-la.

Além dessa descrição física, é importante perceber que a geografia cósmica dessas pessoas era predominantemente metafísica e apenas secundariamente física/material. O papel e a manifestação dos deuses na geografia cósmica eram primordiais. Por exemplo, no pensamento mesopotâmico, cabos presos pelos deuses ligavam os céus e a terra e mantinham o Sol no céu. No Egito, o deus do Sol navegava em sua barca pelo céu durante o dia e pelo mundo subterrâneo à noite. As estrelas do céu egípcio eram retratadas estampadas no corpo arqueado da deusa do céu, que era sustentada pelo deus do ar. A arte egípcia é mais explícita que a arte da Mesopotâmia ao retratar os poderes divinos por trás dos fenômenos naturais.

Fonte: John H. Walton, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing The Conceptual World of the Hebrew Bible.

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 4) - A presença dos mitos da criação do Oriente Próximo no Antigo Testamento

Em muitas culturas antigas do Oriente Próximo, acreditava-se que o processo de criação tinha envolvido uma batalha entre o deus criador e um monstro marinho - Tiamat no Enuma Elish da Babilônia, Yamm (Mar) no mito cananeu Baal, conhecido pelos textos encontrados em Ugarit, no norte da Síria. Encontramos alusões a histórias da criação semelhantes nos livros poéticos da Bíblia Hebraica. Jó 26:12: “Com seu poder agitou violentamente o mar; com sua sabedoria despedaçou Raabe.” Ou, ainda, em Is 51:9: “Desperta, desperta, veste-te de força, ó braço do Senhor; desperta como nos dias passados, como nas gerações antigas; não és tu aquele que cortou em pedaços a Raabe e feriu o dragão?" Em Is 27:1, a batalha com o monstro é projetada para o futuro: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, a serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão que está no mar." Quando Daniel vê os quatro ventos do céu agitando o mar grande, e quatro grandes bestas saindo dele (Dan 7), isso também é um reflexo da mesma tradição mítica, assim como a besta que surge do mar no Apocalipse de João.

Fonte: John J Collins, no prefácio do livro The Satan: How God’s Executioner Became the Enemy, de Ryan E. Stokes.

25/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 3) - Criação Ex Nihilo

Quando lemos o relato da criação de Gênesis 1, nossas pressuposições sobre o que é o universo (nossa cosmologia) levam a nossa mente a pintar o texto como um filme de ficção científica espacial. Imaginamos o escuro do vácuo espacial dando lugar à luz, com Deus criando o planeta Terra como o imaginamos hoje (redondo e com todos os continentes e oceanos), a atmosfera (que acreditamos ser chamada de firmamento), depois os outros astros e, finalmente, as plantas, os animais e o homem. As pontas soltas nessa imaginação -- por exemplo: como haveria dia e noite antes do Sol ser criado? Como Deus criou os céus e a Terra primeiro (Gn 1.1), para depois fazer surgir a terra seca e criar os mares? O que são as águas acima do firmamento? Etc. -- não nos causam muita preocupação, pois fazemos uma espécie de mix entre teoria do big-bang e texto bíblico que faz sentido em nossa mente.

Contudo, a imagem que criamos ao ler o texto é condicionada pela nossa concepção sobre como é o universo e como ele funciona, e essa não era a forma que o escritor de Gênesis entendia o mundo; afinal, como ele poderia pensar como nós sobre o universo se viveu milhares de anos antes da invenção do telescópio ou da primeira nave espacial? A verdade é que o autor desse texto enxergava universo de uma forma totalmente diferente. Ele não pensava em vácuo espacial, o nada, como o estado antes da criação; para ele, antes de Javé começar seu processo de criação do mundo, havia um caos aquático sem forma, sem distinção, sem ordem, sem separação entre seus elementos: o abismo.

Essa palavra é geralmente usada no AT para "oceano", o qual, segundo as ideias hebraicas, circundava o mundo e ocupava as vastas cavidades que estão debaixo da terra: cf. Gn 49:25. Aqui, ela é usada como um nome próprio, sem o artigo; e é muito provavelmente de origem babilônica. No presente verso, a palavra abismo denota a imensidão aquática caótica destinada a ser confinada dentro de certos limites definidos no segundo dia da criação. É concebível que, na mitologia hebraica primitiva, esse t'hôm, ou "abismo", cumprisse o mesmo papel que Tiamtu ou Tiamath tinha na cultura babilônica, "a Deusa do Grande Abismo", que tinha um corpo de dragão, e cuja destruição precedeu as ações criativas do deus supremo da Babilônia, Marduk ou Merodach. Marduk matou o dragão, dividiu seu corpo em duas partes e transformou o céu em uma porção e a terra na outra. (Herbert E. Ryle, The Book of Genesis In the Revised Version With Introduction and Notes). Aqui, vemos a grande semelhança entre o mito criacional babilônico e o relato de Gênesis: assim como o dragão de água teve seu corpo dividido para criar as águas de cima e debaixo da Terra, Javé separa o caos aquático primordial em dois; cf. Gn 1.6-7.

Gênesis 1.2 (e a terra era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo, e um vento/sopro/espírito de Deus pairava sobre a face das águas) descreve o estado pré-criação, ou seja, mostra o que existia antes de Javé começar a criar: essa cláusula descreve as coisas imediatamente antes do início do processo de criação. Para as pessoas modernas, o oposto da ordem criada é o "nada", isto é, um vácuo. Para os antigos, o oposto da ordem criada era algo muito pior que o "nada"; era uma força ativa e malévola que podemos chamar de "caos". Neste verso, o caos é encarado como uma massa escura e indiferenciada de água. Em Gn 1.9, Deus cria a terra seca (e os mares, que só podem existir quando a água é delimitada por terra seca). Mas em Gn 1.1-2.3, a própria água e as trevas também são primordiais (contraste com Isaías 45.7). No midrash, Bar Kappara mantém a noção preocupante de que a Torá mostra que Deus criou o mundo a partir de material preexistente. Outros rabinos, porém, temeram que reconhecer isso faria com que as pessoas comprassem Deus a um rei que construiu seu palácio em um depósito de lixo, opondo-se arrogantemente à sua majestade (Gen. Rab. 1.5). No antigo Oriente Próximo, no entanto, dizer que uma divindade havia subjugado o caos significava dar-lhe o maior louvor possível. (Jewish Study Bible).

A essa altura, você deve estar se perguntando: mas e Gn 1.1? Esse verso não mostra que Deus criou tudo do nada? Acontece que o problema com essa interpretação é que ela depende de uma tradução equivocada: uma tradição com mais de dois milênios de idade enxerga Gênesis 1.1 como uma frase completa: "No princípio, Deus criou os céus e a terra". No século 11, o grande comentarista judeu, Rashi, argumentou que o versículo funciona como uma cláusula temporal. De fato, é assim que algumas antigas histórias do Oriente Próximo que relatam a criação começam -- incluindo a segunda história da criação que está em Gênesis, a qual tem início em Gn 2.4b. Assim, talvez uma melhor tradução para Gênesis 1:1 seria: "Quando Deus começou a criar o céu e a terra..." (Jewish Study Bible). Mas mesmo que a sentença seja traduzida como normalmente é -- no princípio, Deus criou os céus e a terra -- ela não serve como um ato prévio à ordenação posterior, mas como um título ou descrição resumida do que acontece depois, pois a relação entre Gn 1.1 e 1.2 não é descritiva; o verso 2 não é a explicação/descrição dos céus e terra criados no versículo 1, porque o objeto do v. 1 (céus e terra) é usado, na língua hebraica, para descrever a criação já ordenada, e não um caos a ser ordenado posteriormente. Com isso, mantém-se a interpretação de que a criação parte de algo preexistente, com o verso 1 sendo o resumo/sumário de tudo o que será narrado posteriormente.

Por mais estranho que isso possa parecer para quem faz parte do universo exegético protestante brasileiro, o relato da criação de Gênesis 1 não descreve uma criação ex nihilo, do nada, mas a ordenação do caos primordial que é tido pelo autor, devido à influência cosmológica babilônica, como o estado do mundo antes da criação. 

24/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 2)

Deveria ser óbvio o fato de que, pela natureza das coisas descritas nesse texto, nenhuma das histórias de Gênesis 1-11 pode ser produto da memória humana, e nem, em qualquer sentido moderno da expressão, relatos científicos da origem e natureza do mundo físico. O homem bíblico, apesar de suas inquestionáveis ​​investiduras intelectuais e espirituais, não baseou suas visões do universo e suas leis no uso crítico de dados empíricos. Ele ainda não havia descoberto os princípios e os métodos da investigação disciplinada, da observação crítica ou da experimentação analítica. Em vez disso, seu pensamento era imaginativo e suas expressões de pensamento eram concretas, pictóricas, emocionais e poéticas. Portanto, é um exercício ingênuo e fútil tentar reconciliar os relatos bíblicos da criação com os achados da ciência moderna. Qualquer correspondência que possa ser descoberta ou engenhosamente estabelecida entre os dois certamente deve ser apenas mera coincidência. Ainda mais sério do que o inerente equívoco fundamental a respeito da psicologia do homem bíblico é o efeito prejudicial sobre o entendimento da própria Bíblia. (Nahum M. Sarna, Understanding Genesis).

Afirmar que Gênesis 1 não é ciência não significa, necessariamente, afirmar que o método científico é absoluto ou que a ciência propõe verdades ontológicos absolutas; significa, a meu ver, simplesmente e somente dizer que o autor desse texto em específico não conhecia o método científico e não utilizou essa linguagem para escrever. Por consequência, também significa que a sua cosmologia não era a mesma que a nossa, e ele tinha uma concepção sobre o formato e função do cosmos que é diferente daquela que temos hoje -- a não ser que você seja um desses terraplanistas que usam chapéu de alumínio. Sim. Para quem ainda não se deu conta: Gênesis 1 descreve a criação de um disco de terra coberto por uma cúpula sólida (chamada firmamento) e rodeado de água por todos os lados, inclusive por cima. Você já parou para se perguntar o que significa separar as águas que estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento (Gn 1:6-7)?

A cosmologia do autor de Gênesis (e de virtualmente todos os autores antigos que escreveram antes da revolução copernicana, bíblicos ou não) via o universo de forma diferente da que vemos hoje, e um dos aspectos dessa cosmologia era acreditar que a porção seca de terra que surgiu no meio do caos aquático primordial não tinha a forma de um globo. Esses autores antigos não tinham noção do que era um planeta. A sua visão de como o universo funcionava e do que se constituia era totalmente diferente da nossa, e essa cosmologia está refletida em vários textos biblicos como Gênesis 1; é essa cosmologia antiga que está por trás de como os autores bíblicos entendiam o universo, de como interpretavam o mundo ao seu redor.

A ideia de que a ciência deve se conformar com a Bíblia nos leva, no final das contas, a espremer Bíblia dentro da forma da ciência. Em outras palavras, acabamos pressupondo que a ciência ratificará o que a Bíblia diz sobre o cosmos, e isso, por sua vez, nos faz ler o texto de forma enviesada para tentar demonstrar que a ciência comprovou a Bíblia. Isso é condicionar a Bíblia à ciência e não deixá-la falar por si só. Acabamos fazendo eisegese. Quando abandonamos o pressuposto de que a Bíblia fala com uma linguagem científica moderna, deixamos que ela fale com a sua própria linguagem e conseguimos entender o texto em seus próprios termos.

22/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência?

Gênesis 1 é cosmologia antiga. Ou seja, esse capítulo não tenta descrever a cosmologia em termos modernos ou abordar questões modernas. Os israelitas não receberam uma revelação para atualizar ou modificar a compreensão "científica" que tinham sobre o cosmos. Eles não sabiam que as estrelas eram sóis; eles não sabiam que a terra era esférica e se movia pelo espaço; eles não sabiam que o Sol estava muito mais distante do que a Lua, ou mais longe do que os pássaros voando no ar. Eles acreditavam que o céu era material (não vaporoso), sólido o suficiente para sustentar a residência da divindade e também para reter as água acima dele. Nesse sentido, e muitos outros, os israelitas pensavam sobre o cosmos da mesma maneira que qualquer pessoa no mundo antigo pensava, e de forma alguma como alguém pensa hoje. (John Walton, The Lost World of Genesis One).

É evidente que a seção de abertura do Livro de  Gênesis não é um relato científico do processo real pelo qual o universo se originou. O mundo cuja origem é ali descrita é um mundo desconhecido para a ciência -- é o mundo da imaginação antiga, composto por uma vasta extensão de terra que está cercada por -- e repousando sobre -- um mundo-oceano, e coberto por uma abóboda chamada 'firmamento', sobre a qual estão, novamente, as águas de um oceano celestial de onde a chuva desce sobre a terra (veja os vv. 6–8). Que o escritor acreditava que essa era a verdadeira visão sobre universo, e que a narrativa expressa a concepção do autor sobre como esse universo realmente surgiu, não temos, de fato, motivo para duvidar. Mas a diferença fundamental de ponto de vista que acabamos de indicar mostra que, qualquer que seja o significado do registro, ele não é uma revelação de fatos físicos que possa ser alinhada com os resultados da ciência moderna. A chave para sua interpretação deve ser encontrada em outro lugar. (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis).

Lamentavelmente, o debate Bíblia versus ciência desviou os leitores de Gênesis 1. Em vez de ler o capítulo como uma afirmação triunfante do poder e da sabedoria de Deus, e da maravilha de sua criação, muitas vezes ficamos patinando ao tentar apertar as Escrituras no molde das mais recentes hipóteses científicas, ou ao distorcer fatos científicos para se adequarem a uma interpretação específica. Quando é permitido falar por si, Gênesis 1 olha para além dessas minúcias. (Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary, Volume 1, Genesis 1–15).

21/05/2020

Quem é a serpente de Gênesis 3?

A história sobre uma serpente falante em Gênesis 3 sempre me tirou o sono. Quem era a serpente? O que ela fazia ali? De onde ela veio? Ela é literal ou deve ser interpretada como uma alegoria para o mal? Para Satanás? O grande problema não está no texto em si, mas na concepção que temos dele. Explico: o pressuposto de que a narrativa da criação em Gênesis deve ser entendida como algo que realmente aconteceu na história nos causa problemas que não existiriam se abordassemos o Livro de Gênesis por aquilo que ele é: um texto escrito há milhares de anos, com uma linguagem e imaginário específicos e que tinha o objetivo de explicar como o mundo e seus problemas surgiram. Se entendermos isso, narrativas como essa da serpente--e também do dilúvio, da Torre de Babel e muitas outras--se tornarão mais fáceis de ser compreendidas. Mas, afinal, o que diabos (com o perdão do trocadilho infame) é a serpente de Gênesis?

O que está por trás da ideia do autor usar uma serpente que fala é uma versão mais antiga dessa mesma narrativa; uma história mitológica na qual a serpente aparecia como um demônio ou deus. Essa lenda ou mito fazia parte do imaginário do autor de Gênesis, e foi utilizada por ele para explicar o que aconteceu de errado com o homem que o fez estar na situação em que se encontra. Em outras palavras, o escritor fez uso de uma versão mais primitiva da história da tentação, na qual a serpente tinha o papel de um ser sobrenatural, mas retirou (não completamente) alguns elementos dessa versão antiga e a atualizou para que se conformasse com a sua perspectiva teológica. Envolvendo tudo isso, está a ideia, representada em várias culturas durantes os milênios, de que a serpente possuia algum tipo de poder, o que provavelmente deu origem a esse tipo de mito/lenda. Essa ideia se infiltrou na cosmologia hebraica antiga e foi adotada pelo autor de Gênesis, que pensava dessa forma. Para falar sobre tudo isso, ninguém melhor do que o meu herói da exegese de Gênesis, John Skinner:

A sabedoria da serpente era proverbial na antiguidade, uma crença provavelmente fundada menos na observação das qualidades reais da criatura do que na ideia geral de sua natureza divina ou demoníaca. Nessa passagem, a serpente pertence à categoria de 'animais do campo' e é uma criatura de Javé; e parece haver um esforço para manter essa visão ao longo da narrativa. Ao mesmo tempo, é um ser que possui conhecimento sobrenatural, com o poder da fala, e animado pela hostilidade em relação a Deus. É esse último recurso que causa certa perplexidade. É mais provável que, por trás da descrição sóbria da serpente como uma mera criatura de Javé, houvesse uma forma anterior da lenda na qual ela figurava como um deus ou um demônio.

A atribuição de características sobrenaturais à serpente apresenta pouca dificuldade até para a mente moderna. A maravilhosa agilidade da cobra, apesar da ausência de órgãos motores visíveis, seus movimentos furtivos, seu rápido ataque mortal e seu poder misterioso de fascinar outros animais e até homens, são suficientes para justificar a consideração supersticiosa da qual ela tem sido objeto entre todos os povos. Assim, entre os árabes, toda cobra é a morada de um espírito, às vezes ruim e às vezes bom. O que é mais surpreendente para nós é o fato de que, na esfera da religião, a serpente era geralmente adorada como um  demônio bom. Traços dessa concepção podem ser detectados na narrativa diante de nós. O caráter demoníaco da serpente aparece no fato de ela possuir conhecimento divino oculto sobre as propriedades da árvore no meio do jardim, e no uso desse conhecimento para seduzir o homem de sua lealdade ao seu Criador. 

A serpente é vista de uma forma que nós, pessoas do século 21, não vemos. Existe algo nela (a mitologia antiga de que ela era algo a mais do que um animal) que faz com que seja inimiga do homem. Para compreender isso melhor, a pergunta que precisamos fazer é a seguinte: como o autor de Gênesis entendia uma serpente (ou essa serpente especificamente) e qual é, para ele, o papel dela no processo que levou o mundo a estar ruim do jeito que está? Apesar de o autor colocá-la como um mero animal, por trás disso tudo está essa versão mais antiga, onde a serpente era algo a mais, e o autor explica o problema do homem como vindo desse animal. Skinner continua:

A inimizade entre a raça dos homens e a raça das serpentes é explicada como uma punição por sua tentação bem-sucedida; originalmente, a serpente deve ter sido representada como um ser hostil, de fato, a Deus, mas amigável à mulher, um ser que lhe diz a verdade que a Deidade reteve do homem. Tudo isso pertence ao pano de fundo da mitologia pagã da qual os materiais da narrativa foram extraídos; e é a eliminação incompleta do elemento mitológico, sob a influência de uma religião monoteísta e ética, que faz com que a função da serpente em Gn. 3 fique tão difícil de entender.

Obviamente, essa narrativa (e sua explicação/interpretação) foi desenvolvida ainda mais pela tradição judaica posterior e herdada pelo cristianismo, que a desenvolve até hoje:

Na teologia judaica posterior, a dificuldade foi resolvida, como é sabido, pela doutrina de que a serpente do Éden era o porta-voz ou a representação do diabo. A doutrina judaica e cristã é uma extensão natural e legítima do ensino de Gn. 3, quando o problema do mal passou a ser apreendido em sua verdadeira magnitude; mas é estranho ao pensamento do escritor, embora não se possa negar que esse pensamento possa ter alguma afinidade com o pano de fundo mitológico de sua narrativa. O ensino religioso da passagem nada conhece sobre um princípio maligno externo à serpente, mas a considera o sujeito de quaisquer poderes ocultos que ela mostre: ela é simplesmente uma criatura de Javé que se distingue dos demais por sua sutileza superior. O autor javista não especula sobre a origem última do mal; foi suficiente para o seu propósito ter analisado o processo da tentação de modo que o começo do pecado pudesse ser atribuído a uma fonte que não está na natureza do homem nem em Deus.

Eu sei. Entender a Bíblia dessa forma é muito difícil para quem vem de um ambiente fundamentalista--talvez impossível para alguns. Para aceitar essa interpretação, precisamos mudar totalmente a nossa forma de ver o(s) relato(s) da criação registrado(s) em Gênesis; entender a cultura da qual esse texto saiu. Nós temos tantas e tantas pressuposições teológicas sobre essa narrativa, que para tirar tudo isso da cabeça e tentar entender o que o autor pensava, o que ele realmente queria dizer, se torna uma tarefa complicada. Lemos a palavra serpente e, imediatamente, associamos com Satanás e o mal; pensamos em Jesus como a semente da mulher e no animal sacrificado por Deus para cobrir o homem como o proto-evangelho de Lutero. Mas isso não está no texto; é desenvolvimento teológico posterior. O ponto é que essa interpretação faz sentido do texto; ela explica as coisas; nos faz entrar no horizonte de percepção do autor e entender o que ele queria dizer com essas histórias que parecem tão estranhas para nós; qual era o seu modo de pensar; como ele enxergava a realidade; qual era o imaginário que usou para explicar o mundo e seus problemas.

Fonte das citações: John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis.

19/05/2020

Como o autor de Gênesis entendia o sexo antes da queda do homem?

De vez em quando, percebo como ainda tenho um monte de conceitos teológicos pré-formulados que ainda dominam a minha leitura de textos-chave da Bíblia. Um desses momentos de percepção aconteceu ontem à noite enquanto eu lia um comentário sobre Gênesis e tive uma grande mudança de perspectiva quanto a um detalhe da narrativa sobre a queda do homem.

Eu acho que é possível ler o texto com o imaginário do autor se você tiver o conhecimento contextual/cultural/histórico adequado. Contudo, para adquirir esse conhecimento, depois de tantos anos recebendo informações erradas sobre o texto, não é fácil. Mas qual foi essa nova percepção sobre o texto de Gênesis?

Bem, normalmente se fala, na teologia reformada, que o sexo, o prazer sexual, o saber que está nu, foi algo criado por Deus para o deleite do homem. Eu tinha isso como algo certo em minha cabeça, mas qual foi a minha surpresa ao ler o comentário de John Skinner sobre Gênesis 2:25: O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha. (NVI)

Skinner diz o seguinte sobre essa passagem: O relato não é somente uma antecipação da história contada posteriormente sobre a origem das roupas (3.7: Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se [NVI]. Nota: Alguém já tinha percebido que esse texto traz uma tentativa de explicação sobre a origem das roupas? Eu não.) Ele chama a atenção para a diferença entre a condição original e a condição atual do homem segundo concebidas pelo autor. A conscientização sobre o sexo é resultado de ter comido da árvore: antes disso, nossos pais primitivos tinham a inocência das crianças, as quais são normalmente vistas nuas no Oriente. (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. 70-1.)

A afirmação de Skinner parece implicar que o autor de Gênesis acreditava que o homem não tinha a mesma visão sobre o sexo que adquire após a queda. A ideia de estar nu e não perceber é ter a inocência de uma criança, é não ter o tipo de conhecimento que pertence aos adultos. A implicação disso é não conhecer o sexo. Tendo isso em vista, percebi que a interpretação reformada sobre como era a condição humana sobre o sexo antes da queda parece importar uma certa mentalidade científica ao texto, na medida em que busca, na ideia da biologia, uma explicação para como era o homem no seu estado pré-queda; em outras palavras, pensando com um imaginário pós-cientifico, o teólogo reformado importa ao texto um conceito que não estava na cabeça do autor.

Isso me soa bastante irônico vindo de uma tradição que sempre buscou colocar a Bíblia acima de conceitos pré-estabelecidos.

A origem do batismo de João - por Adela Yarbro Collins

Somente dois elementos podem firmemente reivindicar consideração com respeito à questão da origem do batismo de João. Sem esses dois elementos, esse batismo seria ininteligível. Um deles é a tradição e prática das abluções (lavagens, banhos) levíticas. Esse ritual é a fonte última da forma do ritual de João, que aparentemente envolveu imersão total na água. O outro elemento é a tradição profético-apocalíptica. Um aspecto dessa tradição, importante para o batismo de João, era a expectativa de uma intervenção definitiva e futura de Deus. Outro aspecto significativo foi o uso ético das imagens de ablução. Por exemplo, Isaías 1:16-17 exorta o povo:

Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva. (NVI)

Em alguns textos, como Ezequiel 36: 25-28, as imagens de ablução foram usadas tanto ética quanto escatologicamente. A transformação do povo que Deus faria na restauração escatológica deveria envolver um novo espírito e um novo coração. Essa nova criação deveria começar com uma aspersão divina de água limpa sobre o povo para purificá-lo de seus pecados e atos de idolatria. A tradição de ações simbólicas proféticas também pode ter desempenhado um papel aqui. O batismo de João pode ter tido a intenção de significar a aproximação de Deus como purificador antes do prometido julgamento e transformação. Como já foi observado, as abluções rituais estavam crescendo em importância no tempo de João. Esse desenvolvimento é atestado pela literatura de Qumran, pelas tradições sobre os fariseus, pelas associações nas refeições e pelas tradições sobre indivíduos ascéticos, como Bannos, o professor de Josefo. A tradição de ação simbólica profética e a crescente importância das abluções rituais contribuíram para tornar João naquele que batiza (o Batista), em vez de simplesmente um pregador ou profeta oracular. O significado do batismo de João é melhor entendido em termos de uma reinterpretação profética do sentimento de contaminação em termos éticos e de uma expectativa apocalíptica de julgamento.

Fonte: Adela Yarbro Collins, Cosmology and Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, Brill, 1996, p. 228-9.
 

16/05/2020

Um breve resumo da vida do Jesus Histórico - por John P. Meier

Um ser humano se torna totalmente humano somente ao se engajar em relações dinâmicas de amizade e amor, inimizade e ódio, controle, subordinação e colaboração com outros seres humanos. Se isso é verdade para os seres humanos em geral, é ainda mais verdade para um líder religioso carismático cujo status e impacto são determinados por suas relações sociais. É especialmente verdade em relação a um judeu em particular do século I, chamado Jesus de Nazaré, cuja vida adulta é amplamente definida em termos de seus relacionamentos com outros indivíduos e grupos na Palestina. O Jesus adulto aparece pela primeira vez ao se juntar a um grupo escatológico específico marcado pelo batismo e arrependimento, um grupo liderado por um indivíduo estranho chamado João Batista.
Ao atrair alguns discípulos desse grupo, Jesus logo começou o seu próprio grupo, com uma nova mensagem do reino de Deus iminente e, ainda assim, presente, uma mensagem dirigida a todo o Israel. Movendo-se de cidade em cidade em um ministério itinerante, Jesus atraiu círculos internos e externos de seguidores dentre seus companheiros judeus. Convenceu pelo menos algumas pessoas de que ele havia curado suas doenças e expulsado seus demônios.  Envolveu-se em disputas religiosas com outros judeus devotos, e presumiu ensinar seus correligionários a observar adequadamente a lei mosaica. Dentro do seu próprio círculo, ele ensinou aos discípulos formas especiais de oração, observâncias e crenças que os marcaram como um grupo identificável no judaísmo palestino do século I. Seu ministério também foi notável pelo fato de atrair seguidores incomuns entre mulheres de alto e baixo status social e incluir comunhão de convívio com um "baixo escalão" social e religioso, como cobradores de impostos e "pecadores". Ainda assim, nem todos os contatos de Jesus foram tão positivos. No final, seus relacionamentos mais negativos se mostraram mortais. A aristocracia sacerdotal em Jerusalém, liderada por Caifás, decidiu que ele era perigoso; e Pôncio Pilatos, o prefeito romano, decidiu que ele era perigoso o suficiente para merecer ser crucificado.
 
Fonte: John P. Meier, A Marginal Jew, Vol. 3, p. 2.

13/05/2020

O valor histórico das narrativas do nascimento e da infância de Jesus - Raymond E. Brown

De certa forma, as narrativas do nascimento e da infância de Jesus são as últimas fronteiras a serem cruzadas no avanço incansável da abordagem científica (crítica) aos Evangelhos. Para os cristãos mais conservadores, essa fronteira pode ser completamente sem demarcação, pois ainda existem muitos que não reconhecem que o material das narrativas do nascimento e da infância tem uma origem e uma qualidade histórica bastante diferente daquela do restante dos Evangelhos. Para esses leitores da Bíblia, a vinda dos magos e a aparição de anjos aos pastores têm exatamente o mesmo valor histórico que as histórias do ministério de Jesus. No entanto, as histórias do ministério dependem, pelo menos em parte, de tradições que vieram dos discípulos de Jesus que o acompanharam durante esse ministério, enquanto não temos informações confiáveis sobre a fonte do material sobre o nascimento e a infância. Isso não significa que as narrativas da infância não tenham valor histórico, mas significa que não se pode fazer suposições sobre sua historicidade com base em sua presença nos evangelhos.

Fonte: Raymond E. Brown, The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in the Gospels of Matthew and Luke, p. 6.

10/05/2020

Apocalipticismo e as origens do cristianismo

O problema essencial de quem, dentro do movimento reformado e evangélico em geral, tenta entender o NT é um só: a total ignorância sobre o que era o judaísmo do primeiro século depois de Cristo. Sem essa peça do quebra-cabeça, tudo fica desconexo, e então surgem todos os malabarismos filosóficos e hermenêuticos criados para tentar explicar coisas que seriam muito simples de ser compreendidas dentro do contexto correto.

Um exemplo prático: se o exegeta não conhece um tópico central do judaísmo do segundo templo, o apocalipticismo, ele nunca, nunca, nunca entenderá Marcos 13: a expectativa de intervenção divina iminente acarretando na possível destruição do templo de Jerusalém e na reconstrução de um novo templo que não teria fim; os últimos dias chegando ao seu momento derradeiro; o julgamento de Deus finalmente acontecendo; a justificação dos filhos de Deus diante das nações.

O termo apocalipticismo é uma designação moderna amplamente utilizada para se referir a uma visão de mundo que caracterizou segmentos do judaísmo primitivo de c. 200 a.C. a d.C. 200, e que se centrou na expectativa da intervenção iminente de Deus na história humana de maneira decisiva para salvar seu povo e punir os inimigos desse povo, destruindo a ordem cósmica caída existente e restaurando ou recriando o cosmo em sua perfeição original. O conhecimento dos segredos cósmicos (uma das contribuições da tradição da literatura de sabedoria para o apocalipticismo) e os iminentes planos escatológicos de Deus eram revelados aos apocalipticistas através de sonhos e visões, e os livros que eles escreveram (os apocalipses) eram primariamente narrativas das visões que tinham recebido e que foram explicadas a eles por um anjo que servia de intérprete (Dictionary of New Testament Background, p. 46).

Outro exemplo: João Batista era um profeta apocaliptico judaico que se destacou por mergulhar/lavar pessoas no rio Jordão como um ritual/ato simbólico que demonstrava arrependimento pelos pecados e intenção de preparação para o dia no qual o Deus de Israel finalmente se manisfetaria visivelmente sobre a Terra, trazendo seu domínio sobre todos os povos e colocando o reino de Israel no centro de tudo. "João certamente se coloca nessa tradição profética e apocalíptica ao advertir todo o povo de Israel que, apesar de todos os mecanismos externos da religião, eles estão sujeitos a um julgamento feroz." (Meier, Marginal Jew, vol. 2, p. 28).

A "ira vindoura", apregoada por João, só pode ser entendida dentro do contexto da cosmovisão dos judeus apocalipticos, pessoas que esperavam uma intervenção divina final sobre a terra para separar o povo de Deus dos demais. Eles chegaram a essa conclusão ao reinterpretar vários textos dos profetas judaicos, entendendo que as profecias sobre essa intervenção divina se tratavam também do final da história presente e começo da história futura, "talvez como resultado da desilusão do período pós-exílico, que incluía sujeição a nações estrangeiras e tensão dentro da comunidade judaica" (Dictionary of New Testament Background, p. 47). Em outras palavras, eles esperavam a vinda do reino de Deus e diziam: arrependei-vos, pois o reino de Deus está próximo. Nossas fontes históricas indicam que Jesus começou seu ministério dentro do círculo de João, saindo posteriormente desse grupo para iniciar o seu próprio círculo de discípulos, fazendo e falando o mesmo que João com algumas modificações de ênfase e entendimento sobre a natureza dessa intervenção divina.

"O apocalipticismo é a principal fonte das narrativas e sistemas simbólicos que inspiraram João Batista, Jesus, a primeira comunidade pós-Páscoa e Paulo. Se estivermos certos em incluir Jesus aqui, poderíamos parafrasear Käsemann e concluir que "o apocalipticismo é a mãe do cristianismo". Para cada um deles, no entanto, especialmente Jesus e Paulo, outras tradições também eram importantes. Jesus se baseou na sabedoria escatológica e até aforística em seus ensinamentos. Ele também era um intérprete da Torá e, aparentemente, um curandeiro e exorcista. Paulo baseou-se na retórica grega e na filosofia popular. Todos esses elementos são importantes. No entanto, as tradições apocalípticas não devem ser ignoradas ou rejeitadas, uma vez que fornecem a estrutura e a lógica para os outros elementos" (The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature, p. 338).

Sem isso em mente, o exegeta usará a sua própria imaginação/racionalização filosófica para entender o texto, deixando, assim, de ser um intérprete para se tornar um teólogo--sim, essa distinção, que raramente passa pela cabeça de renomados protestantes brasileiros, deveria estar bem clara. Uma coisa é ler um texto antigo para entender o que ele significou para o autor e seus receptores; outra coisa completamente diferente é usar esse texto como base para um desenvolvimento de pensamento teológico, criando conceitos e definições que ainda não existiam. Não entender o mundo dos primeiros cristãos e não perceber a importância dessa distinção faz com que esses intérpretes importem conceitos teológicos pré-formulados para o NT sem nem perceber. Ao fazer esse enxerto forçado de perguntas que nunca passaram pela cabeça de Jesus ou de Paulo, acreditam que Jesus pensava como eles e que o cristianismo dos autores do NT é o mesmíssimo que o seu. As consequências disso, de acreditar que detêm a revelação de Deus nas mãos, de achar que podem demandar ações de indivíduos por ter a autorização de Deus para isso como receptores da verdade divina, são perigosas--principalmente quando esses intérpretes estão ligados à política, mas isso é assunto para outro texto.

30/03/2020

O problema da cosmologia hebraica antiga para o fundamentalismo teológico cristão

O fundamentalismo teológico se baseia inteiramente na ideia de que a Bíblia não contém erros e na pressuposição de que a linguagem bíblica é literalmente verdadeira porque esse livro foi inspirado pelo próprio Deus, sendo a revelação direta do ser divino à humanidade. A quantidade de problemas que existe em sustentar o pressuposto de que a Bíblia não contém erros, sejam eles de natureza científica, histórica, moral, filosófica ou teológica, é enorme, a começar pelo fato de que a cosmologia assumida pelos autores bíblicos é impossível de ser adotada pela mente moderna.

Segundo a cosmologia hebraica antiga, a criação se deu a partir de um caos de águas primordiais. Deus criou uma redoma, uma cúpula sólida (o firmamento) que separou as águas em duas partes e que segura as águas que estão acima dela. A terra seca surgiu no meio das águas que estão debaixo do firmamento, no meio do grande abismo (a imensidão de água interminável que ainda está embaixo da terra seca e que forma o oceano). Quando aconteceu o dilúvio, as janelas da cúpula foram abertas e a água de cima caiu e inundou tudo, enquanto as águas de baixo subiram quando as fontes do abismo foram abertas; o dilúvio é a volta do caos aquático que existia antes da criação. Essa cosmologia é pressuposta em textos como Gênesis 1 e Salmos 148.4. Acreditar que o autor(res?) de Gênesis subscrevia uma cosmologia copernicana, conhecia o heliocentrismo e entendia o significado de vácuo espacial é desesperadamente anacronistico.

Mas não para por aí. A cosmologia de Gênesis -- céu em cima, terra no meio e inferno embaixo, com o trono de Deus literalmente em cima das águas que cobrem a cúpula -- é adotada pelos autores do NT:

A visão do Novo Testamento sobre o que é o cosmos é uma visão mitológica. O mundo é uma estrutura em três camadas, com a terra no meio, o céu acima dela e o inferno abaixo. O céu é o lugar onde Deus e figuras celestiais, os anjos, habitam; o mundo abaixo da terra é o inferno, o local de tormento. Mas até mesmo a terra não é simplesmente o cenário de ocorrências naturais do cotidiano, de previsões e obras que se relacionam com ordem e regularidade; na verdade, a terra também é um teatro para as obras de poderes sobrenaturais, Deus e os seus anjos, Satanás e seus demônios. (Bultmann, New Testament and Mythology).

Na cabeça dos autores do NT, céu e inferno eram lugares que existiam materialmente acima e abaixo da terra respectivamente; não eram lugares espirituais que existiam em outra dimensão. Se você construísse uma escada suficientemente alta, chegaria ao céu:

Devemos lembrar que Lucas podia operar apenas dentro da opção conceitual possível para ele, na qual o céu era compreendido como literalmente "lá em cima", e a subida ao céu poderia apenas ser compreendida em termos de "ser tomado acima", uma ascensão literal. (Dunn, Beginning From Jerusalem, p. 148).

Nosso conhecimento moderno acerca do universo nos impede de aceitar a cosmologia mitológica do NT, pois sabemos que o que existe além do azul do céu são planetas, estrelas, galáxias e o infinito do espaço:

Nenhuma pessoa madura representa Deus como um ser que existe literalmente lá em cima no céu; de fato, para nós, não existe mais qualquer "céu" no sentido antigo dessa palavra. Da mesma forma, certamente também não existe um inferno no sentido de um submundo mítico que está abaixo do chão em que pisamos. (Bultmann, New Testament and Mythology).

O problema surge quando percebemos que essa cosmologia antiga é o cenário onde todos as narrativas que dão base à teologia do NT aconteceram. Se os lugares não são materiais como os autores achavam que eram, não podemos afirmar, por exemplo, que a ascensão de Jesus aconteceu como descrito pelo NT. Se a ascensão e a parousia fazem parte da linguagem mitológica, então elas não são reais no sentido literal como acreditavam os autores bíblicos. Se isso estiver correto, é impossível sustentar a inerrância bíblica segundo afirmada pelo fundamentalismo teológico, pois a Bíblia pressupõe como verdade algo que sabemos não ser real. Portanto, fica claro que os autores bíblicos não estavam escrevendo como se fossem historiadores modernos. Eles enxergaram significado teológico nos episódios que narravam, e muito do que escreveram, se analisado pelo método histórico moderno, não corresponde exatamente ao que aconteceu. Assim, a Bíblia não pode ser considerada um livro de história ou ciência, mas uma fonte histórica que precisa ser escrutinada pelo método correto.

Sabendo disso, os teólogos liberais tentaram chegar à essência do que é o cristianismo através da análise histórica crítica, deixando de lado aquilo que não poderia ser tido como verdade pela mente moderna e dispensando, com isso, os dogmas cristãos. Influenciados por Kant, e tendo consciência da impossibilidade de provar a existência do mundo metafísico empiricamente, tentaram chegar ao conhecimento de Deus pela via do sentimento. Todos os teólogos, desde Schleiermacher, tentam falar sobre Deus a partir de algo que vem de dentro do sentimento humano. Assim, para eles, a Bíblia é o registro histórico do sentimento religioso de um povo específico. Ainda assim, afirmaram que o ensino de Jesus de Nazaré foi o ápice da religiosidade humana, e que esse ensino poderia ser alcançado através do escrutínio crítico do texto bíblico; poderia ser purificado do dogma cristão. Dessa forma, podemos dizer que, quando a cosmovisão medieval caiu com o surgimento iluminismo, todo o pensamento sobre Deus se desfez em palavras que vêm de dentro do coração. Sabemos (ou pelo menos pensamos que sabemos) que tanto o sentimento interno de dependência ao infinito (Schleiermacher), quanto a moral inata do ser humano (Kant, Ritschl e Harnack) parecem nos dizer que existe algo além do empírico, mas isso nunca poderá ser provado; tudo pode não passar de condição cerebral desenvolvida pela evolução -- aqueles que estão familiarizados com os livros de Robert Sapolsky sobre o comportamento humano sabem do que estou falando. Tudo o que se pode fazer nessa área, pelo menos até a pesquisa científica avançar muito mais, e apesar dos esperneios da militância ateísta, é especular.

Os seres humanos sempre foram criadores de mitos. Arqueólogos desenterraram sepulturas de neandertais onde foram encontradas armas, ferramentas e os ossos de um animal sacrificado, o que sugere que eles acreditavam em um mundo futuro semelhante ao que conheciam em vida. Os neandertais podem ter contado histórias sobre a vida que os seus companheiros mortos estavam experienciando. Eles estavam certamente refletindo sobre a morte de uma forma que as outras criaturas não estavam. Os animais veem outros animais morrerem, mas, até aonde sabemos, eles não pensam sobre o assunto. Contudo, as sepulturas dos neandertais mostram que, quanto essas pessoas antigas se tornaram conscientes da sua mortalidade, eles criaram algum tipo de contra-narrativa que os capacitou a se conformar com o fato. Os neandertais, que enterraram os seus companheiros com tanto cuidado, parecem ter imaginado que o mundo visível, material, não era a única realidade. Portanto, desde uma época muito primitiva, parece que os seres humanos se distinguiram por sua habilidade de ter ideias que foram além da sua experiência cotidiana. (Karen Armstrong, A Short History of Myth).

Se os seres humanos são apenas animais que têm consciência da morte, e a religião/mitologia foi uma das formas que eles desenvolveram para explicar/neutralizar o medo da aniquilação, então é provável que a religião seja apenas isso, ou seja, a imaginação de uma espécie que percebeu que a vida acaba. Se a religião for isso, ela pode ser simplesmente uma primeira etapa na conscientização da espécie humana dentro do cosmos: para explicar a si mesmo e o mundo ao seu redor, o ser humano usa o mito/imanência de algo superior para descrever as coisas que vê; com o surgimento da linguagem e observação científica, a religião fica ultrapassada e o ser humano finalmente compreende que não passa de uma aglomeração de organismos que se desenvolveu, percebeu isso e está no mundo apenas por consequência do acaso.

Os teólogos dialéticos (neo-ortodoxos) tentaram resolver o problema dizendo que precisamos simplesmente aceitar que Deus é inalcançável e receber a palavra da revelação. Para eles, se a linguagem mitológica do NT não faz sentido para a mente científica porque a objetividade que essa mitologia expressa não pode se realizar no mundo natural que conhecemos, o importante é o que está por trás dessa linguagem; qual é o anseio que ela tenta responder.

A diferença entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia se encontra numa mudança de paradigma em relação a onde está a base da teologia; de um escrutínio histórico/filosófico da Bíblia para se chegar à essência do cristianismo -- mesmo quando isso significa largar os dogmas --, para um abandono do método histórico como algo válido para se definir o dogma, partindo do pressuposto de que Deus é totalmente transcendente e só pode ser reconhecido quando se revela; essa revelação jamais pode ser provada empiricamente, mas surge no reconhecimento mútuo da igreja como um todo e do indivíduo de que Deus se revelou em Jesus. O método histórico (o empírico) não demonstra Deus, mas isso não importa, porque a igreja percebe a revelação subjetivamente. Assim, a neo-ortodoxia é o reconhecimento de que o empírico não prova Deus e de que o caminho está em outro lugar. Com a influência de Kierkegaard, a fé vira um salto no escuro, mas um salto que precisa ser feito, pois a verdade não está disponível fora da fé subjetiva de cada indivíduo. 

É claro que os teólogos liberais que ainda estavam vivos na época do surgimento desse novo tipo de teologia não deixaram de tecer seus pensamentos sobre ela, como o fez Harnack: "Uma teologia vinda desde dentro nunca é uma teologia acadêmica; é, na verdade, algo mais, algo superior; é confissão. Somente a teologia desde fora pode criar comunidade. Lamentamos que a insuficiência de tal teologia seja tão evidente, mas ninguém pode mudar isso. Se alguém tentar, no entanto, fracassará e criará confusão para a teologia. Em vez disso, que eles se apegam à sua tarefa: pregar." (Adolf Von Harnack, The Formation of Christian Theology and of the Church's Dogma.) Quem sabe ele tenha mesmo razão.

Talvez a única coisa que possa salvar o cristianismo em sua capacidade de demonstrar a realidade, de provar que ele fala a verdade sobre o que existe após a morte, sobre o metafísico, seja a ressurreição de Jesus: se a ressurreição for apenas um exemplo de como a mitologia apocalíptica foi usada pelos discípulos de Jesus, então Schwetizer estava certo: Jesus foi apenas um profeta apocaliptico judeu que teve suas expectativas frustradas. Isso não anula a validade do cristianismo em sua força de criação civilizacional no ocidente -- e talvez também possamos dizer que a essência da religião cristã tenha sido o ponto mais alto da intelectualidade humana na busca pela moralidade --, mas enfraquece (e muito!) o poder de explicação da realidade que o cristianismo possui. Contudo, se a ressurreição de Jesus realmente aconteceu em seu sentido literal, o cristianismo é verdadeiro, e pouco importa o fato de que os primeiros cristãos usaram uma linguagem mitológica para descrever o mundo ao seu redor.

Por outro lado, se a fé cristã é baseada na historicidade do relato bíblico, e se a mente moderna usa o método histórico para demonstrar o que é, de fato, histórico ou não, então o problema parece persistir (pelo menos para as mentes mais insatisfeitas com respostas evasivas), pois, ao contrário do que muitos apologetas cristãos tentam insistir, o método histórico não pode demonstrar que Jesus ressuscitou de fato; ele pode apenas constatar que pessoas interpretaram o túmulo vazio como sendo a ressurreição, e que elas tiveram experiências onde viram Jesus após a morte dele. Justiça seja feita: o método histórico não pode identificar o Jesus real. A busca pelo Jesus histórico "pode apenas reconstruir fragmentos de um mosaico, o fraco contorno de um afresco desgastado que permite muitas interpretações... [Assim,] o Jesus histórico não é o Jesus real. O Jesus histórico pode nos dar fragmentos da pessoa 'real', porém nada mais" (Meier, Marginal Jew, Vol. 1, p. 25). Neste ponto, o método histórico se esgota, e chegamos na fé: você acredita no que essas testemunhas falaram?

22/01/2020

A Transfiguração de Jesus: Verdade ou Mito?

A origem do relato da transfiguração de Jesus sempre me intrigou. A narrativa parece refletir algumas ideias do judaísmo do segundo templo que diziam que Moisés e Elias não haviam de fato morrido, mas foram transladados diretamente ao céu e de lá voltariam no fim dos tempos (vide as duas testemunhas de Ap. 11). Nesse sentido, o relato da transfiguração parece ir contra o que o próprio AT diz explicitamente sobre Moisés. Além disso, o texto parece evocar a cena de Moisés subindo ao monte Sinai para receber a revelação de Deus (Êx. 24:15-16), e outros detalhes parecem comparar (e mostrar a superioridade de) Jesus com momentos da vida de Elias e Moisés (veja Dt. 18:15, Êx. 34:29-30 e 1 Rs 19:12, onde Elias ouve apenas o silêncio, enquanto Jesus ouve a voz de Deus). Contudo, a própria transfiguração/transformação de Jesus traz alguma semelhança com relatos de epifanias greco-romanas.

Tendo-se em vista o método histórico, talvez o texto se explique melhor como uma interpolação pós-Páscoa que acabou sendo inserida posteriormente na tradição como reflexo daquilo que se acreditava sobre Jesus, do que como um acontecimento real -- quem sabe é uma história de uma aparição do Jesus ressurreto que foi realocada no meio da missão terrena de Jesus, apesar de não termos tantas evidências disso.

Portanto, "o autor de Marcos, ou o seu predecessor(es), parece ter se inspirado nos gêneros romano e helenistico de epifanias e metamorfoses, mas de uma forma que adapta-os à tradição bíblica, especialmente àquela da teofania no Sinai (Yarbro Collins, Mark, p. 419).

O que não se encaixa muito bem nessa explicação é o próprio papel de Pedro, Tiago e João na formação da tradição. Como um relato assim surgiria sem que esses três tivessem o papel de testemunhas oculares sobre o acontecimento para a comunidade cristã primitiva? Ou seja, a narrativa da transfiguração pode ser exatamente isso: um testemunho ocular; o próprio texto transmite essa ideia. Se a narrativa começou a circular já nos primeiros dias do cristianismo, é bem possível que ela tenha vindo diretamente dos três discípulos. Uma história como essa poderia e seria verificada com eles por parte dos outros cristãos. Contudo, se é uma tradição que surgiu posteriormente, não se pode dizer que esse cuidado teria sido tomado.

Mas como demonstrar que é uma tradição mais antiga ou não? Não parece ser possível fazer isso através do método histórico, tendo em vista que a narrativa está tão carregada de simbologia do AT e da linguagem sobre as epifanias do mundo greco-romano, que parece ter sido criada quase que como uma forma de dar significado ao ministério de Jesus. Ou será que existe algo histórico por trás de uma narrativa que foi adaptada e carregada de simbologia posteriormente?

Talvez precisamos aceitar o que um famoso historiador afirmou: "como Strauss observou há muito tempo atrás, esse é um caso onde a significância teológica daquilo que está sendo narrado domina a perícope. Se algum remanescente histórico está por trás, é uma questão que pode ser levantada, mas dificilmente respondida com qualquer confiança. A tradição é certamente mais uma afirmação do tema 'mais do que um profeta', até mesmo mais do que os maiores profetas. E (...) podemos afirmar fortemente que o próprio tema tenha se originado em percepções bem antigas sobre a missão de Jesus, incluindo comentários que Jesus foi relembrado como ele mesmo tendo feito. Mas, de qualquer modo, é mais provável que essas percepções é que deram origem à história do que vice-versa." (James Dunn, Jesus Remembered, pp. 665-6). Uma pena...

19/01/2020

É possível demonstrar que Jesus realizou milagres? - James D. G. Dunn

No estudo da história, fatos objetivos não existem, o que existem são apenas dados interpretados. Não existe um Jesus objetivo, um artefato ('o Jesus histórico') no fundo do conto literário para ser descoberto ao se limpar todas as camadas de tradição. Tudo o que temos é o Jesus recordado, o Jesus visto através dos olhos daqueles que o seguiram, o Jesus entesourado nas memórias que eles compartilharam e nas histórias que eles contaram e recontaram em seu meio. Da mesma forma, não existem acontecimentos objetivos de pessoas sendo curadas, não existem não-milagres para serem descobertos ao se limpar camadas de interpretação. Tudo o que temos em pelo menos muitos casos é a memória compartilhada de um milagre, a qual foi recontada como tal mais ou menos desde o primeiro dia. O que a testemunha viu foi um milagre, não um acontecimento 'ordinário' que eles interpretaram posteriormente como um milagre. Deve ter havido muitos que experienciaram as ministrações de Jesus para eles como milagres, indivíduos que foram genuinamente curados e livrados, e esses sucessos foram atribuídos, naquele local e naquele momento, ao poder de Deus fluindo por meio de Jesus. É apenas dessa forma que a reputação de Jesus como exorcista e curador poderia ter se tornado tão firme e tão abrangente de maneira tão rápida. Em casos como esses, podemos dizer, o primeiro 'fato histórico' foi um milagre, porque foi assim que o evento foi experienciado, como um milagre, pelos seguidores de Jesus que o testemunharam.

James D. G. Dunn, Jesus Remembered, pp. 672-3.

18/01/2020

É possível afirmar que Jesus realizou milagres? -- John P. Meier

Ao abordar esse assunto contencioso, precisamos ser claros, desde o início, sobre o que exatamente um historiador, na qualidade de historiador, pode dizer sobre os milagres de Jesus. Na minha opinião, a afirmação de que um evento em particular é um exemplo de Deus realizando um milagre diretamente nos assuntos humanos é, por sua própria natureza, uma afirmação filosófica ou teológica que um historiador pode, de fato, registrar e estudar, mas não pode, dada a natureza de sua disciplina, verificar. A afirmação de que Deus agiu diretamente em uma dada situação para realizar um milagre é uma afirmação que pode ser feita e conhecia como verdade somente no reino da fé.

Portanto, na busca pelo Jesus histórico, aquilo que um historiador, atuando dentro das restrições de sua disciplina acadêmica, pode fazer é perguntar algo mais modesto: se a afirmação ou crença de que Jesus realizou milagres durante o seu ministério público volta até o Jesus histórico e suas ações, ou se, ao invés disso, ela é apenas um exemplo da fé e da propaganda da igreja antiga reprojetada para o Jesus histórico. (...)

Muitos estudiosos hoje em dia enfatizariam que a realização de milagres, a cura pela fé ou o exorcismo formaram grande parte do ministério público de Jesus e contribuíram muito para a atenção favorável por parte das multidões e para a atenção não muito sadia das autoridades.

Em suporte dessa tendência emergente na terceira busca, eu afirmo que vários critérios suportam fortemente em favor da afirmação generalizada de que, durante o seu ministério público, Jesus afirmou realizar aquilo que chamaríamos de milagres, e que os seus seguidores -- e às vezes até mesmo os seus inimigos -- pensaram que ele fez isso.

John P. Meier, The Present State of the 'Third Quest' for the Historical Jesus: Loss and Gain, Biblica,  Vol. 80, No. 4 (1999), pp. 459-487.

A importância do debate sincero sobre a natureza dos Evangelhos

É importante reconhecer que, apesar do seu criticismo radical, Reimarus e Strauss permanecem como parte da tradição de inquirição acadêmica com respeito aos Evangelhos. Tal questionamento e desafio é inerentemente saudável e ajuda a manter a inquirição acadêmica honesta; em tudo isso, existem questões difíceis que não podem e não devem ser evitadas. Os textos de Reimarus e Strauss deveriam ser leitura compulsória para qualquer curso sobre Jesus de Nazaré, não simplesmente como parte da história da busca pelo Jesus histórico em si, mas porque as questões que eles propõe permanecem até os dias de hoje, e é bom que aqueles que vêm do lado da fé do diálogo fé/história experimentem novamente algo do choque que esses textos causaram quando foram publicados pela primeira vez. Além disso, o diálogo com os herdeiros de Reimarus e Strauss é uma das atividades que ajudam a teologia a manter um lugar dentro do fórum público da busca pelo conhecimento e do debate sobre a verdade a nível acadêmico. Se a teologia deseja continuar a fazer qualquer tipo de afirmações sobre verdade que tenham relevância para além do confinamento das igrejas, então ela precisa fazê-las dentro desse fórum público. A alternativa a isso seria retirar-se para dentro de um discurso eclesiástico interno que não pode ser entendido ou efetivamente comunicado fora da ekklesia.

James D. G. Dunn, Jesus Remembered, p. 34-5.